ARTIGO: As quatro dimensões da infraestrutura na Amazônia
Natureza, cuidado, serviços e organização coletiva precisam ser considerados para um desenvolvimento que seja bom para o meio ambiente e para as pessoas Alexandre Mansur Quando pensamos em infraestrutura, nos vem à cabeça grandes obras de tijolo, concreto e aço, como pontes, estradas, redes de transmissão de energia elétrica, aeroportos, usinas e assim por diante. Grandes obras de engenharia civil, que gastam muito dinheiro e são muito visíveis. Mas, infraestrutura é muito mais que isso. Os projetos que as pessoas precisam, especialmente, vão muito além desses que causam grandes transtornos e, na maioria das vezes, deixam poucos benefícios para as populações locais. Pensando em mudar essa lógica, o economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Abramovay, defende, em seu livro “Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”, um novo conceito de infraestrutura para a região. Numa abordagem contemporânea, ele apresenta quatro dimensões estratégicas para as mudanças necessárias no bioma, mas que podem ser aplicadas ao desenvolvimento do Brasil como um todo: natureza, cuidado, serviços e organização coletiva. Falaremos mais sobre cada uma delas nos próximos parágrafos. O trabalho responde a uma solicitação do GT Infraestrutura em torno da pergunta: “Quais as infraestruturas necessárias à melhoria da qualidade de vida das pessoas na Amazônia e a suas atividades produtivas vinculadas ao uso sustentável da biodiversidade?” O GT é uma rede de mais de 50 organizações focada no estudo e debate da infraestrutura com justiça socioambiental. Atuando há mais de dez anos, o grupo tem se dedicado a apontar alternativas que eles chamam de infraestrutura que queremos, que é justamente o caminho para o qual essas novas dimensões apontam. Para começo de conversa, Abramovay defende a ideia de que a natureza é infraestrutura, conceito alinhado com o de soluções baseadas na natureza. “A floresta precisa ser encarada como a mais importante e promissora infraestrutura para o desenvolvimento sustentável”, afirma o pesquisador. Já existem bons projetos que levam isso em conta, mas, eles ainda são vistos pelos mercados financeiros como de maior risco que os convencionais, consequência do argumento ainda muito difundido de que a floresta é um obstáculo a atividades econômicas geradoras de renda, especialmente na Amazônia. É urgente combatermos essa lógica. Entre as soluções apontadas pelo pesquisador estão ações como delimitar e respeitar as áreas protegidas — que, atualmente, se encontram sob agressão permanente. Também precisamos fortalecer iniciativas para o uso sustentável da biodiversidade, como o Selo Origens Brasil, que organiza a oferta de produtos vindos do trabalho de comunidades para novos mercados. Além disso, não podemos nos esquecer que as soluções baseadas na natureza devem estar também nas cidades, onde vive a maioria das pessoas. A segunda dimensão é o cuidado, que ganhou repercussão global quando o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, lançou um plano de investimentos alinhado a essa ideia, que considera como infraestrutura atividades que não se ligam a megaprojetos, mas que têm efeitos duradouros sobre a organização social. No Brasil, as dificuldades de conexão e precariedades no sistema de ensino público e dos sistemas de saúde ainda são barreiras importantes para se sair do básico, especialmente em regiões fora do eixo Sul-Sudeste, como é o caso da Amazônia. Nesses lugares, as ONGs, institutos de pesquisa e universidades são hoje responsáveis por parte importante da infraestrutura para a economia do cuidado, procurando métodos e técnicas adequadas às particularidades da região. Reconhecê-las e fortalecê-las é um excelente começo. Os dispositivos básicos da vida contemporânea, como internet de qualidade, mobilidade, saúde, educação e saneamento são o que Abramovay chama de serviços, a terceira dimensão. Especialmente na Amazônia, até a garantia de energia elétrica, dispositivo básico para a conservação de processamento de produtos, ainda é um desafio. Mas, já existem várias iniciativas, especialmente de organizações locais, que nos mostram soluções criativas e adaptadas à realidade das regiões. O Projeto Saúde & Alegria é uma referência, reconhecida pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas), com seu modelo de atendimento com base em embarcações providas de profissionais de saúde, laboratórios e equipamentos, que visitam regularmente comunidades no Pará. Felizmente, não faltam outros e temos muito o que aprender olhando para eles. A última dimensão, que Abramovay chama de organização coletiva, diz que devemos considerar como infraestrutura imaterial “o conjunto de organizações e instituições capazes de estimular a formalização dos negócios e a atuação política de associações e cooperativas, bem como a inserção de seus produtos nos mercados a partir de marcas de qualidade que valorizem seus atributos”. Como um dos desafios, o professor destaca