A Amazônia que queremos e precisamos

Pacto de Letícia pretende ser instrumento para que países amazônicos colaborem mutuamente, mas não responde a várias perguntas fundamentais Por Claudio de Oliveira* A Amazônia não é brasileira. Nem colombiana, nem peruana, nem equatoriana… a Amazônia atravessa fronteiras como os rios que não pedem permissão para seguir com sua trajetória rumo ao mar. Nós, brasileiros, temos sim a maior fatia desse inigualável patrimônio da biodiversidade; água, clima, saberes ancestrais, mas enxergar a Amazônia sob a ótica do desenvolvimento sustentável, por mais desgastado que pareça estar esse conceito, exige transpor fronteiras, pensar fora da caixa. Em setembro de 2019, sete países amazônicos aprovaram o Pacto de Letícia. Representantes de Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname se reuniram na cidade homônima, que fica na Colômbia, mas faz uma fronteira tríplice que inclui Brasil e Peru, e assinaram um acordo que estabelece 16 pontos nos quais concordaram em colaborar mutuamente, entre eles: combate ao desmatamento, uso sustentável dos recursos, enfrentamento de desastres naturais, incentivo à bioeconomia, etc. Apesar de ter nascido como uma política de enfrentamento aos graves incêndios que assolaram a região, o Pacto pretendeu ir além, como uma iniciativa plurinacional para a abordagem dos desafios e o aproveitamento das oportunidades. Mas será que conseguiu? Quais pontos exigem nossa atenção? O Pacto foi celebrado de forma genérica, apenas por governos, sem a participação das pessoas que vivem na Amazônia. Não há definições mais precisas do que é entendido como bioeconomia e como esta se relaciona com a população e a economia local; nem está claro quais são as metas assumidas para o desmatamento e para a restauração florestal e como enfrentar as atividades predatórias e a mudança do uso do solo pressionada por grandes vetores econômicos. Como melhorar a proteção dos defensores ambientais? Como garantir o respeito aos territórios indígenas? Como incorporar a visão de mundo amazônida, “o bem viver”, em detrimento da exploração capitalista sem medida? O Pacto de Letícia foi pensado de cima para baixo, ou seja, sem a participação das comunidades tradicionais, dos indígenas, das organizações socioambientais que atuam na região há anos. Como se um arquiteto lhe apresentasse um projeto para a sua casa sem conversar com você. Não há um processo transparente de participação no âmbito do planejamento e tampouco no monitoramento dos recursos e ações. O contexto de violação de direitos humanos e de crimes ambientais e fundiários pode ser agravado ainda mais se não houver monitoramento e governança adequados. Somente em 2020, a Amazônia perdeu quase 2,3 milhões de hectares de floresta primária nos nove países amazônicos, o que representa um aumento de 17% em relação ao ano anterior (2019), e o terceiro maior valor desde 2000. A insistência na implantação de mega infraestruturas como a UHE Belo Monte, por exemplo, também agrava as violações. No final de 2021, em torno de 70 organizações da sociedade dos países signatários do Pacto de Letícia e de outros países firmaram uma Carta de recomendações aos membros do Pacto. Entre as propostas prioritárias estão: – Estabelecer processo de diálogo multi-stakeholder para rever o Pacto e suas estratégias de implementação; – Tornar o planejamento do Pacto transparente a nível nacional e garantir mecanismos de monitoramento e avaliação participativos e independentes inclusive na implementação do mesmo; – Incluir instrumentos, estratégias e metas para garantir o reconhecimento e a regularização dos direitos territoriais dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais; – Incluir iniciativas dos povos indígenas para a proteção da Amazônia; – Proteger os defensores ambientais e indígenas. Nesse aspecto, o acordo de Escazú é um elemento chave para o desenvolvimento do Pacto; – Incorporar uma visão inclusiva da bioeconomia, bem como, eliminar créditos e incentivos fiscais ao desmatamento, com apoio para a recuperação