A presente notificação tem como finalidade alertar sobre riscos financeiros, legais e de reputação para potenciais investidores no projeto de empreendimento conhecido como Ferrogrão (EF-170), inserido no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do Governo Brasileiro. Tratado como prioritário pelo Ministério de Infraestrutura, o projeto prevê a implantação de uma ferrovia ‘greenfield’ de 933 km entre as cidades de Sinop, no Estado de Mato Grosso, e Miritituba no Estado do Pará. A intenção é criar uma rota para escoar a produção de grãos do centro-oeste brasileiro pelos portos do chamado Arco Norte. Espera-se, com isso, reduzir custos de transporte. Mas há diversas fragilidades e falhas no projeto.
O traçado proposto pelo projeto cruza uma área sensível da Amazônia brasileira, marcada por conflitos fundiários — e que está sob escrutínio internacional. Estudos independentes demonstram que, uma vez construída, a Ferrogrão seria vetor de desmatamento para a floresta. Apesar disso, como mostraremos a seguir, o projeto da ferrovia subestima ou ignora os impactos ambientais da obra sobre unidades de conservação e terras indígenas; subestima riscos jurídicos e desconsidera a presença de concorrentes. Em conjunto, tais falhas ameaçam sua viabilidade econômica, e tornam o projeto, caso seja implementado, uma obra prejudicial para a Amazônia e seus habitantes e também para a infraestrutura do Brasil.
A discussão tem importância estratégica para o Brasil, para a Amazônia e suas populações, e não deve ser negligenciada por potenciais interessados em investir no empreendimento. Em todo o mundo, cresce a cobrança para que empresas e investidores adotem critérios mais rigorosos de governança social e ambiental. Entendemos que tais fragilidades e falhas devem ser devidamente analisados por eventuais interessadas em participar do financiamento do empreendimento, antes da tomada de qualquer decisão. Não fazê-lo implicaria expor-se ao risco de não apenas descumprir com suas políticas de responsabilidade socioambiental (ESG), como também de se tornar, automaticamente, solidariamente responsáveis por danos socioambientais que vierem a ocorrer, nos termos do artigo 14, § 1º, da Lei 6.938/81 (Política Nacional de Meio Ambiente), inclusive daqueles não previstos ou assumidos em licenças ambientais.
Nas páginas a seguir, nos debruçaremos sobre nove falhas do projeto Ferrogrão. A ferrovia:
1. Ignora critérios internacionais de sustentabilidade
2. Subestima o desmatamento de mais de 2 mil km de floresta
3. Estimula a grilagem de terras e conflitos fundiários
4. Aumenta pressão para diminuir unidades de conservação
5. Viola direitos de povos indígenas
6. Contraria os compromissos de zero desmatamento assumidos pelas empresas agropecuárias
7. Tem custos de construção subestimados e retorno aquém do projetado
8. Faz avaliação falha da concorrência
9. Não avalia as rotas alternativas
1- Ignora critérios internacionais de sustentabilidade
A proposta da Ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão, foi concebida com o objetivo de reduzir os custos de transporte da soja produzida no estado de Mato Grosso e destinada à exportação. Orçado em R$21,5 bi, e com custos de implantação estimados em R$8,42 bilhões, o projeto prevê uma rota de escoamento que cruza 933 km de floresta Amazônica, ligando áreas produtoras do centro-oeste brasileiro ao complexo de terminais de transbordo fluvial de Miritituba, na cidade de Itaituba, às margens do rio Tapajós, no estado do Pará. A partir dali, a carga seguiria até um porto marítimo por meio de barcaças. Uma vez construída, a Ferrogrão acompanharia o traçado da já existente BR-163.
Uma análise conduzida por pesquisadores do Climate Policy Initiative (CPI) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio) indicou que o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) e o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Ferrogrão deixaram de avaliar componentes socioambientais considerados essenciais para a elaboração desse tipo de estudo, segundo guias internacionais.
Os achados do trabalho demonstram que, de dez componentes considerados prioritários por guias internacionais, somente três foram incluídos no Termo de Referência (TR) do EVTEA da Ferrogrão: (i) unidade de conservação, (ii) comunidades tradicionais (indígena e quilombola) e (iii) cobertura florestal.
Na avaliação dos pesquisadores, “tanto o TR do EVTEA, quanto o EVTEA propriamente dito deixaram de prever e analisar componentes socioambientais mais relevantes para a verificação do potencial impacto socioambiental do empreendimento”, tais como os impactos sobre recursos hídricos, para a biodiversidade e habitat natural, e para o patrimônio histórico e cultural.