que a criação de marcas de qualidade ainda é um processo que envolve profunda transformação social nas relações das comunidades com os mercados, incluindo a capacidade local de gerir os inevitáveis conflitos internos. No entanto, se considerarmos a cultura material e imaterial dos povos da floresta como uma infraestrutura prioritária, fortalecemos as instituições que atuam localmente e treinarmos quem assessora essas comunidades, temos tudo para fazer dar certo. Além dos caminhos que apresentei aqui, o livro traz uma série de outras recomendações para que as novas dimensões sejam, de fato, incorporadas ao planejamento de obras de infraestrutura na Amazônia. Não faltam caminhos, mas precisamos começar o quanto antes para, de fato, mudarmos a lógica e começarmos a pensar obras que, não apenas parem de acelerar a destruição de nossos biomas mas, principalmente, deixem a vida das pessoas melhor. Esse é o tipo de “progresso” que precisamos e queremos. Para a Amazônia e para o Brasil todo. Este artigo foi publicado, originalmente, no Um Só Planeta. Foto: depositphotos
ARTIGO: Precisamos olhar para as cidades médias da Amazônia
É mais do que hora de repensar o papel urbano na organização do imenso território amazônico Por Fabio Ferraz e Claudio de Oliveira* Os modelos de produção e consumo próprios da economia moderna – ao longo dos últimos 250 anos – se, por um lado, melhoraram o padrão de vida dos seres humanos, por outro, geraram um mapa de desigualdades socioespaciais e impactaram significativamente o meio ambiente em diversos níveis, degradando ecossistemas e causando um aumento na temperatura global com mudanças climáticas imprevisíveis. As chamadas novas economias, que recebem tantos nomes – circular, de baixo carbono, verde, azul, bioeconomia, compartilhada e colaborativa, de negócios e impacto sociais, digital e do conhecimento –, se orientam por competitividade, inovação e empreendedorismo, mas também por princípios de sustentabilidade, governança e responsabilidade social e nos oferecem novas perspectivas para equilibrar conservação ambiental, geração de valor e qualidade de vida às populações. No entanto, para mudar o rumo da história do planeta que nos anuncia uma sucessão de tragédias precisamos, urgentemente, modificar estruturas e mecanismos sociais e econômicos que reproduzem os atuais modelos insustentáveis (business as usual). Mas mudar abruptamente ou por meio de ajustes? Por uma ampla, geral e irrestrita revolução ou por reformas homeopáticas? São diversas as dimensões dessas mudanças: socioculturais, econômico-produtivas, político-institucionais, científico-tecnológicas, educacionais e simbólico-ideológicas. Isso implica em mudanças de currículos e projetos pedagógicos, mas também em regulações. Implica em esforços de governança multinível, tanto quanto em compromissos pessoais e locais. Quando falamos em multinível queremos dizer que há estruturas governamentais e privadas que devem atuar sinergicamente. A Amazônia e seu modelo de desenvolvimento estão no centro desses dilemas: como equilibrar conservação ambiental, geração de trabalho e renda e bem-estar social no seu imenso território? É importante considerar que grande parte da população da Amazônia Legal vive em cidades e que as cidades são instrumentos de ordenamento e de gestão do território – de recursos econômicos, de unidades de conservação, de apoio a populações ribeirinhas e povos originários, de toda a infraestrutura para o desenvolvimento sustentável. Um novo modelo de desenvolvimento para Amazônia – com justiça socioambiental – deve necessariamente dar à rede urbana e, mais especificamente, às cidades médias, um papel de destaque na medida em que são essas que podem servir de apoio às políticas públicas e aos fluxos econômicos, de ligação entre as metrópoles (regionais e/ou nacionais) e as áreas isoladas ou de mais difícil acesso. Para isso, obviamente, tais cidades e municípios precisam ter suas capacidades institucionais, administrativas e financeiras fortalecidas para que possam desempenhar um papel de liderança na governança multinível sobre o território. Nesse processo, a participação da sociedade civil organizada de base local é condição sine qua non como forma de democratizar as políticas públicas urbanas e ambientais e de assegurar os interesses de suas populações. No momento em que o Governo Federal se abre à proposição de novas políticas públicas – em especial os Ministérios do Meio Ambiente, das Cidades, do Desenvolvimento Regional e dos Povos Originários – é mister que coloquemos em discussão uma nova perspectiva de convívio harmônico das populações da Amazônia com seu bioma, em que as atividades econômicas e culturais e os serviços ambientais beneficiem aos amazônidas, ao país e a todo o Planeta Terra. *Fábio Ferraz e Claudio de Oliveira são membros do GT Infraestrutura, uma rede de mais de 50 organizações engajadas em prol de um Brasil com mais justiça socioambiental Este artigo foi publicado, originalmente, no Um Só Planeta. foto: depositphotos