de áreas degradadas; – Construir uma estratégia clara e inovadora de infraestrutura sustentável e inclusiva em nível local e regional, incorporando lições para evitar a repetição de erros históricos, com prioridade para as necessidades e iniciativas de subsistência das comunidades amazônicas no campo e nas cidades. -A Iniciativa Amazônica do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que foi aprovada na Terceira Reunião de Cúpula do Pacto de Letícia prevê o investimento direto via Fundo Verde do Clima (GCF) de U$ 279 milhões em Bioeconomia que, segundo critérios apresentados vai favorecer a agrofloresta sustentável, o cultivo de palmeira nativas, espécies nativas para produção madeireira, produtos florestais naturais não-madeireiros, aquicultura e turismo de natureza focado em comunidades locais. A luta é para que as populações que moram na Amazônia, nas cidades, nas aldeias, nas vilas; sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhos ou organizações que lhes dão suporte, possam ter acesso a esses recursos, participar do processo de planejamento desses investimentos, de modo a manter uma consonância com os anseios locais e não olhar, passivamente, enquanto o capital avança sobre a floresta, sobre os recursos naturais e sobre os direitos humanos atendendo a meia dúzia de pessoas e grupos econômicos que muitas vezes nem a Amazônia conhecem. Esperamos que a infraestrutura seja para a Amazônia e suas populações e não na Amazônia, que possa atender às cadeias de valor e aos empreendimentos locais. No início da reunião anual do BID, neste 28 de março de 2022, a sociedade civil organizada dos países amazônicos fez um pronunciamento de alerta. A transparência, a governança e as salvaguardas apregoadas pelo BID precisam ser colocadas em prática e não ficarem penduradas em quadro na parede do departamento de Sustentabilidade – pra inglês ou indígena ver. * Claudio de Oliveira é jornalista, consultor do Instituto Centro de Vida/ICV, membro do GT Infraestrutura, mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT). Este artigo foi, originalmente, publicado no Um Só Planeta.  

Da Amazônia gritamos pela paz

A guerra atual na Ucrânia é um evento de dimensão histórica que já está remodelando o sistema internacional nos níveis econômico, comercial, geopolítico, social e ambiental. Existem outras guerras e agressões armadas no planeta que também condenamos (Palestina, Somália, Síria, etc.), mas nenhuma delas tem o potencial de escalar e desencadear uma catástrofe nuclear com consequências imprevisíveis. Esta é uma guerra que está ocorrendo no contexto do ressurgimento das lutas inter-imperialistas. Da Amazônia fazemos um chamado à paz, exigimos o fim imediato dos bombardeios e a retirada das tropas russas da Ucrânia e somos solidários com o povo da Ucrânia. Não temos dúvidas de que a OTAN, com sua política expansionista e militarista, contribuiu fortemente para criar as condições para esta guerra, mas hoje é Putin quem está bombardeando, massacrando e forçando um êxodo de milhões de ucranianos. A invasão russa deve parar para que cessem as mortes e as negociações entre as partes leve à restauração da paz e à reconstrução da Ucrânia. Não estamos com nenhuma das potências imperialistas. Defendemos o fim de todas as armas nucleares e de destruição em massa dos EUA, Rússia, OTAN, China e de todos os sub-imperialismos regionais. A ideia de que a paz pode ser garantida através de armas é um absurdo que fracassou. Defendemos o desmantelamento da OTAN e de todas as alianças e iniciativas militares que promovem o armamento e a expansão de suas esferas de influência, a fim de supostamente garantir a paz. Convocamos à criação de um bloco mundial para a paz a partir da perspectiva dos povos contra todas as guerras e do distensionamento mundial. Queremos denunciar a toda a comunidade internacional que a guerra na Ucrânia está sendo usada para aprofundar a agressão contra a Amazônia e seus povos. A Amazônia está sofrendo a exacerbação das práticas mais conservadoras: nacionalismo, machismo, racismo, fanatismo