ARTIGO: Você sabe o que é bom pra mim? E eu, não!?

A democracia exige consulta, participação popular e comum acordo. É na tirania que se impõe a vontade de um ou de poucos a despeito da população, o amazônida deve falar por si

Claudio de Oliveira*

Você já pensou se uma pessoa ou empresa resolvesse fazer uma obra no quintal da sua casa e sequer lhe consultasse sobre o assunto? Se você, por acaso, já construiu uma casa, sabe bem a importância de um projeto arquitetônico. Nem todo mundo tem a possibilidade ou condição de contratar um arquiteto, mas nunca compraria tijolo, cimento e piso sem calcular a necessidade.

Em uma casa familiar, os proprietários conversam antes de decidir quais são suas necessidades e prioridades. O arquiteto, quando contratado, vai conversar com eles para entender as demandas, quantos filhos têm, se recebem hóspedes, quanto tempo passam no quarto, como querem o banheiro, se a cozinha vai ser integrada à sala e se a casa terá quintal. São tantas as variáveis que é inconcebível construir antes de planejar, mas, antes disso, vem a decisão, que precede o planejamento.

Quando se trata de uma obra de infraestrutura não é muito diferente. Primeiro, precisamos definir o que vamos fazer, o que de fato precisamos. Na sequência, iniciamos o planejamento. O problema é que as obras na Amazônia, há décadas, são decididas e planejadas por Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Muitas vezes são executadas sem a devida consulta livre, prévia e informada (CLPI), exigência da Organização Internacional do Trabalho, em sua convenção 169, assinada e incorporada ao ordenamento brasileiro.

Quando falamos em “consulta livre”, entendemos que as populações indígenas ou tradicionais podem ser contra ou a favor da obra. “Prévia” quer dizer que essa consulta deve ocorrer antes de tomada a decisão. E “informada” é para garantir que a população consultada saiba exatamente o que está em jogo, numa linguagem acessível a ela.

Quando olhamos para o protocolo padrão no governo, vemos decisões sendo legitimadas depois de já terem sido tomadas internamente. Não há CLPI realmente. Isso sem falar que ainda deveríamos acrescentar, nas consultas, a realidade das cidades. Ou construir uma dúzia de portos em Miritituba não impacta a vida da população urbana?

O GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental atua há dez anos capacitando organizações da sociedade, movimentos de base e comunidades para entender melhor o que está em jogo no cenário da energia e do transporte. Há alguns anos, passamos a estudar e promover um entendimento no âmbito das cidades amazônicas, em temas como mudanças climáticas, adaptação, saneamento básico, desenvolvimento sustentável.

A pergunta norteadora dos estudos é um mantra dentro da rede: qual é a infraestrutura que queremos? E a resposta tem guiado nossas ações: uma infraestrutura PARA a Amazônia e não NA Amazônia.

No ano passado, reunimos quase cem pessoas de 40 organizações, movimentos sociais e indígenas, em Alter do Chão, no Pará, ocasião em que ficou clara a importância da floresta na vida das pessoas. Presente no encontro, Maura Arapiuns, secretária do Conselho Indígena de Tapajós Arapiuns, foi enfática ao dizer: a maior infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé. Pensando nisso e em consonância com a demanda local, o GT Infra apresentou à equipe de transição o que espera do novo governo no quesito infraestrutura.

Não se trata de dizer o que não queremos, mas daquilo que queremos. Queremos um desenvolvimento sustentável que valorize os arranjos produtivos locais e os produtos da sociobiodiversidade. Queremos que as pessoas que moram na Amazônia tenham saneamento básico, hospitais e condições de escoar os seus produtos. Queremos que as inúmeras instituições de ensino da região tenham verba para estudar a realidade local e sejam consultadas antes das tomadas de decisão, para a construção do planejamento. Queremos que as populações locais tenham voz e vez.

Queremos que as pessoas e movimentos sociais de base sejam capacitados para atuarem em cooperativas (se quiserem), que alcancem o mercado brasileiro e o mercado externo, que tenham acesso a crédito. Queremos uma infraestrutura do cuidado com as pessoas. Queremos incentivar a mini e microgeração distribuída que melhor atende à realidade amazônica. Queremos água potável e tratamento de esgoto que contemple as cidades amazônicas, mas também as comunidades isoladas, que dão exemplo de maneiras sustentáveis de garantir esses direitos.

Queremos os rios limpos e livres, como fonte de vida. Queremos a substituição de toda a geração de energia a base de óleo diesel na Amazônia. Queremos o BNDES valorizando a sociobiodiversidade. Queremos as instituições financeiras sendo cobradas por investimentos em projetos que geram impacto negativo na vida das pessoas, que as salvaguardas não sejam apenas uma maquiagem verde ou formas de fazer greenwashing.

Trabalhamos para que a população conheça os caminhos para pleitear os seus direitos, seja na prefeitura, no governo, na União, seja com auxílio do Ministério Público Estadual e Federal, da Defensoria Pública, dos Tribunais de Contas. A participação popular, a governança e a transparência fazem parte do regime democrático e o processo de capacitação para incidência deve ser permanente, trata-se do “I” da CLPI.

Uma boa referência para pensar o desenvolvimento sustentável são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Eles trazem parâmetros, metas e indicadores. Mas essas diretrizes precisam ser adaptadas à realidade amazônica por sua população, pois foram pensadas fora do país. Ainda que tenham envolvido um grupo maior de pessoas e organizações em relação aos seus antecessores, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), não são infalíveis ou passíveis de implantação automática.

O GT Infraestrutura vê com bons olhos o espaço para diálogo, a abertura de departamentos e secretarias, na estrutura federal e se coloca à disposição para construir o diálogo necessário antes das tomadas de decisão e planejamento.

*Claudio de Oliveira é membro da secretaria executiva do GT Infraestrutura, uma rede de mais de 50 organizações engajadas em prol de um Brasil com mais justiça socioambiental

Este artigo foi publicado, originalmente, no Um Só Planeta (25/1/23)

imagem: depositphotos

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