Uma viagem pela Transpantaneira nesta temporada de seca faz o visitante se encontrar com um chocante futuro.
Andreia Fanzeres
Conheci a Transpantaneira na seca de 2007 para acompanhar analistas do Ibama e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) no censo das aves. A escolha da estrada parque não foi um acaso. Os 140 quilômetros que cortam o Pantanal mato-grossense eram um dos principais locais de avistamento de fauna de todo o bioma. Seria praticamente impensável cruzar essa estrada sem se encontrar com o que de mais característico há no Pantanal. Mas, depois dos incêndios que devastaram a região em 2020 e da ausência de chuvas na região, a paisagem ainda parece agonizar. Árvores enegrecidas, redemoinhos de ar quente levantando a poeira nas fazendas, corixos secos, solo rachado e exposto no lugar das lagoas chocam o visitante que um dia viu o Pantanal transbordando de vida. Sem água, a família de capivaras se comportava como retirante na aridez deste novo Pantanal. E, em vez dos jacarés, da revoada de tuiuiús e do colorido das suas aves no céu, foi o gado que posou para foto.
A água, elemento que determina o pulso da vida na maior planície inundada do mundo, agora falta. Não apenas para os bichos, mas também para o pantaneiro. Chega barrenta, manchando pratos e corpos de quem luta, sob o sol escaldante, para minimizar os efeitos da tragédia dos incêndios este ano. Na casa de uma moradora da Transpantaneira, as rãs escolheram o vaso sanitário para viver. “É que aí tem água sempre”, explicou-me. Ela não se conformava em lembrar que desde o ano passado o Pantanal não encheu mais e agora é possível atravessar a pé rios como o majestoso Paraguai. Nesse comecinho de setembro, a nebulosidade e o vento espalhavam os tímidos pingos de chuva, que mal chegavam a fixar a poeira no chão. Cada gota passou a ter um valor ainda maior, desde então. Com o preço do combustível e da energia elétrica nas alturas, garantir água tratada e refrigerada nesses rincões é prioridade, questão de vida e também de morte.
Como levantou de forma inédita o Mapbiomas, o Brasil perdeu mais de 3,1 milhões de hectares de superfície de água nos últimos 30 anos. Isso representa uma redução de 15,7% com relação aos corpos hídricos existentes no país em 1991. No Pantanal, esse decréscimo foi particularmente agudo, na ordem de impressionantes 68% entre 1985 e 2020. Tamanha diferença se expressa, é claro, naquilo que vemos como paisagem, mas que costuma ficar na memória dos mais antigos, não sendo tão perceptível de um ano para outro. Os alertas de que o Pantanal estava secando a cada nova barragem autorizada na Bacia do Alto Paraguai, ou da farra de outorgas para uso da água no bioma, sem avaliações sobre impactos cumulativos e efeitos sinérgicos dessas intervenções, anteviam um cenário em que tantas alterações na delicada dinâmica hídrica no Pantanal poderiam ter consequências gravíssimas para as futuras gerações. O criminoso desleixo na implementação das políticas ambientais pelo governo federal desde 2019, somado a condições climáticas inéditas, fez 2020 mudar para sempre o que conhecíamos como Pantanal.
A escalada do desmatamento e condições climáticas severas fizeram de 2020 um marco para o Pantanal. Especialistas ouvidos pelo Observatório do Clima apontaram, por exemplo, que o nível do rio Paraguai tinha sido o mais baixo desde 1971 e choveu em média entre 50% e 60% menos do que o normal, o que tornou o combate aos incêndios criminosos uma missão sem precedentes na história do Pantanal.
Hoje, incêndios ativos voltam a torrar o que já queimou ano passado. Agora, os animais que disputam nesgas de água vistas das pontes secas da Transpantaneira são um presente cada vez mais raro a quem tem a chance de testemunhar o que será desse futuro que já chegou.
Imagens: Andreia Fanzeres