religioso, individualismo e outros que geram e fortalecem regimes autoritários para melhor explorar os povos e a natureza. A Câmara dos Deputados busca aprovar, em regime de urgência, a Lei nº 191/20 que autoriza a mineração, extração de petróleo e atividades similares em territórios indígenas. A justificação de Bolsonaro é que a guerra na Ucrânia está colocando em risco o fornecimento de fertilizantes para o setor agroindustrial, apesar de ser sabido que os atuais estoques de potássio, em sua maioria localizados fora dos territórios indígenas, são suficientes para abastecer o Brasil por várias décadas. O que realmente se busca através destas leis é a expansão da mineração, particularmente da mineração de ouro, que se espalhou por toda a Amazônia. A Amazônia foi profundamente fragilizada pela crise sanitária e climática, à qual as potências nacionais e internacionais não foram capazes de dar uma resposta estrutural. A pandemia aprofundou o extrativismo e agora a guerra está acelerando ainda mais a expansão da fronteira agrícola e do agronegócio. Os altos preços de certas commodities (petróleo, ouro, alumínio, zinco, cereais, soja, carne e outros) estão fortalecendo o autoritarismo e as ações anti-indígenas para desapossar os povos amazônicos de seus territórios e apoderar-se dos recursos naturais. Nossa casa comum está sob ataque. Estamos testemunhando uma violação em larga escala dos direitos da Natureza na Amazônia e no mundo. A guerra está exacerbando o ecocídio, o etnocídio e provocando um novo genocídio. A militarização do planeta está fortalecendo as estruturas patriarcais onde reina a lei do mais forte e autoritárismo. A exploração da natureza e dos territórios é também a exploração dos corpos das mulheres e das comunidades feminizadas. Testemunhamos a masculinização patriarcal da sociedade, através da guerra, em vez de avançarmos em direção a uma eco-sociedade do cuidado, com respeito e reciprocidade com todas as vidas. A guerra na Ucrânia está produzindo um retrocesso da agenda climática e consumindo bilhões de dólares que são necessários para enfrentar a crise climática. Defendemos o corte dos orçamentos mundiais de guerra e defesa, utilizando esses recursos para enfrentar a crise ecológica e o agravamento da pobreza global. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), que é um aviso terrível para a humanidade, foi ofuscado pela crise humanitária causada pelo bombardeio da Ucrânia. Países como a Alemanha estão discutindo a expansão da mineração de carvão para enfrentar a crise energética. O conflito militar encoraja as indústrias sujas de combustíveis fósseis e adia a ação global contra a crise climática. A busca da paz tem que acontecer em todos os níveis. Não pode haver paz na Terra se não houver paz com a Terra, se não houver paz com os povos indígenas, se não houver paz com as mulheres, se não houver paz com todas as culturas, se não houver paz com a natureza. Neste caminho, queremos chamar todas as organizações sociais do mundo a participar ativamente do processo em direção ao X Fórum Social Pan-Amazônico que acontecerá de 28 a 31 de julho em Belém do Pará, Brasil. A terrível crise da guerra deveria nos fazer refletir sobre alternativas estruturais e sistêmicas que levem a uma reengenharia do multilateralismo das Nações Unidas, que se mostrou anacrônica ao lidar com um conflito entre as potências com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. Assim como uma nova organização multilateral surgiu após a Segunda Guerra Mundial, após esta guerra e diante do agravamento das crises climática e ecológica, devemos construir um multilateralismo que incorpore não apenas os Estados em pé de igualdade, mas também os povos e a natureza. Nosso chamado pela paz é um apelo para repensar e reconstruir as estruturas internacionais, nacionais e locais que desencadeiam e alimentam a guerra e o autoritarismo em todos os níveis. ASSEMBLEIA MUNDIAL PARA A AMAZÔNIA 28 de março de 2022 Para se juntar ao clamor da Amazônia, preencha o formulário no link. Español English