Ciclo WebGTInfra - Capítulo 2

Renovação verde da infraestrutura

Trajetória histórica de grandes obras, novos conceitos e as vozes dos povos

A pandemia abriu um novo espaço de disputa em torno dos modelos de desenvolvimento socioeconômico. Esse cenário reforçou a necessidade de repensar conceitos e estratégias para uma recuperação sustentável e inclusiva. A fim de fomentar a discussão, o segundo webinar da série de encontros desenvolvida pelo GT Infraestrutura teve como tema: “Renovação Verde da Economia e Infraestrutura no Pós-Pandemia: Repensando Conceitos e Estratégias”, mesa realizada no dia 19 de agosto de 2020.

Moderadora

Tatiana Oliveira

Assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)

Convidada

Diana Aguiar

Assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado

Convidado

Ailton Krenak

Professor e líder indígena

Convidado

Ricardo Abramovay

Professor do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo

Ideias-chave

  • Infraestrutura não é apenas uma questão logística, exclusiva para a indução de atividades econômicas. Ela exige um estudo socioeconômico e precisa atender a um propósito ou a uma demanda para ser efetiva e não gerar um impacto local negativo e agressivo.
  • Segundo Aílton Krenak, a infraestrutura deve ser planejada a partir de diferentes perspectivas, como a dos povos, que vivem nas regiões onde são feitas as construções, e a da natureza, que também deveria ser vista como uma estrutura por si só.
  • O professor Ricardo Abramovay sugere: “se mudarmos a matriz de raciocínio a respeito de infraestrutura e tivermos como base as pessoas que vivem na Amazônia, teremos um horizonte extraordinariamente fértil, inclusive de crescimento econômico.”
  • Para o diretor-presidente do IEMA, aperfeiçoar os projetos do ponto de vista da sociedade civil é dialogar sobre seus interesses antes da existência de um projeto.
“Tanto o Inesc quanto o GT Infraestrutura e as organizações que o compõem se comprometem publicamente com a divulgação e valorização da cosmovisão de povos e comunidades tradicionais”, afirmou Tatiana Oliveira, na abertura do evento. “Eles devem ter voz mais ampla nos debates e discussões sobre o futuro da economia e da comunidade política em que todos nós nos encontramos.”
Trajetória Histórica
“Cada vez mais a infraestrutura na Amazônia tem servido a todo o processo de devastação no Cerrado”, disse Diana Aguiar. A assessora explicou que o escoamento da soja produzida pelo agronegócio passa por portos da região Norte e que a infraestrutura construída para essa logística não atende nem respeita a população da região.

Veja detalhes da trajetória histórica no vídeo a seguir:

Uma primeira questão chave para a gente entender é que, historicamente, em muitas abordagens econômicas a infraestrutura é vista como indutora do crescimento, indutora do crescimento econômico. Isso em si não é uma ideia falsa, tem uma ideia keynesiana por trás disso, que é essa coisa de que quando voê faz uma obra voê mobiliza trabalhadores da construção civil e isso geraria crescimento econômico. Mas, uma coisa que nunca se fala é: desenvolvimento para que e para quem, infraestrutura para que e para quem. E eu acho que essa é a pergunta de fundo que está aqui para a discussão que a gente está tendo hoje.
Ao mesmo tempo, além de ser a obra de infraestrutura em si vista como indutora de desenvolvimento, a gente tem que entender que ela também é vista como viabilizadora de atividades econômicas, ela raramente é uma coisa em si mesma. Ela é, por exemplo, uma infraestrutura que vai permitir a extração e o escoamento de minérios para a exportação, muitas vezes.
Se a gente pensa nas grandes infraestruturas históricas do Brasil, por exemplo, para escoar minério de ferro de Carajás, a infraestrutura para fazer a extração do minério e a Ferrovia Carajás. Uma grande obra como Tucuruí, construída em grande medida para prover energia para a indústria siderúrgica na região de Barcarena, para transformar bauxita em alumínio. Então historicamente essas infraestruturas são construídas para viabilizar atividades econômicas, essa é uma questão chave.
E cada vez mais, se a gente for olhar, os programas de infraestrutura dos últimos anos, nos sucessivos governos – e nesse não é diferente -, as principais infraestruturas que estão colocadas, cada vez mais, são as infraestruturas logísticas para o escoamento de commodities, sobretudo soja produzida no Cerrado, na transição Cerrado-Amazônia e nas ilhas de Cerrados amazônicos.”
Diana citou ainda a expressão “consenso das commodities”, cunhada pela socióloga argentina Maristela Svampa, para se referir ao pensamento único de que temos o destino manifesto de exportar commodities. “Desde a colonização, o Brasil é uma plataforma de exportação”, disse. Segundo ela, esse consenso também entra no mérito da infraestrutura, dada sua necessidade para a exportação.
Diana citou ainda a expressão “consenso das commodities”, cunhada pela socióloga argentina Maristela Svampa, para se referir ao pensamento único de que temos o destino manifesto de exportar commodities. “Desde a colonização, o Brasil é uma plataforma de exportação”, disse. Segundo ela, esse consenso também entra no mérito da infraestrutura, dada sua necessidade para a exportação.
Repensando a infraestrutura
Para trazer uma nova noção ao conceito de infraestrutura, o professor Ricardo Abramovay usou um exemplo: a criação de animais na pecuária faz parte da infraestrutura a partir do momento que eles estão “ultraconcentrados”. O profissional explica que, nos criadouros, há uma homogeneidade que facilita a transmissão viral e exige o uso de antibióticos. “É uma infraestrutura da produção alimentar que está nos levando a uma dependência doentia de insumos químicos.”

