Para uma infraestrutura sustentável na Amazônia é preciso planejamento participativo

Por que a participação pública e a análise de alternativas são essenciais para o desenvolvimento socioeconômico e a conservação ambiental A pandemia do coronavírus nos traz à tona a consciência de como o ser humano é, a despeito de toda sua pretensão de controle sobre o mundo natural e seus recursos, apenas mais uma peça de um sistema ecológico indescritivelmente interconectado. Tomado como bastião da consciência planetária, o homo sapiens continua vulnerável ao impacto imprevisível das menores formas de vida ou nem isso. O ano de 2020 tem provocado grandes reflexões e pode se transformar em um marco de transformações da sociedade, inclusive na maneira com que ela se relaciona com o meio ambiente. Inúmeros eventos virtuais, webinários e lives, acontecem diariamente no Brasil e em vários outros países e debatem sobre como o mundo pode e deve se desenrolar no pós-pandemia. Uma série de reflexões já estão ocorrendo no âmbito internacional, a exemplo do Green New Deal, nos Estados Unidos, e da Recuperação Verde e Justa discutida na Europa. Na arena da sustentabilidade global, o Brasil junto com países vizinhos carrega a grande responsabilidade sobre um uma região chave: a Amazônia. Não deveria ser preciso aqui argumentar sobre a importância da maior floresta tropical úmida da Terra. Isso deveria ser tão claro como descrever o seu clima: chover no molhado. No entanto, o contexto de enormes índices de desmatamento, conflitos por terra, invasões de territórios indígenas, garimpos ilegais e outros problemas socioambientais na região mostra que o Brasil precisa concentrar seus esforços em proteger essa floresta e as pessoas que nela vivem. É recorrente na história do território brasileiro que comunidades amazônicas travem embates com arranjos de poder estatais e privados resistindo à implantação de obras de infraestrutura (como rodovias, ferrovias, usinas hidrelétricas e termelétricas) que carrega consigo ameaças ao modo de vida local diretamente ligado à natureza. Na maior parte das vezes, as comunidades tomam conhecimento da existência de propostas de projetos de infraestrutura nos lugares onde vivem quando esses já se encontram nos estágios finais do processo decisório de sua implantação, durante o licenciamento ambiental da obra. Nesse momento, há pouco espaço para avaliar possíveis alternativas aos projetos propostos. Se há razão e direito em vozes contrárias à implantação de certas infraestruturas em determinados locais, é papel do Estado buscar e considerar previamente outras alternativas que satisfaçam aos mesmos objetivos de um projeto de infraestrutura. Enquanto essa discussão e avaliação de alternativas não ocorrer de forma sistemática, os conflitos continuarão se manifestando nos estágios mais avançados do processo decisório da instalação de infraestruturas. Durante o licenciamento ambiental da obra há pouco espaço para algo além de conflitos acerca da análise dos riscos e das propostas de medidas compensatórias. Por isso, a atuação da sociedade civil acaba se restringindo a movimentos de resistência e de denúncia de compromissos assumidos e não cumpridos nos programas de compensação e mitigação com um número crescente de conflitos e judicializações. Análises de riscos e de impactos devem ser realizadas para avaliar diferentes alternativas e não apenas para estimar a segurança de um único projeto. Uma análise de alternativas explora os prós e os contras potenciais de diversas opções colocadas para resolver o problema. Como enfatizou Mary O’Brien, cientista norte-americana que trabalhou com organizações e movimentos ambientais de base por mais de 20 anos, em seu livro Making Better Environmental Decisions: “As decisões baseadas apenas em análises de riscos envolvem uma dimensão moral quando sujeitam terceiros a riscos com que eles não consentiram, sem ter sido levadas em conta um amplo leque de alternativas”. A partir dessa passagem, é possível embasar a defesa da efetiva participação democrática nos processos de tomada de decisão. Ao planejar, por exemplo, uma rodovia que possa acarretar determinados riscos socioambientais, deve-se pesar o que significariam a escolha por outras rotas, a adoção de outros modos de transporte ou ainda o cenário de total não intervenção (e a relevância das oportunidades perdidas). Considerando antecipadamente, assim, a totalidade de sujeitos e regiões que sofreriam os seus impactos. Historicamente, a expansão da infraestrutura de energia e de transportes na Amazônia pouco tem considerado as necessidades econômicas e sociais dos habitantes locais, prevalecendo as demandas de setores empresariais. A Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) nº 1/1986 instituiu a Avaliação de Impacto Ambiental, onde o escopo de avaliação se restringe ao de projetos individualizados. Por outro lado, Estudos de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) de escopo mais amplo ainda não têm seu uso regulamentado no Brasil. A AAE consiste na avaliação da qualidade do meio ambiente, por meio de um procedimento sistemático e contínuo de alternativas de desenvolvimento com a elaboração de diagnósticos de referência, cenários tendenciais e propositivos. Tudo isso com análises e considerações estratégicas das alternativas para atingir os objetivos propostos, proposição de diretrizes de planejamento, monitoramento, gestão e avaliação concretizados de políticas, planos e programas (PPP) prevendo a integração efetiva de considerações biofísicas, econômicas, sociais e políticas nos processos públicos e institucionais. Os contornos de interesse público para a expansão da infraestrutura, ditando a que fins deverão atender os planejamentos setoriais, a preparação e a seleção de projetos são definidos durante a formulação de políticas públicas. Nos estágios iniciais do estabelecimento de políticas, planos e programas deveria haver maior espaço para que algumas questões fossem esclarecidas. A que finalidade serve cada grande projeto de infraestrutura proposto nos planos? Quais são os benefícios esperados com a infraestrutura implantada? Quem são os beneficiários? Que interesses públicos ou privados são atendidos? Populações podem ser prejudicadas? Há outras alternativas vislumbradas àquela infraestrutura? Um mais amplo e mais transparente cardápio de cenários alternativos, democraticamente discutido e ponderado por diferentes atores envolvidos aumentaria as chances de se evitar impactos indesejados e os conflitos daí decorrentes. O debate antecipado no planejamento da infraestrutura é necessário para evitar efeitos irreversíveis, erros dispendiosos ou mesmo injustiças socioambientais que intensifiquem as desigualdades já existentes. O desenvolvimento social e econômico de todo o país, incluindo das vulneráveis e ameaçadas comunidades amazônicas, alicerça-se no fortalecimento da democracia. Dada a sensível

