Carta à ANTT
Brasília-DF, 21 de novembro de 2017 Ilmo. Sr. Jorge Luiz Macedo Bastos Diretor-Geral da Agência Nacional dos Transportes Terrestres – ANTT Brasília – DF Ilmo. Sr. Alexandre Porto Mendes de Souza Presidente da Audiência Pública da EF-170 (Ferrogrão) Brasília – DF c/c Ilmo. Sr. Paulo Tarso Procurador da República Ministério Público Federal Assunto: Solicitação de adiamento de audiências públicas e estabelecimento e realização efetiva de consulta livre, prévia e informada, junto a povos indígenas e demais comunidades tradicionais afetadas pelo projeto da EF-170 (Ferrogrão). Prezados Senhores, Considerando o momento ainda incipiente do processo de planejamento e concessão da ferrovia ‘greenfield’ EF-170 (Ferrogrão) entre os municípios de Sinop/MT e Itaituba/PA, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do Governo Federal, e considerando ainda as dimensões potenciais dos impactos socioambientais do empreendimento, no bojo do corredor logístico em implantação da rodovia BR-163, paralela ao traçado proposto para a referida ferrovia, este Grupo de Trabalho de organizações da sociedade civil que atuam sobre obras de infraestrutura (GT-Infraestrutura) vem, por meio desta, apresentar apontamentos referentes aos impactos socioambientais da obra, bem como ao processo de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI), já colocados pelo Ministério Público Federal em Recomendação a esta Agência. Em se tratando de projeto com o condão de alterar profundamente o processo de crescimento econômico regional, com grande capacidade de estimular a produção e escoamento de commodities – em especial da soja e do milho – entre a região Centro-Oeste e os portos de Miritituba e Santarém no Estado do Pará – conforme estudos técnicos preliminares vinculados à concessão e de utilidade para a licitação pelo Despacho de 3 de fevereiro de 2016 do Ministro dos Transportes – assim como o caráter do leilão, que se caracteriza como decisão política do Governo Federal que afeta diretamente os meios de vida de povos indígenas e outras populações tradicionais da região, há de se reconhecer o direito de CLPI, prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (C-169/OIT), especialmente no conteúdo de seus artigos 6º e 7º. De fato, o artigo 7º da C-169/OIT traz expressamente que os povos indígenas e comunidades tradicionais “deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetálos diretamente”. Para efeitos do cumprimento do referido tratado, a consulta aos povos afetados pelo empreendimento deve ser realizada “mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. Deve-se reconhecer que a construção de um grande empreendimento ferroviário como a Ferrogrão, capaz de estimular fortemente atividades agropecuárias, madeireiras e minerais de grande escala em nível regional, traz significativos riscos para o aumento das pressões sobre os territórios e meios de vida de populações indígenas e outras comunidades tradicionais, cidadãos e sujeitos de direitos, inclusive no âmbito da Convenção 169 da OIT. Tais riscos devem ser analisados, inclusive, sob a ótica dos potenciais impactos sinérgicos entre a Ferrogrão, os portos previstos, a navegação de grande número de barcaças de grandes dimensões e o processo de pavimentação em curso da BR-163 (Cuiabá-Santarém), outro corredor logístico do agronegócio, atualmente em curso. Isso num contexto de elevada fragilidade da governança na região ao longo dos últimos anos, envolvendo graves problemas de desmatamento acelerado, exploração madeireira ilegal, grilagem de terras públicas, expansão de garimpos e altos índices de violência em torno de conflitos pelo acesso aos recursos naturais, entre outros. Evidentemente, tudo isso implica no acirramento de riscos para povos indígenas e comunidades tradicionais que já sofrem com as consequências de degradação dos recursos naturais, no entorno e, muitas vezes, dentro de seus territórios tradicionais. No sentido de promover a preservação ambiental regional, com especial ênfase na manutenção da conectividade entre as bacias do Xingu e do Tapajós, bem como o uso sustentável dos recursos naturais, foram criadas Unidades de Conservação (UCs) no âmbito do “Plano BR-163 Sustentável”, instituído pelo Decreto Presidencial no. 6.290/2007. No entanto, a mera perspectiva de implantação da ferrovia, na contramão de consolidar tais objetivos e oferecer apoio ao processo inconcluso de mitigação dos impactos socioambientais provocados pelo corredor logístico, ensejou processo de desafetação das mencionadas UCs, provocando imediatos impactos ambientais, inclusive relativos à invasão de áreas protegidas. A desafetação pela Medida Provisória nº 758/2016, para fins de viabilização da implantação da ferrovia, implicou em corte do Parque Nacional do Jamanxim, que contribui para a interrupção do fluxo gênico natural de espécies da fauna e da flora entre as duas bacias hidrográficas. A despeito da situação acima exposta, o processo de concessão da Ferrogrão, com base em estudos de viabilidade técnica e econômica, marcados por evidentes fragilidades em termos de análise de impactos e riscos socioambientais, está acontecendo sem o devido processo de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e às demais comunidades tradicionais afetadas pelo empreendimento. Tudo isso dificulta o real dimensionamento dos custos socioambientais e das necessárias salvaguardas que devem acompanhar o desenvolvimento do projeto. Da mesma forma, a realização de poucas audiências públicas na região de implantação do empreendimento sobre o processo do edital, convocadas sem a necessária GT Infraestrutura divulgação prévia de documentos básicos em formato acessível, limita a compreensão das implicações concretas da construção e operação do empreendimento – elementos indispensáveis para discutir com vistas a resultados efetivos as condições de concessão. Assim, o processo de participação, da forma como foi convocado, apressadamente, resta prejudicado de maneira ainda mais ampla. O prazo exíguo para a manifestação da população acerca dos estudos preliminares – disponibilizados com menos de 30 dias da data da primeira audiência pública marcada – é, prima facie, inadequado para obra de tamanha relevância socioambiental e econômica, cujo prazo de concessão previsto pelo contrato é de 65 anos. Nesse sentido, as organizações abaixo assinadas, reunidas no GT Infraestrutura, vêm destacar – em concordância com as manifestações dos povos indígenas e do Ministério Público Federal – a necessidade de adiamento das audiências públicas, até o estabelecimento e realização de processo de consulta livre, prévia e informada