2- Subestima o desmatamento de mais de 2 mil km de floresta
A Ferrogrão estimulará a produção de soja e de outras commodities do agronegócio destinadas à exportação. Fará isso ao proporcionar queda nos custos de transporte desses produtos. O cultivo desses itens vai se expandir pela área de influência da ferrovia, empurrando a área destinada à pecuária em direção ao interior da floresta. Pesquisa realizada pelo Climate Policy Initiative (CPI) e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio) estimou que a expansão da fronteira agropecuária em Mato Grosso, incentivada pela construção da ferrovia, poderia contribuir diretamente para o desmatamento de mais de 2 mil km² de floresta nativa. Trata-se de uma área superior à da cidade de São Paulo.
Os pesquisadores destacam que “esse aumento do desmatamento intensificará as emissões de carbono em 75 milhões de toneladas”. Considerando o preço de US$25 por tonelada equivalente de carbono, tamanho incremento no desmatamento poderia significar custo adicional de US$1,9 bi (algo em torno de R$10, bi), caso fosse incorporado ao projeto — 60% dos custos já previstos para implementação da ferrovia.
Adicionalmente, o projeto tem potencial para impactar 4,9 milhões de hectares de áreas protegidas em 48 municípios na área de influência da ferrovia, segundo estudo do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (CSR/UFMG). São municípios de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul onde os custos de produção de gêneros agrícolas cairiam se a ferrovia fosse implantada. Nessas localidades, as unidades de conservação que seriam ameaçadas equivalem, juntas, a uma área pouco maior que o estado do Rio de Janeiro e que sofreria com a pressão provocada pelo aumento da produção agrícola incentivado pela queda nos custos de transporte. Os pesquisadores chegaram a essa conclusão ao considerar um cenário em que a Ferrogrão contaria com três terminais de transbordo de carga: o inicial, em Sinop (MT). Um intermediário, em Matupá (MT); e o final, no porto de Miritituba, em Itaituba (PA). O terminal intermediário, em Matupá, consta nos documentos oficiais para concessão da ferrovia elaborados pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). O estudo destaca que, nesses 48 municípios, já foram desmatados, ilegalmente, 1,3 milhão de hectares de floresta nativa. Qualquer nova expansão da área desmatada ocorreria, portanto, às custas da destruição de áreas protegidas.
Os pesquisadores do CSR/UFMG constataram que o risco de aceleração do desmatamento, no entanto, foi ignorado pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Ferrogrão. Ao avaliar o impacto do projeto sobre terras indígenas, terras quilombolas e bens culturais acautelados, os estudos da ferrovia limitaram seu alcance a uma faixa de 10km ao longo do eixo da ferrovia. Essa decisão ampara-se unicamente na controvertida Portaria Interministerial n. 60/2015, que trata da “atuação dos órgãos e entidades da administração pública federal em processos de licenciamento ambiental de competência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA”.
O potencial da Ferrogrão de estimular o desmatamento e queimadas numa ampla região da Amazônia brasileira está relacionado, também, a impactos cumulativos e sinérgicos com outros grandes empreendimentos, tais como:
i) o aumento do fluxo da operação da rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163) com a concessão do trecho entre Sinop e Itaituba, num traçado compartilhado com a ferrovia.
ii)o incremento do fluxo de operações de estradas secundárias que alimentarão os terminais da ferrovia, como a rodovia estadual MT-322;
iii) a implantação de terminais portuários em Miritituba, Santarenzinho e Itapacurá, e a navegação no Tapajós até a cidade de Santarém e portos do estuário do Amazonas, como continuação do eixo de exportação de commodities do chamado “Arco Norte”.
iv) a previsão de construção de grandes hidrelétricas do chamado Complexo Tapajós.
Apesar das exigências da Resolução 01/86 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), o EIA não considerou os impactos cumulativos e sinérgicos da Ferrogrão com outros grandes empreendimentos.
