O workshop “Planejamento Estratégico no Setor de Transportes: Caminhos para Sustentabilidade com Transparência e Participação Social” ocorreu em Brasília no dia 12 de setembro, mas até hoje reverbera no coração de quem esteve lá
Marcelo Vidal, então Coordenador-Geral de Transparência Ativa e Dados Abertos da CGU resume em uma frase o ineditismo da ação: “Se me dissessem há seis anos que eu estaria reunido com o governo federal, os órgãos de controle e a sociedade em uma sala para debater sobre infraestrutura durante um dia inteiro, eu diria que a pessoa era louca, mas aqui estamos”. O workshop reuniu representantes de ministérios e de órgãos reguladores com representantes da sociedade civil para discutir sobre a necessidade de uma nova forma de realizar o planejamento da política setorial de transportes. O evento realizado no dia 12 de setembro, no âmbito da Parceria para Governo Aberto, iniciativa internacional que conta com a participação do Brasil, voltada para melhorar a transparência e participação da sociedade civil nas políticas públicas.
O workshop foi organizado pela Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério dos Transportes (MT), em parceria com o GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra), o Instituto de Energia e Meio ambiente (IEMA), o Instituto Socioambiental (ISA), o Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas (IBRAOP) e a Transparência Internacional – Brasil (TI Brasil).
O objetivo do encontro foi discutir a necessidade de fortalecimento de instrumentos e processos decisórios no planejamento estratégico no setor de transporte, considerando suas dimensões socioambientais, econômicas e políticas, com destaque à região amazônica. George Santoro, secretário-executivo do Ministério dos Transportes, comentou na abertura do evento que é fundamental debater com a sociedade aquilo que queremos dos investimentos em transportes, mas que não basta consultar, é preciso tomar as decisões de forma conjunta, com escutas qualitativas. “É necessário criar mecanismos de consulta para a população. É preciso ter consulta sobre os empreendimentos e os impactos que eles terão sobre a sociedade naquele momento. Isso significa avaliar o planejamento antes da seleção dos projetos, antes da fase de licenciamento ambiental. É uma mudança cultural complexa”, afirmou. O Secretário Executivo reconheceu que, historicamente, o Ministério dos Transportes não tem possuído uma cultura de transparência e participação e que esta cultura precisa ser implementada.
Adriana Portugal, presidente do IBRAOP, argumentou que é preciso mudar as premissas no planejamento de transportes. “As questões ambientais e de sustentabilidade são vistas como risco de negócio. Mas não se trata de risco. Elas devem ser uma premissa e um dado de projeto que precisam ser tratadas desde o início”, diz. Para André Ferreira, diretor do IEMA, “as organizações da sociedade civil estão dando importância crescente a questionamentos acerca do propósito e da gênese dos projetos, reconhecendo a necessidade de participação nas etapas iniciais do processo decisório de infraestrutura de transportes”.
O workshop discutiu a importância de garantir, em cada etapa do processo decisório, a utilização de critérios transparentes, incorporando a análise de riscos sociais e ambientais e de alternativas, desde a fase de planejamento setorial, com ampla e qualificada participação social. Isso é especialmente necessário neste momento em que o Governo Federal está começando a preparação do Plano Nacional de Logística 2050, de forma articulada à Estratégia Brasil 2050 e ao Plano de Transformação Ecológica. Adriana Portugal, do IBRAOP, destacou a importância de planejar, a partir da fase de levantamentos, a priorização de necessidades de transporte com transparência e participação social “Isso é necessário para que o poder público não fique com um conjunto de obras propostas, muitas das quais questionáveis sob a ótica do interesse público, que viram fatos consumados, sobre os quais a sociedade brasileira só vai conseguir debater, de forma parcial e pouco consequente, na etapa do licenciamento ambiental. A transparência deve acontecer desde o início da identificação das necessidades, incluindo até as decisões de prosseguir ou não com determinado projeto.” Amanda Faria Lima, analista da Transparência Internacional – Brasil, completa: “Existe uma oportunidade inédita de fortalecer o setor por meio da transparência, integridade e participação social no âmbito do 6° Plano de Ação de Governo Aberto”.
“Todas as áreas precisam estar abertas à inovação, senão não respondem às necessidades que estão postas”, afirma Marcelo Vidal, Coordenador-Geral de Transparência Ativa e Dados Abertos da CGU. “Integridade não basta parecer. Tem que ser. É preciso atender às necessidades do governo e da sociedade, e o controle social faz diferença no trabalho.” Vidal ainda destacou a importância do workshop como subsídio para o trabalho do 6º Plano de Ação Nacional da Parceria de Governo Aberto, no que tange ao compromisso com a transparência e participação em grandes obras de infraestrutura.
Um dos pontos centrais do debate foi a necessidade de obter um bom processo para decidir prioridades de investimentos em infraestrutura. Para André Ferreira, diretor executivo do IEMA, o Decreto nº 12.022, de 16 de maio de 2024, instituiu a transparência no planejamento integrado de transportes (PIT) e suas instâncias de governança. “É uma oportunidade de ação de governo aberto, de tratar o planejamento integrado de transporte com participação pública no processo decisório. Isso é essencial para garantir que as escolhas sejam feitas segundo o interesse geral do país e resultem em uma agenda de Estado e não apenas na agenda de um ou outro grupo econômico com mais acesso aos tomadores de decisão” . Essa necessidade de decidir melhor com planejamento é apontada pelos próprios órgãos do governo. Gabriela Avelino, subsecretária de fomento e planejamento no Ministério dos Transportes, afirma que está acompanhando os trabalhos de auditoria do Tribunal de Contas da União para atualizar a realização dos planos setoriais de transporte. Ela afirma que a construção dos planos setoriais foi responsabilidade da gestão passada para ser entregue em 2022. “A nova gestão recebeu um rascunho em 2023 com indicadores que foram considerados problemáticos”, diz. O ministério está propondo nesse novo ciclo do PIT, as mudanças metodológicas e oportunidades de participação social, diz Gabriela.
