A água nossa de cada dia e as violações de direitos

Vários projetos os ameaçam no Norte do país, o que também prejudica o direito à água de quem vive na região. Saiba em que tipo de projetos deveríamos estar pensando

Iremar Antonio Ferreira*

Hoje, dia 22 de março, é o Dia Mundial da Água, um recurso que perpassa várias infraestruturas fundamentais para as comunidades de qualquer localidade. A data comemorativa é também um lembrete de que não temos muito a comemorar, especialmente na região da Amazônia. Além de boa parte da população ainda não ter acesso a serviços básicos, como água e esgoto, os rios da região estão ameaçados. Como explicar que viver cercado de água nem sempre significa ter água para beber?

No primeiro episódio de 2022 do podcast Infraestrutura Sustentável, produção do GT Infraestrutura, eu conversei com o secretário executivo da rede, Sérgio Guimarães, sobre alguns desses motivos. Seja nas bacias dos rios Madeira ou do Xingu, nos rios Teles Pires, Tapajós ou Juruena, um conjunto de obras do governo federal tem provocado consequências irreparáveis nos direitos dos povos e populações que habitam esses territórios. Essas ameaças nos remetem a um processo de colonização desenfreada, desencadeada a partir da década de 1970, com motivações de ocupar para não integrar — lemas do regime militar —, numa tônica que prevalece até hoje. São grandes projetos, que “favorecem a nação”, sem pensar nas comunidades tradicionais, povos indígenas e migrantes que foram chegando à região. Desde então, a bacia do Rio Madeira vem sofrendo, desenfreadamente, ofensivas.

Dentro de uma perspectiva desenvolvimentista e para atender a uma demanda energética sob o fantasma do “apagão”, no início dos anos 2000, começaram estudos para o chamado Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, que é uma dessas grandes ameaças, com licenciamento vicioso, que não considerou participação popular, para começar a citar os problemas. Essa obra também está associada à expansão de uma uma hidrovia, que, aos poucos, está se consolidando, para viabilizar o escoamento de soja, outro ponto que merece destaque, pois coloca veneno dentro dos rios. Os impactos já podem ser vistos. Há pouco tempo, o Rio Jamari transbordou, ocupando a BR 364 por três dias, resultado do desmatamento desenfreado, que acelera o processo de assoreamento.

Esse conjunto de obras se somam gerando impactos e violações de direitos aos nossos povos e comunidades e afetam o direito à água. A água na Bacia do Rio Madeira está poluída e contaminada por essas intervenções mal feitas em nome desse “desenvolvimento”, que arranca as pessoas de seus lugares e se ocupa de um processo mercantilista de escoamento de riquezas, que deixa suas populações, literalmente, à margem. A cidade de Porto Velho, capital de Rondônia, não tem 2% de água tratada. Até lençol freático já está contaminado, o que nos leva também ao tema do saneamento básico, que afeta o direito à saúde da nossa população. Quem tem dinheiro compra água mineral, quem não tem usa a água que tem, muitas vezes contaminada.

A insegurança alimentar e nutricional gerada a partir da implementação desses projetos é um outro problema pouco falado, mas grave. Toda a produção de várzea que as populações tinham, se perdeu, pois não temos mais o tempo das cheias naturais. As áreas ou estão extremamente secas ou alagadas antes da hora, porque quem domina o percurso dessas águas são as empresas. Temos hoje comunidades que vivem na beira do Rio Madeira e precisam comprar farinha na cidade porque não conseguem mais ter produção de mandioca. Nem peixe tem mais, pois o barramento do rio proibiu a migração natural das espécies que lá viviam.

É importante lembrar que, na Amazônia, os rios também são estradas. E a implementação de hidrovias está afetando o direito de ir e vir das populações, principalmente para as pequenas embarcações, já que as grandes balsas, carregadas de petróleo e soja, estão destruindo o rio. Isso sem falar em um dos assuntos do momento: os garimpos ilegais. É muito mercúrio sendo jogado no Rio Madeira, que virou um depósito de contaminantes para alimentar uma cadeia produtiva. O problema aumenta porque, lamentavelmente, esta é uma atividade motivada por quem deveria fiscalizá-la, como nos mostra claramente este projeto que quer legalizar a extração de minérios em territórios indígenas. Tão grave, que diversos setores da economia que até poderiam se beneficiar disso, se manifestaram contra.

O GT Infraestrutura trabalha com a “infraestrutura que queremos”, que diz respeito a projetos que atendam as pessoas da Amazônia e não que sejam apenas na Amazônia. Pensando nessa lógica, acredito que precisamos mudar a lógica atual, que é de saque. Temos que olhar para a floresta, com toda a sua diversidade, como um sujeito de direito. E, principalmente, a água. Nesse sentido, temos muito a aprender com os povos indígenas, que vêm demonstrando resistência há mais de 520 anos, junto com as populações tradicionais, que foram aprendendo a conviver com a natureza, respeitando-a. Sem esquecer que cuidar da floresta é também garantir chuva e água nos rios. Muito mais que um serviço ambiental, estamos falando de um serviço ecossistêmico que está ameaçado porque a Amazônia de hoje está perdendo milhares de hectares ano a ano e não é mais a mesma.

Precisamos considerar a Amazônia como um todo, com seus povos e culturas e sua etnobiodiversidade, entendendo que ela é formada por ecossistemas diferentes e cada um tem o seu potencial. É preciso que as políticas públicas olhem para isso, garantindo os territórios, fundamentais para o equilíbrio do Brasil e do planeta como um todo, que precisa de uma floresta em pé, não deitada. As soluções já existem. Embarcações, por exemplo, podem funcionar com energia solar e não com combustível poluente. Nossas comunidades da beira do rio precisam de potabilizador de água para não continuarem tomando água contaminada. Ao invés de hidrelétricas, podemos investir em fontes de energia renováveis. Nós temos caminhos, mas é preciso ter esse carinho de olhar e ver que a Amazônia não é um balcão de negócio, mas é um grande negócio sim. Para o futuro, para a vida, não para alimentar lucro. Temos muitas saídas, só precisamos fortalecê-las.

* Iremar Antonio Ferreira é membro-fundador do Instituto Madeira Vivo e articulador do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, do Comitê Internacional do Fórum Panamazônico e do Projeto binacional “Pela Vida Caminhamos Juntos na bacia do Madeira”. Também é membro do GT Infraestrutura, uma rede de mais de 40 organizações unidas pela construção de projetos com mais justiça socioambiental.

Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.

Foto: Iremar Ferreira

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