Ainda no campo de impactos socioambientais, importa lembrar que a instalação de portos no distrito de Miritituba — por onde será escoada a soja transportada pela Ferrogrão, caso a ferrovia seja implantada — trouxe prejuízos para a população da região. “Em época de alta da safra, o pequeno distrito chega a abrigar 1.500 caminhões por dia, que transitam por dentro dele enquanto aguardam sua vez de realizar a descarga em um dos portos estacionados no Rio Tapajós. Nas entrevistas, coletamos depoimentos que relaram impactos relacionados à apropriação privada de estradas e ruas, à poluição e ao aumento da violência, do tráfico de drogas e da prostituição”, destaca trabalho do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Além disso, a implantação do complexo portuário interferiu, negativamente, na atividade pesqueira da região — fundamental para o modo de vida e para a sobrevivência econômica da população local. Ainda de acordo com o trabalho do Inesc, “os portos afetam o cotidiano da pesca de três maneiras: pelo cordão de isolamento; pela movimentação de barcaças no rio; e pelo impacto nos peixes da região”. Se implantada, a Ferrogrão vai aumentar o volume de grãos escoados pelos portos de Miritituba, e ampliará o alcance desses mesmos impactos.
3- A ferrovia estimulará a grilagem de terras e os conflitos fundiários
O Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) da Ferrogrão reconhece que o projeto se encontra na área de influência do Arco de Desmatamento da Amazônia. Trata-se de uma região de expansão da fronteira agrícola, marcada por reincidentes conflitos fundiários. A construção da Ferrogrão agravaria o quadro de conflitos já presente na região.
A mera expectativa da construção e da operação da ferrovia já acirrou as tensões regionais: em 2016, o governo editou as Medidas Provisórias (MPs) n.º 756 e 758, que alteravam os limites de Unidades de Conservação (UC) para definir áreas de domínio do projeto da ferrovia. A iniciativa foi acompanhada por aumento no número de invasões a áreas protegidas. Foram invadidas, inclusive, aquelas UCs cujos limites não seriam alterados pelas MPs.
Tais impactos são potencializados pela ausência de instrumentos adequados de governança. Grande parte do desmatamento recente na Amazônia brasileira ocorreu em terras públicas, um fenômeno incentivado pelo governo federal por meio de normas que reconhecem o desmatamento e implantação de pastagens como ‘benfeitorias’ para fins de concessão de títulos privados em extensas áreas. Nesse sentido, exemplos recentes de retrocessos no marco legal, de modo a estimular a grilagem em terras públicas, incluem a Lei 13.465/2017, a Medida Provisória 910/2019, e o Projeto de Lei 4.348/2019, recentemente aprovado pelo Senado Federal.
Por fim, é importante considerar que o padrão de ocupação de terras nessa região tem perfil concentrador. Nos últimos 20 anos, a expansão da fronteira agrícola em Mato Grosso foi acompanhada pela concentração de terras em grandes propriedades. Hoje, Mato Grosso é o estado que concentra o maior número de latifúndios em todo o país: ao menos 869 fazendas com mais de 10 mil hectares. A construção da Ferrovia iria intensificar ainda mais esse processo de proliferação de latifúndios. A expansão de grandes propriedades encontraria, pelo caminho, 102 assentamentos de reforma agrária (segundo o EVTEA da ferrovia); 16 Terras Indígenas (TI) e uma área de floresta de extremamente alta importância para a concentração da biodiversidade. O choque entre esses elementos tem potencial para fazer eclodir novos conflitos fundiários.
4- Aumenta pressão para diminuir unidades de conservação
O traçado da Ferrogrão corta parte do Parque Nacional do Jamanxim — hoje, a quinta unidade de conservação (UC) mais desmatada do Brasil. Em 2017, os limites do Parque foram alterados por meio de uma medida provisória (MP 758/2016), originalmente destinada a autorizar a passagem da ferrovia. Foram excluídos 852 hectares do parque para a faixa de domínio da Ferrogrão. A redução da área do parque é hoje debatida na justiça: em março de 2021, uma decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a eficácia da Lei 13.452/ 2017 (que resultou da MP 758/2016). A interpretação do ministro é de que não se pode diminuir as dimensões de uma unidade de conservação por meio de medidas provisórias. O posicionamento de Moraes se ampara em decisão do STF de 2019.
Antes disso, a MP 758/2016 foi alvo de controvérsia já durante sua tramitação no Congresso. A proposta originalmente aprovada previa reduzir 101 mil hectares de Unidades de Conservação na Amazônia. Na ocasião, uma mobilização da sociedade civil, que cobrava o veto à MP, envolveu figuras de relevo internacional, como a modelo Gisele Bündchen e o ator Leonardo DiCaprio.
