Tutãra, a joia do Arinos
Ao levar adiante o projeto da UHE Castanheira, governo assume o risco de acabar com uma preciosidade da cultura Rikbaktsa e da ecologia na bacia do Juruena Até o dia 13 de outubro os brasileiros estão sendo convidados a enviar contribuições pela internet ao Plano Nacional de Energia 2050. O documento traça o horizonte da expansão energética no país que, do ponto de vista da geração de energia hidráulica, encontrou um potencial de 108 GW em operação e construção até 2019, e apontou outros 68 GW ainda inventariados em projetos localizados, em sua maioria, na Amazônia. O governo reconheceu que 77% do potencial hidrelétrico situam-se em áreas de alta sensibilidade socioambiental, interferindo em unidades de conservação e terras indígenas. E estimou que 23% (12 GW) não interferem. A UHE Castanheira, projetada para gerar pífios 0,098 GW de energia firme na bacia do rio Juruena, no norte de Mato Grosso, é um desses casos em que o perímetro do reservatório não toca terras indígenas. Esta tem sido a explicação oficial para que tal projeto, ineficiente e altamente impactante ao meio ambiente e aos povos indígenas, garanta sua sobrevida nos planos do governo como obra prioritária do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Evitar as terras indígenas significa, na prática, menos problemas e processos mais céleres. O risco, entretanto, é minimizar os efeitos dos empreendimentos sobre elas, ainda mais quando as comunidades dependem do rio que vai ser barrado. A manobra reduz a importância dos povos indígenas sobre os rumos do planejamento energético e do licenciamento ambiental, contabilizando atropelos que só estudos independentes vêm conseguindo desvelar. Nesse sentido, a existência de uma joia diretamente ameaçada pela UHE Castanheira foi reportada ao Ministério Público Federal (MPF) pelo povo indígena Rikbaktsa na expectativa de dar mais concretude a essa subestimação. Ela, a joia, é o Tutãra – nome do colar de casamento, uma das mais sofisticadas peças da arte plumária produzida e plenamente utilizada por um povo ameríndio. É como se chama também o pequeno molusco usado em sua confecção, que por sua vez só pode ser coletado pelos indígenas no rio Arinos e, por causa dele, é conhecido como “água de concha”. Dois relatórios técnicos, um produzido pela bióloga Claudia Callil, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e outro pela antropóloga Adriana Athila, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), a pedido da Operação Amazônia Nativa (OPAN), demonstram de forma cabal a gravidade e a irreversibilidade dos impactos da UHE Castanheira sobre o tutãra. Ele é ao mesmo tempo patrimônio ecológico, histórico, paisagístico, artístico e arqueológico. Apesar disso, foi sumariamente ignorado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que é o empreendedor desta usina. Os povos Munduruku, Apiaká e Kayabi do rio Teles Pires estão aí para confirmar que simplesmente deixar a hidrelétrica do lado de fora da terra indígena é subestimar não só os danos, mas o conhecimento de quem mais entende da região. É isso que os Rikbaktsa lutam para evitar. “O rio Arinos para nós é muito importante e a usina de Castanheira coloca em risco o futuro das novas gerações”, falou Adílio Peta Rikbaktsa, da Aldeia São Vicente, na Terra Indígena Japuíra. Egídio Matsiu, de outra aldeia no Arinos, reforçou diante dos procuradores do MPF que “para o povo Rikbaktsa, só é possível fazer colar de casamento porque tem tutãra no rio Arinos. A usina vai com certeza acabar com essa tradição. Além disso, o rio é rico em peixes como o bagre, que também pode sumir”, avisa. O tutãra Tutãra é o nome na língua Rikbaktsa para uma espécie de “molusco bivalve de água doce, grande, de nácar perolado em intensos tons de rosa”, descreve Callil. O P. syrmatophorus é encontrado exclusivamente no baixo curso do rio Arinos, já em condição de vulnerabilidade. De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) bivalves como ele ocupam o primeiro lugar no ranking entre os organismos aquáticos continentais como sendo o grupo em maior declínio no planeta. É um organismo filtrador, indicador de boa qualidade ambiental, sobre o qual se sabe pouquíssimo. “O ciclo de vida dos bivalves é complexo com requisitos ecológicos específicos, nada se conhece sobre esta relação para os bivalves da América do Sul”, relata a pesquisadora, que aponta para o desaparecimento da espécie se a UHE Castanheira for construída. Para os Rikbaktsa, isso seria trágico. “O Tutãra é um belo artefato essencialmente composto sob a maestria das mulheres Rikbaktsa e a única peça da extensa coleção da plumária exclusivamente usada por elas. Ele é feito da artesanal junção de diferentes partes que são, elas mesmas, extensivamente trabalhadas por várias pessoas, de diversos gêneros, aldeias e Terras Indígenas ocupadas pelos Rikbaktsa”, detalha a antropóloga Adriana Athila, autora do relatório técnico entregue ao MPF. Segundo ela, os processos de aquisição da tutãra incluem e ultrapassam o que equivocadamente se considera ser sua simples “coleta”, remetendo a uma complexa tecnologia de negociação sociológica e mesmo cosmológica. “Ele é fruto dos saberes singulares Rikbaktsa, do modo como se organizam, casam-se, articulam-se e desempenham seus ritos anuais; de como vêm existindo ao longo do tempo”, diz Athila. Por isso, nenhum outro povo indígena é capaz de produzi-lo nem de usá-lo e seu extermínio jamais será passível de restituição ou mitigação. Algo tão relevante do ponto de vista cultural e ambiental não foi devidamente observado nos estudos entregues pela EPE no curso do licenciamento ambiental da UHE Castanheira, conduzido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA). A ausência de estudos qualificados do impacto da hidrelétrica sobre peixes, regimes hidrológicos e qualidade da água e equívocos socioambientais motivaram a abertura de inquéritos tanto no MPF como no Ministério Público Estadual. Desde então, organizações da sociedade civil e comunidades locais apressam-se para tentar entender o que faz o governo querer tanto uma usina que, segundo estudo da Conservação Estratégica (CSF-Brasil), gerará prejuízos que podem atingir 129 milhões de dólares. De acordo com levantamento da OPAN atualizado em 2020, dos mais de cem