Novas hidrovias na Amazônia podem agravar mudanças climáticas, alertam especialistas

Por Tiffany Higgins | Publicado originalmente em Mongabay. Resumo: Embora o transporte hidroviário seja promovido como redutor de emissões, a verdade é que as novas hidrovias propostas nos rios Tocantins e Madeira aumentariam as emissões de carbono e o desmatamento, segundo especialistas ouvidos pela Mongabay. A dragagem e derrocagem de rios cada vez mais secos para a abertura de novos canais pode não atingir o objetivo do agronegócio brasileiro, de ter transporte mais barato durante o ano todo; especialistas sugerem que as ferrovias atuais têm custos semelhantes ​e são mais resistentes às mudanças climáticas. Os novos planos para a construção de canais de navegação comercial usaram dados antigos e não fizeram projeções de riscos climáticos nem estudos de impacto sobre o clima; especialistas dizem que há possibilidade de perda de dezenas de bilhões de investimentos, deixando “ruínas” e “projetos abandonados”. Uma ação civil pública movida em agosto por procuradores da República acusa o licenciamento para a derrocagem e a dragagem de um trecho de 500 km do Rio Tocantins de ser um “artifício” ilegal para evitar a análise ambiental completa, exigida por lei, de todo o canal Araguaia-Tocantins, para o qual nunca se fez estudo de viabilidade; em março de 2022, o Ibama estabeleceu que a hidrovia no Tocantins era “inviável”.O Brasil está prestes a investir dezenas de bilhões de reais na construção de mais de 2 mil km de novos canais de navegação em rios da Amazônia – o que, segundo especialistas, pode resultar na conversão de terras de povos tradicionais à agricultura com alta emissão de carbono.     Em outubro de 2022, o governo de Bolsonaro, que deixava o cargo, emitiu uma licença preliminar atestando a suposta viabilidade socioambiental dos primeiros 500 km de uma hidrovia Araguaia-Tocantins na Amazônia oriental, há muito sonhado, que pode chegar a ter entre 2 mil a 3 mil km de extensão. Em agosto, procuradores da República entraram com uma ação civil pública pedindo que a licença da era Bolsonaro, que continha falhas “graves”, fosse anulada e que o Ibama fosse impedido de emitir a licença de instalação. Eles apontaram várias ilegalidades na licença prévia: “A licença nunca comprovou a viabilidade socioambiental”, disse o procurador Sadi Flores Machado à Mongabay. Emitida com 27 estudos “pendentes”, sem os quais era impossível avaliar a viabilidade, a licença do trecho da hidrovia Araguaia-Tocantins nunca deveria ter sido concedida, constituindo “desvio de finalidade do Ibama”, acusam os procuradores. “O número [de estudos que faltam] nessa fase é alto”, disse à Mongabay a ex-diretora do Ibama, Suely Araújo. “Você pode deixar algumas pendências na licença prévia, mas não estruturais, que sejam importantes o suficiente para mudar a viabilidade ambiental do empreendimento.” Por causa desses estudos, que há muito precisam ser feitos, em março de 2022, o então diretor de licenciamento do Ibama, Jônatas Souza da Trindade (ex-aluno de Araújo), assinou um documento declarando a “inviabilidade ambiental das obras”. Meses depois, após a intervenção do Ministério da Economia, Trindade voltou atrás, sem apresentar justificativa técnica, e emitiu uma licença prévia, excluindo o despacho com suas conclusões anteriores do processo oficial da obra no Sistema Eletrônico de Informações. “Isso é irregular”, disse Araújo. “Você pode mudar de posição, mas tem que ter a coragem de explicar: estou mudando de posição, e as razões são essas. Mas eu não posso sumir com a minha primeira posição no processo [oficial].” A licença exclui ilegalmente milhares de pessoas de povos tradicionais que vivem naquele trecho do Rio Tocantins e dependem dele para pesca e navegação, e os classifica sumariamente, sem evidências, como “não na área de impacto direto” para cortar custos. A licença também “está subdimensionando os danos, e isso é muito grave”, diz o procurador Machado. Trindade se recusou a exigir o diagnóstico de um ano de desembarque pesqueiro pelos pescadores, um “marco zero do licenciamento”, de acordo com Machado. Sem isso, as consequências são “muito graves”, pois é impossível avaliar futuros danos à renda e à segurança alimentar dos pescadores. Isso é necessário para a indenização, segundo o princípio do poluidor-pagador que está na legislação ambiental, ou seja, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) deve pagar por qualquer dano que causar. O DNIT alega que não é responsável pelos danos das operações do canal de navegação comercial. Nilton Lopes de Melo, da Vila Tauiry, disse à Mongabay que o plano do DNIT de “dar um salário mínimo por 30 meses” após as detonações do rio é totalmente insatisfatório. “Os nossos poços envenenados, porque bebemos a nossa água do rio, e os peixes envenenados pela dinamite, que ninguém vai querer comer” durarão muito tempo após as explosões acabarem, deixando os moradores sem sua principal fonte de renda. Eles exigem indenização por família e acusam o DNIT de “violar [nossos] direitos como povos ribeirinhos tradicionais”. O licenciamento do canal significa que “a gente está criando a pobreza e os refugiados climáticos por obra do próprio Estado”, diz o procurador Machado. Esses danos e custos recairão não apenas sobre os contribuintes brasileiros, mas também, devido ao aumento das emissões do desmatamento incentivado pelo canal, “sobre a sociedade como um todo”. Mesmo assim, o Ibama está prestes a permitir que a licença de três anos para as explosões do Rio Tocantins comece a valer em 2025. “Para o Ministério Público Federal, qualquer licença expedida será ilegal”, diz uma mensagem enviada pelos procuradores à Mongabay. “A ação foi apresentada à Justiça Federal em 16 de agosto de 2024 e, desde então, aguarda decisão judicial.” O DNIT  tenta, ilegalmente, licenciar apenas um trecho da proposta da hidrovia Araguaia-Tocantins para evitar a revisão completa de sua viabilidade socioambiental em todos os trechos planejados, descumprindo uma decisão de 2009, acusam os procuradores. Esse trecho de 500 km é um Cavalo de Troia, e abre a porta para um canal Araguaia–Tocantins que pode chegar a ter entre 2 mil e 3 mil km, exigindo a construção de várias megabarragens, sem que se avaliem os impactos “sinérgicos” sobre comunidades e ecossistemas nos estados do Maranhão, Tocantins, Mato Grosso e Goiás, e sem consulta a essas comunidades, diz