Em tempos de coronavírus, por que 35 milhões de pessoas ainda não podem lavar as mãos no Brasil?

Cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água, mesmo o país detendo 12% de toda água doce disponível no mundo

Por Sérgio Guimarães, coordenador do Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura, com Angélica Queiroz.

Desde o início dos registros de casos do novo coronavírus no Brasil, em fevereiro, protocolos e orientações das organizações nacionais e internacionais de saúde foram todos no sentido de alertar a população sobre a necessidade de lavar as mãos. Mas como pedir isso a 35 milhões de pessoas que sequer tem acesso à água, mesmo o território brasileiro detendo 12% da água doce disponível no mundo?

Em 2015, a ONU, em acordo com mais de 150 países, olhou para realidades como esta em todo o mundo e definiu como meta para 2030 assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. Este é o 6º item da lista de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Mas por que falar de água e saneamento ao mesmo tempo? Porque os dois assuntos são indissociáveis. A falta de sistema de esgoto leva necessariamente à contaminação do solo e de cursos d’água, prejudicando assim a disponibilidade de água potável. Na verdade, quando falamos em saneamento básico, estamos incluindo aí quatro serviços de tratamento: água, esgotos, resíduos e drenagem.

Se pensarmos que quatro milhões de pessoas no Brasil ainda não têm acesso a banheiros começamos a entender a gravidade do problema. Segundo o Instituto Trata Brasil, Organização da Sociedade civil de Interesse Público que desde 2007 trabalha reivindicando a universalização do acesso a esses serviços, quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada. Só 22 entre as 100 maiores cidades do Brasil atendem 100% da população. Acontece que o total de água extraída em poços anualmente tem volume suficiente para abastecer todo o país. Por que então isso não acontece? Um dos motivos é que quase 40% desse total é perdido durante a distribuição.

Ainda segundo o Trata Brasil, quase 100 milhões de brasileiros ainda não são atendidos pela coleta de esgoto, praticamente metade da população. Se formos falar em tratamento, esse número cai mais ainda: só 46% dos esgotos do país são tratados. De modo geral, desde o desenvolvimento das primeiras ações de infraestrutura com foco em saneamento no Brasil, no início do século XX, esse atendimento privilegiou algumas áreas, excluindo uma parcela da população, especialmente a de menor renda nos centros urbanos e a população rural. Mesmo assim, nas 100 maiores cidades do país, 36 municípios têm menos de 60% da população atendida pela coleta e somente 21 cidades brasileiras tratam mais de 80% de seus esgotos.

Região Norte: o caos do caos
Se no Brasil, como um todo, os números são preocupantes, na região Norte eles são ainda piores. A região Amazônica é um desafio, pois é a região mais carente e que menos avanços teve nos últimos dez anos, como bem pontua Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil. Lá, só pouco mais de 10% das pessoas têm acesso aos esgotos. E, com a água, a situação também não é boa. Enquanto no Sudeste mais de 90% da população tem água tratada, no Norte só 57% da população é atendida pelo abastecimento de água.

Como pode faltar água justamente em uma das regiões mais banhadas por rios em todo o planeta? A água da maioria dos rios são impróprias para o consumo humano. E esse é um dos motivos, mas não o único, pelo qual o tratamento é tão importante: não basta estar perto da água.

O tamanho da região e o fato de ela ter uma grande parcela da população em áreas rurais ou isoladas é outro agravante. É uma região que precisa de um olhar muito específico do governo federal, principalmente em áreas não viáveis do ponto de vista econômico. Os serviços de abastecimento de água e saneamento são de responsabilidade dos municípios, mas os mecanismos de arrecadação são padrões nacionais que não atendem a região, composta por municípios do tamanho de países.

Nos últimos três anos, os maiores investimentos em saneamento básico foram nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Bahia. Neste mesmo período, Amazonas, Acre, Amapá, Alagoas e Rondônia são os que menos investiram. O estudo mais recente do Trata Brasil mostra que o custo para universalizar o acesso ao saneamento básico completo, entre 2014 e 2033, é de R$ 508 bilhões. O Governo Federal, através do PAC, já destinou recursos da ordem de R$ 70 bilhões a obras ligadas a esse setor. Quem pode pagar o resto desta conta?

Segundo Édison, a discussão do marco regulatório de saneamento é um passo importante porque a redação atual dá mais possibilidades para que empresas privadas atuem junto com públicas. “É preciso incentivar a formação de consórcios e formação de blocos de municípios. É a única solução, porque são estados muito frágeis do ponto de vista financeiro, com pouca capacidade de endividamento para poder arcar com esses investimentos, que são altos. Mas as prefeituras precisam querer e incentivar essas parcerias”, sugere.

No Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura, rede que reúne 40 organizações não governamentais brasileiras, entendemos que o cenário crítico observado no Brasil no campo da infraestrutura instiga ações urgentes. A crise na saúde causada pela Covid-19 e os dados apresentados desnudam uma situação de extrema desigualdade e atraso mas também representam uma grande oportunidade para que apresentemos novas ideias e projetos que sejam alternativas para levar qualidade de vida e saúde para quem mais precisa. O esforço deve ser coletivo. É fundamental que o governo direcione investimentos para essa área.

Cada R$ 1 investido em saneamento gera economia de R$ 4 na saúde
Enquanto a falta de água nos grandes centros econômicos pode impactar no desenvolvimento econômico, nos rincões do Brasil sua ausência pode afetar um bem muito mais precioso: a vida. Na Amazônia, vários estados ainda sofrem com epidemias de leptospirose e amebíase, doenças que também estão relacionadas à falta de saneamento básico. A Organização Mundial da Saúde estima que, no Brasil, cada R$ 1 investido em saneamento poderia gerar uma economia de R$ 4 na saúde. Em vez de projetos megalomaníacos com alto impacto social e ambiental na Amazônia, nossos governantes precisam entregar obras de infraestrutura que realmente melhorem a qualidade de vida de quem vive na região. É isso que advogamos no GT Infra.

Caetano Scannavino, membro do GT e coordenador da ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA), que atua na Amazônia, vê isso de perto. Ele afirma que o saneamento básico é um investimento que compensa. “Os gastos são uma preocupação constante quando falamos em infraestrutura adequada, mas investir em saneamento dá retorno à economia, especialmente no sistema de saúde, reduzindo ocorrências causadas porque as pessoas consomem água poluída do rio”.

Caetano ressalta que a parte social é um pré-requisito para resolver a questão ambiental na região e a tecnologia pode ser uma ótima aliada nesse sentido. É por isso que a ONG tem investido na construção de banheiros e instalação de sistemas de abastecimento de água encanada, movidos à energia solar. São sistemas autogeridos e que não utilizam bateria ou diesel e, por isso, são mais baratos e sustentáveis. Esse é apenas um dos muitos bons exemplos de que as coisas podem ser melhor pensadas. É fundamental que os governos federal, estaduais e municipais invistam em políticas públicas para que a Covid-19 e outros males não deixem somente rastros de destruição. O problema estrutural deve começar a ser resolvido agora. Não podemos mais exigir que lavem as mãos se somos nós, enquanto nação, que estamos lavando as mãos para o grave problema da água.

(Este artigo faz parte da série Infraestrutura Que Queremos).

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