Como o agro se beneficia do desmatamento?

O desmate foi um elemento estruturante de consolidação da nossa economia agroexportadora no século passado e continua sendo prática corrente para expansão da fronteira agrícola nos dias de hoje

*Jaqueline Ferreira

A ministra Tereza Cristina já afirmou que não é mais necessário desmatar para produzir, assim como fizeram outros que ocuparam a pasta. Muitas lideranças do setor agropecuário dizem não ter nenhuma relação com o desmatamento e a expansão da fronteira agrícola porque não estão com a motosserra na mão. “É preciso prender quem desmata”, “é preciso coibir a grilagem de terras”, “nós seguimos o Código Florestal”, “se 90% do desmatamento é ilegal, bastaria aplicar a lei que tudo estaria resolvido”, afirmam.

O que se omite nessa narrativa é que o destino da terra desmatada, legal ou ilegalmente, é o mercado de terras. Terra é um insumo fundamental para a produção agropecuária. E no caso do Brasil, a disponibilidade desse insumo parece não ter fim.

Entre 1985 e 2020, desde o início do monitoramento sistemático do uso da terra no país, 82 milhões de hectares de vegetação nativa foram ao chão. No mesmo período, a área ocupada pela agropecuária teve um incremento total de 81 milhões de hectares. Não faltam evidências sobre o que vem acontecendo com as áreas desmatadas: viram pasto e área de cultivo agrícola.

O desmatamento foi um elemento estruturante de consolidação da nossa economia agroexportadora no século passado e continua sendo prática corrente para expansão da fronteira agrícola nos dias de hoje. Mesmo em 2012, ano que registrou menores taxas de desmatamento, nós perdemos 4,6 mil km² de florestas nativas na Amazônia. Não é pouco.

A expansão de área cultivada é uma estratégia do agronegócio brasileiro para aumentar sua produção e competitividade. Os cultivos mais modernos, que usam de alta tecnologia para produzir mais por hectare, como é o caso da soja, também apresentam tendência crescente de aumento da área cultivada.

O estudo do Instituto Escolhas, Como o Agro se beneficia do desmatamento?, lançado na quinta-feira (17/02), traz dados relevantes para entendermos melhor esse imbricamento do setor com o desmatamento.

Ao analisar o efeito econômico dessa prática sobre o preço da terra e dos produtos agropecuários, o estudo revela que o desmatamento ocorrido entre 2011 e 2014 desvalorizou o estoque de terra de 93,5% dos municípios brasileiros. Se ele não tivesse ocorrido, elas valeriam R$ 136,7 bilhões a mais em 2017.

A depreciação foi maior nos municípios onde a fronteira agrícola expandiu, localizados em sua maioria na Amazônia Legal e na região conhecida como Matopiba – fronteiriça entre o Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia –, onde a depreciação do valor do estoque de terra chegou a 25%, o que soma mais de R$ 83 bilhões. 50% de toda a desvalorização da terra observada no país está concentrada em 61 municípios com esse perfil.

O valor do hectare de terra em São Félix do Xingu, no Pará, município com maior depreciação verificada, foi de R$ 2.476 em 2017. Sem o desmatamento dos anos anteriores, o preço teria chegado a R$ 6.606 por hectare. O desconto significativo de R$ 4.130 por hectare beneficiou o produtor desse município que expandiu sua área de cultivo, mesmo que ele não tenha derrubado uma só árvore.

O efeito também é sentido no preço das commodities, cujo principal produto afetado é a soja. O desmatamento provocou redução de R$ 3,10 no preço médio da saca de 60kg, o que se percebe de maneira mais intensa, mais uma vez, nos municípios em expansão da fronteira agrícola.

Preços mais baixos de terra e de commodities trazem maior competitividade para o setor. O que o estudo mostra é que o desmatamento torna mais barato para o Brasil cumprir sua grande vocação na visão do agronegócio: fornecer soja e carne para o mundo. Entretanto, fica mais barato para uns produtores do que para outros, prejudica aqueles que não podem expandir sua área de cultivo e deprecia o ativo terra do país como um todo.

A conta desastrosa nem leva em consideração a perda da biodiversidade e o agravamento da crise climática, que já prejudica a própria produção agropecuária. Também não considera que fatores de produtividade, como acesso a orientação técnica e infraestrutura, trazem ganhos muito maiores de competitividade do que o desmatamento pode trazer, conforme mostrou o estudo.

Será mesmo que, para acabar com o desmatamento, basta aplicar a legislação existente? Enquanto o setor mais promissor do país, com grande representação nos poderes executivo e legislativo, não abandonar a lógica de operação que consiste em expansão de área, o problema vai continuar.

Atos oficiais de regulação fundiária que premiam quem desmata e disponibilizam a entrada de novas áreas no mercado de terra precisam cessar. E se é o bolso que fala mais alto na hora de expandir a área cultivada, é pelo bolso que vamos conseguir constranger o setor a mudar. Já passou da hora de clientes e financiadores exigirem o fim do desmatamento nas cadeias produtivas do agronegócio brasileiro. Assim como, os inúmeros instrumentos de financiamento público – crédito, anistia de dívida, isenção fiscal, entre outros – precisam parar de beneficiar o produtor que desmata e seus compradores.

*Jaqueline Ferreira é gerente de Portfólio do Instituto Escolhas

Este artigo foi originalmente publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.

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