O professor também trouxe dados e definições sobre a infraestrutura no Brasil:

O Brasil investia 5% do PIB em infraestrutura no início dos anos 1980 e isso caiu para menos de 2%. Os economistas, em geral, trabalham dizendo que precisamos investir ao menos 4% do PIB em infraestrutura. Só que a questão é a mesma que foi colocada pela Diana, de certa forma é a mesa questão que se coloca quando a gente fala em crescimento econômico. É óbvio que a gente precisa de crescimento econômico. Nós precisamos de mais escolas, mais saúde, internet melhor, mas que crescimento econômico? A gente não quer mais carro na rua, não quer mais poluição, não quer mais alimentos ultraprocessados.
Para responder essas perguntas, como bem disse a Diana, a base é a gente pensar na infraestrutura. Por que? Porque a infraestrutura tem a característica de ser uma espécie de ossatura da organização da oferta de bens e serviços para a sociedade. A infraestrutura não é apenas a infraestrutura construída, ela é também a infraestrutura que nos é gratuitamente oferecida pela natureza, aliás que as empresas usam sem pagar.
Por exemplo, há um estudo muito interessante feito ao final do ano passado mostrando que os custos não pagos pelas empresas agropecuárias na utilização dos serviços ecossistêmicos dos quais os produtos que ela oferece depende, isto é, as emissões de gases do efeito estufa, a erosão da diversidade, o uso do solo, etc. Esses custos hoje são superiores ao que as empresas faturam. Só que esses custos não fazem parte dos sistemas de preços e a gente paga por eles constatando a destruição. Se as empresas pagassem pelo uso de serviços ecossistêmicos, que lhe são oferecidos gratuitamente e que sistematicamente elas destroem, as empresas não teriam lucro. Isso é um dado de um relatório norte-americano de 2018 referente às 1600 maiores corporações globais.
Sobre as commodities, Abramovay acrescentou que tal modelo de infraestrutura gerou uma dependência das mesmas rotas, considerando pequenas reduções de emissão de gases do efeito estufa como sustentabilidade. “Essa é uma visão errada. Sustentabilidade é um valor referente à maneira como se processa a relação entre sociedade e natureza.”
Vozes dos povos
Para o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak, a infraestrutura precisa ser totalmente repensada. “A voz dos territórios nunca foi ouvida dentro de um contexto colonial e colonizante. Nós não temos uma infraestrutura cogitada para esse continente”, comentou. Segundo ele, a América do Sul apenas recepcionou projetos que visavam os territórios como uma plataforma extrativista. “Os povos poderiam expressar novas visões de mundo e novos desenhos para a infraestrutura.”

O escritor ainda falou sobre sua experiência:

Os territórios não são ouvidos e me preocupa muito, desde a experiência da aliança dos povos da floresta, que ela se deu em um ambiente em que o mundo, no final do século 20, sonhava com uma perspectiva de futuro imediato muito melhor do que esse caos que estamos experimentando, desgoverno global e uma desistência das pequenas nações da América do Sul de constituírem expressões políticas próprias e de projetos com colaboração entre nós. Estamos ficando cada vez mais sozinhos, digamos assim.

Como a história colonial impregnou nossa perspectiva de país e de povo, o Brasil nunca foi capaz de pensar uma infraestrutura que fosse coerente e correspondesse aos territórios.

Krenak reforçou a necessidade de mudarmos a relação com a natureza, os países vizinhos e, consequentemente, a infraestrutura. “Deveríamos ter infraestruturas de escuta, criadas a partir do chão, coladas na natureza. A infraestrutura primordial é a natureza”, finalizou.