Pedro Bara Neto*
No primeiro ano do seu segundo mandato, o então Presidente Lula abateu em pleno voo o principal questionamento da viabilidade socioambiental e econômica das represas do Madeira.
Recomeçaria ali aquilo que nunca deu muito certo na expansão elétrica brasileira, construir grandes barragens na planície amazônica.
Foi um início patético, com as principais impactadas — as espécies migratórias de peixes, representadas por seu indivíduo de maior valor comercial e ecológico, o grande bagre — com seu futuro decidido antes mesmo de aterrissar no colo do presidente.
Rios amazônicos de água branca, formados a partir de cabeceiras andinas geologicamente instáveis, como o Madeira e o Solimões, carregam grande quantidade de sedimentos, o que provoca uma sequência linear de transferência de matéria e energia, na qual é possível observar organismos servindo de alimento um para o outro.
O efeito dessa progressão, conhecida como cadeia trófica, em um ecossistema de tanta diversidade, como o amazônico, explica as mais de 900 espécies de peixes do Rio Madeira, com os grandes bagres migradores no seu ápice.
Obviamente barrar um rio desses não é uma boa ideia, tampouco um bom negócio.
De fato, em 31 de dezembro de 2020, o prejuízo acumulado da Santo Antônio Energia S.A. era, segundo seu demonstrativo financeiro, de R$ 7,8 bilhões, ou 1,5 bilhões de dólares. No caso da represa de Jirau, o último balanço de acesso público da Energia Sustentável do Brasil S.A., cujo propósito específico é a gestão desse projeto, se refere ao ano de 2013, quando o prejuízo foi de 70 milhões de dólares. Depois disso a empresa foi incorporada pela Energia Sustentável Participações Ltda., ou seja, se “fechou”. Esse foi um sinal de que as perspectivas da empresa, já àquela época, não eram tão animadoras.
Com o barramento dois são os impactos principais sobre os peixes: a mudança do regime hidrológico, que afeta todas as espécies, rio abaixo, e o barramento em si, que afeta rotas de espécies migratórias, tanto de indivíduos adultos querendo subir o rio para se reproduzir em águas andinas mais frias, como de larvas e indivíduos mais jovens, se aventurando rio abaixo.
Nesse ciclo de vida, o grande bagre percorre mais de 8 mil quilômetros, o que significa a maior distância migratória do mundo. Decorridos 10 anos do início de sua operação, nenhum deles conseguiu, até hoje, transpor o primeiro obstáculo colocado no seu rumo andino, a barragem da usina de Santo Antônio.
Essa configuração espacial do impacto de um projeto, conhecida como sua “área de influência”, subdivide-se em 3 componentes: a área diretamente afetada (ADA), a área de influência direta (AID) e a área de influência indireta (AII).
Os estudos de impacto ambiental (EIA) de projetos de infraestrutura e mineração têm minimizado drasticamente sua área de influência indireta. As represas do Madeira representam o caso mais notório desse descaso, em uma estratégia que ajudou a mascarar sua viabilidade socioambiental e econômica.
Repetindo os mesmos erros
Ainda no campo das hidrelétricas, a proposta atual de barrar 800 km do Rio Arinos através da construção da Usina de Castanheira, em Mato Grosso, rota de migração de muitas espécies de peixes de importância para as comunidades indígenas e não indígenas, reforça a falta de sensibilidade socioambiental do setor elétrico brasileiro em relação a necessidade de se manter alguns rios livres. Principalmente, no caso desse projeto, localizado em uma bacia hidrográfica, a do Rio Juruena, onde as principais rotas migratórias já foram barradas.
E todo esse risco socioambiental para gerar pífios 98 MW de energia supostamente firme.
Mas não é só na preparação de projetos do setor elétrico que se minimizam os impactos indiretos.
Também na Ferrogrão, cuja função é a de alimentar um sistema intermodal de exportação de commodities agrícolas do Centro-Oeste, conhecido como “Saída Norte”, esse padrão se repete. E isso se dá ao tratar a influência da ferrovia na miopia da sua construção e não na perspectiva do potencial de captação da carga que a justifique.
Assim, segundo o EIA, a influência indireta da Ferrogrão é de 10 km para cada lado da ferrovia, faixa esta que foi acrescida do contorno remanescente de unidades de conservação interceptadas pela ferrovia. Esse número é muito inferior ao potencial de influência da via, que pode chegar a 400 km a oeste da cidade de Sinop, no Norte de Mato Grosso, seu ponto de partida.
Se esta área de influência for considerada, o ganho logístico proporcionado pela ferrovia pode induzir um novo ciclo de desmatamento do Cerrado ou de conversão de pasto em agricultura intensiva, com implicações para a região noroeste de Mato Grosso, que é parte do bioma amazônico, e que tem se destacado, tanto no avanço da atividade pecuária, como no desmatamento e conflitos pela terra.
Por uma resolução específica para o financiamento de projetos Muito se tem discutido sobre a responsabilidade socioambiental e climática do sistema financeiro, desde a publicação pelo Banco Central, em 2014, dos contornos gerais de estabelecimento e implementação de uma política nesse sentido.
Desde então, entende-se que tal política foi mais efetiva na preparação das instituições para o seu exercício, do que em casos práticos relevantes da sua aplicação. De qualquer forma, os últimos anos foram férteis para o aprendizado de lições, em especial em relação ao risco socioambiental e climático do avanço da agropecuária e de projetos de infraestrutura e mineração.
Talvez por isso, o Banco Central tenha adotado recentemente uma estratégia diferente, ao propor uma resolução específica para o crédito rural.
Por outro lado, para todos os outros produtos e serviços prestados pelo sistema financeiro, manteve-se o caráter genérico de comandos normativos, que desta vez foram incorporados a uma resolução existente, que trata do gerenciamento do risco do capital, onde todos os outros riscos deságuam, o que levou a questão-chave da identificação, avaliação, classificação e mensuração dos riscos socioambientais e climáticos a se perder nesse emaranhado.
Em nome da assertividade e efetividade daquilo que o Banco Central vem buscando há anos, melhor seria que os financiamentos de projetos de desenvolvimento econômico, em especial de infraestrutura e mineração, também fossem objeto de uma resolução específica.
Dessa forma, seria possível garantir mais consistência na avaliação do risco territorial e ecológico destes projetos, a partir da definição de uma área de influência indireta, que seja coerente com a natureza desses investimentos.
*Pedro Bara Neto, é Mestre em Ciências de Gerenciamento de Engenharia pela Universidade de Stanford (EUA) especialista em infraestrutura e energia, com interesse na Amazônia
Este artigo foi publicado, originalmente, no Valor Econômico.
Imagem: Brachyplatystoma rousseauxii (Dourada)
Ilustração de Antônia Bara