A recuperação econômica depende da construção de mais infraestrutura?

Ouvir vozes de povos e comunidades tradicionais e encontrar caminhos para tornar suas demandas efetivas é fundamental para repensar o nosso modelo de desenvolvimento A política e a economia brasileira têm se transformado numa velocidade vertiginosa e em poucas ocasiões a voz dos territórios foi incorporadas às análises sobre esses fenômenos. No GT Infraestrutura, a pergunta sobre qual infraestrutura queremos tem animado as discussões. Por isso, acreditamos que a perspectiva dos sujeitos políticos nos territórios precisa fazer parte das discussões sobre infraestrutura e recuperação econômica do Brasil. Esse foi o foco do debate no webinar “Renovação Verde da Economia e Infraestrutura na Pós-Pandemia: oportunidades, riscos e desafios”, realizado pelo GT Infraestrutura, no último dia 19 de agosto. Um redirecionamento será fundamental para que o país saia da crise no pós-pandemia e pensar caminhos para isso foi o desafio de Ailton Krenak, Ricardo Abramovay e Diana Aguiar, convidados para esse primeiro debate do Ciclo WebGTInfra.“Tanto o Inesc quanto o GT Infraestrutura e as organizações que o compõem se comprometem publicamente com a divulgação e valorização da cosmovisão de povos e comunidades tradicionais que, nós acreditamos, devem sim ter voz nas discussões e debates sobre o futuro da economia e da comunidade mais ampla em que todos nós nos encontramos, vivemos e compartilhamos”, iniciou a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconomicos (Inesc), Tatiana Oliveira, que moderou o encontro. “Cada vez mais a infraestrutura na Amazônia serve à todo o processo de devastação no Cerrado”, pontuou a Assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Diana Aguiar. Ela explicou que o escoamento da soja produzida pelo agronegócio passa pelos portos da região Norte e que a infraestrutura construída para essa logística não atende nem respeita a população da região. “Infraestrutura é frequentemente associada a desenvolvimento, mas uma coisa que nunca se fala é pra que e pra quem”, destacou, lembrando que, historicamente, esses projetos servem apenas para viabilizar atividades econômicas que colaboram para destruir o meio ambiente. Que sustentabilidade é essa?  O escritor e professor do Programa de Ciência Ambiental Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, Ricardo Abramovay, acredita que o crescimento econômico é necessário, mas ele não pode mais continuar sendo incentivado à qualquer custo. Ele lembrou que infraestrutura não é apenas o que é construído, mas também os recursos naturais, que as empresas usam sem pagar. “Só que esses custos não fazem parte do sistema de preços. E a gente paga por eles constatando a destruição.” Ele destacou que o tipo de moldagem de infraestrutura tradicionalmente instalada é equivocado porque cria uma dependência desse caminho e, além disso, trata pequenas reduções de emissão de gases do efeito estufa como sustentabilidade. “Essa é uma visão errada. Sustentabilidade é um valor, é a maneira como se processa a relação entre sociedade e natureza.” Para o líder indígena, ambientalista e escritor, Ailton Krenak, a infraestrutura tal qual vemos hoje precisa ser repensada. “A voz dos territórios nunca foi ouvida dentro de um contexto vasto colonial e colonizante. Nós não temos uma infraestrutura cogitada para esse continente”, afirmou. Segundo ele, a América do Sul apenas recepcionou projetos que vêem os povos como uma plataforma extrativista. Ele destacou que a Amazônia precisa ser pensada dentro do contexto do planeta e levando em conta tudo o que acontece no organismo inteiro. Segundo o escritor, mudar a nossa relação com a natureza, com os países vizinhos e, consequentemente, com a infraestrutura é fundamental e urgente. Porque a verdadeira infraestrutura de que necessitam os povos é a própria natureza e a floresta em pé. Para Krenak, se ouvíssemos os territórios já saberíamos disso há muito tempo. O debate completo pode ser acessado no canal do GT Infraestrutura no Youtube. Ciclo WebGTInfra O debate inaugura para o público o Ciclo WebGTInfra, promovido pelo GT Infraestrutura e parceiros, pensado para promover reflexões sobre sustentabilidade tendo sempre a infraestrutura como norte. A intenção é que os encontros sempre tratem do assunto priorizando a visão inclusiva das comunidades e populações da Amazônia. Serão 12 encontros e o próximo, com o tema “Sem social não tem ambiental: Saúde, Saneamento e as Políticas Sociais para o Desenvolvimento Regional”, já está marcado para o dia 2 de setembro, às 16h.