Os que sabem das consequências e se omitem têm a mesma responsabilidade dos que, por ganância ou ignorância estão forçando uma decisão catastrófica para o país
Por Sérgio Guimarães | Artigo publicado em Um Só Planeta.
“Na área ambiental, os ganhos são provisórios, e as perdas são definitivas” — José Lutzenberger
As agressões sofridas pela Ministra do Meio Ambiente Marina Silva no Senado Federal no final de maio, escancaram mais uma vez para a sociedade brasileira, não só o baixo nível de civilidade de parte de senadores, mas também e principalmente dos argumentos que têm embasado suas decisões. Além da inaceitável ofensa pessoal à Ministra, trata-se de um ataque à política socioambiental brasileira que Marina representa e defende há décadas, com reconhecimento nacional e internacional.
Os ataques são apenas uma face de um problema mais profundo: a ofensiva legislativa em curso contra a proteção ambiental no país. Recentemente aprovado no Senado, o Projeto de Lei 2.159/2021, apelidado de “PL da devastação”, propõe o desmonte das regras do licenciamento ambiental no país; o que na prática autoriza a ampliação da devastação ambiental do Brasil com suas graves consequências sociais e econômicas. Representa um retrocesso sem precedentes na legislação ambiental do país e, como afirmou Marina, “quando o Congresso legisla contra a proteção ao meio ambiente, quem mais perde é a sociedade”.
O licenciamento ambiental é um instrumento essencial de proteção social e ambiental. Ele garante que empreendimentos potencialmente danosos sejam avaliados antes de sua implantação, estabelecendo medidas mitigadoras e compensatórias. Enfraquecer esse processo é colocar em risco a população, especialmente os mais vulneráveis – os quais o governo diz ter o compromisso de proteger.
Um dos dispositivos mais perigosos do PL aprovado é a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que permite a autorização de empreendimentos apenas mediante uma autodeclaração, sem necessidade de anuência de órgãos estaduais ou do IBAMA – o que significa que eles não mais precisarão realizar estudos de impacto ambiental, nem tampouco definir medidas compensatórias, caso a atividade cause danos ambientais.
Segundo Suely Araújo, ex-presidente do IBAMA e atual coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, cerca de 90% dos licenciamentos seriam enquadrados nessa nova modalidade, incluindo a maioria das licenças de mineração, como, por exemplo, as das barragens de rejeitos de Brumadinho e Mariana – cujas tragédias e os prejuízos que causaram são bem conhecidas do país, especialmente das populações e das regiões diretamente atingidas; que ainda hoje buscam reparação.
Mas ao abrirem a porta para a devastação ambiental, os senadores dizem estar promovendo o progresso – ou o que entendem que seja progresso. Davi Alcolumbre, presidente da casa, classificou a aprovação do PL como “uma das maiores conquistas para o Brasil, uma lei fundamental para o desenvolvimento equilibrado no nosso país”. Outros senadores foram pelo mesmo caminho.
Na verdade, são discursos que mascaram os verdadeiros riscos envolvidos, pois desconsideram os enormes prejuízos ambientais, sociais e econômicos provocados pela degradação ambiental – hoje amplificados pela crise climática em curso que intensifica inundações, incêndios, secas severas e perdas de biodiversidade. Suas graves consequências para as populações locais e o país são apenas alguns dos sinais de alerta.
Para que se tenha uma dimensão dos gigantescos prejuízos que podem ser causados pela devastação do PL aprovado no Senado, basta olhar para o projeto de asfaltamento do “trecho do meio” da BR-319, entre Manaus (AM) e Porto Velho (RO). Estudos da Iniciativa de Política Climática (CPI) da (PUC-RJ), indicam que o projeto pode causar impactos em cerca de 300 mil km² – uma área maior que todo o estado de São Paulo, que tem cerca de 248 mil km².
Sua área de influência abriga nada menos que 49 Terras Indígenas, 49 Unidades de Conservação e 140 mil km² de florestas públicas não destinadas. Um cenário altamente propício para atuação de grileiros e desmatadores e outros criminosos que, diante da ausência do estado e da total falta de governança territorial, teriam acesso facilitado à essa região por meio da BR-319 asfaltada. Isso em uma região altamente preservada no coração da Amazônia. Ou seja, uma catástrofe anunciada, com um potencial de prejuízos, literalmente incalculável.
Esse é apenas um exemplo entre tantos. Projetos como a Ferrovia Ferrogrão as concessões de hidrovias nos rios Madeira e Tocantins e as Rotas de Integração Sul-americanas, entre outros, que também possuem alto potencial de impacto. Facilitar a implantação desse tipo de projeto, sem uma avaliação criteriosa de seus impactos, é incentivar o aumento da devastação, é repetir erros do passado; onde a implantação de megaprojetos na região levou ao aumento de pobreza, de violência e de doenças, que, muitas vezes, empurraram comunidades inteiras — antes autônomas e integradas à floresta — para situações de vulnerabilidade nas periferias urbanas.
Diante das dimensões da devastação “contratada” pelo PL aprovado no Senado, diversos setores da sociedade têm reagido de forma contundente. Entidades técnicas, científicas e ambientalistas produziram notas técnicas e manifestos. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e outras entidades científicas, ex-ministros do Meio Ambiente, além de centenas de organizações, estão criticando o projeto por reduzir mecanismos de proteção ambiental, aumentar riscos jurídicos e enfraquecer a participação popular na tomada de decisão sobre grandes empreendimentos.
Há momentos na história em que o tempo se estreita e a vida pede respostas claras e imediatas. A atual crise climática é um desses momentos, onde cada decisão conta e cada erro custa caro – tão caro quanto a própria possibilidade de futuro.
A omissão, diante do conhecimento dos riscos, tem a mesma gravidade da ação deliberada em prol da destruição. Os que sabem das consequências e se omitem têm a mesma responsabilidade dos que, por ganância ou ignorância estão forçando uma decisão catastrófica para o país. Mais do que uma escolha política, trata-se de uma escolha civilizatória.
*Sérgio Guimarães é especialista em políticas ambientais; é cofundador do Instituto Centro de vida – ICV e Diretor da Sustentável Consultoria