AS VOZES DA AMAZÔNIA
Foram quatro mesas, com técnicos e representantes da sociedade, mas as falas da Mesa 3, repleta de amazônidas, trouxeram muitos participantes às lágrimas. Ver o seu lar ser destruído, inundado por uma usina junto com todas as suas memórias afetivas é de cortar o coração. Na fala da Claudelice Santos, coordenadora do Instituto Zé Cláudio e Maria, de Marabá (PA), ela evocou uma memória de menina com a mãe no barco navegando pelo lago formado por Tucuruí, “fétido com imensas castanheiras apodrecendo”, e afirmou, “se isso não toca o seu coração, não sei o que toca…” Momentos marcantes do impacto da BR-163 na vida dos Panará foram trazidos por Pasyma Panará da Associação Iakiô com fotos e registros documentais, entulhados em um avião cargueiro e levados para o Xingu com a promessa de encontrar os seus parentes, restavam 72 indígenas.
Felício Pontes, Procurador Regional da República / MPF, relatou seu último encontro com o irmão da Claudelice, Zé Claudio, antes de ser brutalmente assassinado junto com a sua esposa 3 meses depois. Zé Claudio, havia dito ao procurador que seu vizinho fora obrigado a cortar a sua castanheira pelos madeireiros que atuavam na região, seu vizinho recebeu R$ 1.500,00, o mesmo valor que ele retirava de uma castanheira todos os anos com a produção, mas o seu vizinho, já não teria a castanheira no ano seguinte, infelizmente, nem a Claudelice teria a presença dos seus familiares.
Para Iremar Ferreira, coordenador do Instituto Madeira Vivo e representante do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, “a oportunidade gerada foi muito importante para nós do Rio Madeira, onde nos foi possível dizer aos representantes governamentais que os planejamentos que fazem em Brasília não refletem o atendimento aos nossos povos e comunidades, os quais são invisibilizados, impactados, não consultados e não beneficiados… queremos sim infraestrutura de transporte para nossas comunidades e povos das águas e das florestas”.
Organizações da sociedade civil destacaram no evento a necessidade urgente de melhorar processos decisórios, considerando os impactos diretos de empreendimentos de transporte na vida das pessoas e nos territórios. Elas cobraram o reconhecimento do direito de participar do planejamento desde o início, antes da tomada de decisões sobre projetos específicos, bem como a necessidade de internalizar as demandas territoriais nos instrumentos e processos decisórios; ou seja, desde a fase de planejamento setorial da política de transportes até a implantação do projeto escolhido. Uma reivindicação de vários participantes foi o reconhecimento do direito à consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais, respeitando seus protocolos de consulta. “A gente fica sabendo quando a obra já está chegando na fase de licença, quando o leite já está derramado, quando só sobra a oportunidade de reduzir os danos. Ninguém fica sabendo antes disso. A gente precisa saber na fase de planejamento, para decidir junto se queremos aquilo ou se precisamos de outra coisa”, afirma Claudelice Santos, coordenadora do Instituto Zé Cláudio e Maria, de Marabá (PA).
A falta de uma hierarquia clara de projetos prioritários, definida de forma transparente e participativa, deixa a população das áreas atingidas à mercê de influências que ocorrem em instâncias bem longe do território afetado. “A gente precisa se questionar a quais interesses atendem as obras propostas na fase de planejamento”, diz Bruna Balbi, coordenadora do Programa Amazônia na organização Terra de Direitos, de Santarém (PA). “As populações da Amazônia precisam deixar de ser vítimas dos empreendimentos e virar beneficiárias”, diz ela. Assim, Balbi destaca que os projetos precisam atender às necessidades das pessoas que moram na Amazônia para melhorar sua produção, sua saúde e segurança. “No entanto, atualmente o método de planejamento remonta aos tempos do governo militar e é preciso repensar esse processo”. Uma das provocações presentes no workshop foi a importância de trabalhar as melhorias estruturantes no âmbito do planejamento integrado de transportes e no PNL 2050, mas também como tratar projetos em curso que são produtos de velhas práticas marcadas pela ausência de transparência e a participação, que têm gerado (e continuam gerando) passivos de impactos socioambientais entre populações locais.
Nas palavras do representante do Movimento Tapajós Vivo, Carlos Alves, “enfrentar o chamado ‘inferno verde’, expressão utilizada durante a Ditadura Militar para descrever a Amazônia, é ignorar que estamos vivendo, mais uma vez, uma seca terrível e histórica. Rios estão desaparecendo, afetando diretamente as grandes bacias hidrográficas. Se a infraestrutura natural está mudando drasticamente, por que ainda insistimos em pensar o desenvolvimento apenas em função do mercado, não seria obrigação do Brasil cuidar da Amazônia e do Tapajós como um patrimônio público? Quem pagará a conta no Final? Os Amazônidas já pagam desde sempre.”
Para Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura e Sustentabilidade Socioambiental, a participação ativa de representantes de comunidades impactadas e de órgãos do governo foi inovadora, mas advertiu: “O desafio agora é ir além das boas palavras dos órgãos de governo e colocar em prática um planejamento transparente e inclusivo para que os projetos representem os verdadeiros interesses da sociedade e não somente de setores específicos, como acontece ainda hoje. Mecanismos para isso, existem”.
Crédito das fotos: Sergio Mouraj