A criação de unidades de conservação, como Florestas Nacionais e Parques Nacionais na região de influência da Ferrogrão não têm significado a proteção efetiva de suas florestas e rios. Embora a ciência comprove a eficácia deste tipo de mecanismo de proteção, ela tem sido comprometida pela omissão governamental frente a atos ilegais de exploração madeireira, garimpos de ouro, e desmatamento e queimadas associados à grilagem de terras públicas, seguidos por Medidas Provisórias e Projetos de Lei que visam a desafetação de extensas áreas das unidades de conservação, sem qualquer justificativa técnica e análise sobre o interesse público, a exemplo da MP 756/2016, que pretendia reduzir em mais de 400 mil hectares a Floresta Nacional do Jamanxim.
Com o aumento de pressões sobre áreas florestais remanescentes em unidades de conservação, associadas à implantação da Ferrogrão, certamente haveria fortes riscos de novas desafetações de Unidades de Conservação.
5- Viola direitos de povos indígenas
Povos indígenas e populações tradicionais têm direito à Consulta Livre, Prévia e Informada a respeito de decisões legislativas ou administrativas que afetem seus territórios. Esse direito é assegurado por convenções internacionais de que o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração Americana sobre os Direitos Indígenas.
O direito se aplica, também, a projetos de infraestrutura, como no caso da Ferrogrão. A consulta precisa acontecer ao longo de todo o ciclo de vida do projeto — inclusive durante a avaliação de viabilidade da obra, de modo que os povos indígenas e demais comunidades tradicionais possam participar, efetivamente, das decisões que afetarão seus territórios. Entende-se que, durante o processo de avaliação técnica e econômica, é ainda possível influenciar a tomada de decisões sobre a viabilidade do empreendimento, e, caso prossiga, influir no seu desenho físico, como também sobre ações de prevenção, mitigação e compensação de impactos socioambientais.
O Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) da Ferrogrão aponta que o traçado da ferrovia deverá correr próximo a 16 terras indígenas. Territórios que, portanto, estão sob sua área de influência. Essas populações, no entanto, não foram consultadas a respeito da obra durante a fase de planejamento do empreendimento.
Desde 2017, povos indígenas afetados pela Ferrogrão cobram a realização de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI). As primeira reinvindicações foram feitas pelos povos Munduruku e Kayapó, entre maio e dezembro de 2017. Os pedidos não foram atendidos. Em maio de 2018, o governo confirmou que não procederia com consultas prévias antes do leilão da ferrovia.
O Termo de Referência Específico para a realização do Componente Indígena do EIA da Ferrogrão, emitido pela Funai em setembro de 2019, reconhece apenas as Terras Indígenas Reserva Praia do Índio e Reserva Praia do Mangue, ambas de ocupação tradicional Munduruku, como afetadas pela instalação da ferrovia — em contraste com as 16 identificadas nos estudos de viabilidade técnica. Ambas se encontram a distância de até 10km do eixo da ferrovia e, por isso, são as únicas consideradas como diretamente afetadas pelo empreendimento.
De acordo com o governo, as comunidades dessas duas terras indígenas seriam consultadas na fase de licenciamento ambiental da obra. Associações indígenas Munduruku, no entanto, relataram que seus Protocolos de Consulta foram desrespeitados.
Mesmo sem a realização da CLPI, o projeto da Ferrogrão avançou. Desde julho de 2020, o plano de concessão da ferrovia encontra-se sob análise do Tribunal de Contas da União (TCU).
Hoje, o descumprimento da Consulta é objeto de Representação do Ministério Público Federal (MPF) e de associações indígenas ao TCU, encaminhada em outubro de 2020. No dia 12 de abril de 2021, a ausência da CLPI foi questionada pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) no processo da Representação. Na ocasião, o órgão “manifestou-se favorável a que o tribunal determine a realização de consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas afetados pelo projeto da ferrovia Ferrogrão (MT/PA)”.
No documento, o MPTCU também recomenda que os estudos de viabilidade da concessão da Ferrogrão sejam devolvidos à Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), que só deve remetê-los de volta ao Tribunal depois de feitas as consultas aos povos indígenas.
6- Contraria os compromissos de zero desmatamento assumidos pelas empresas agropecuárias
Em julho de 2006, as principais tradings da soja assumiram o compromisso de não comercializar grãos cultivados em áreas da Amazônia desmatadas depois daquela data (anos mais tarde, esse marco seria alterado, de 2006 para 2008). O acordo ficou conhecido como a Moratória da Soja, e foi motivado pela divulgação de estudos segundo os quais a floresta vinha sendo derrubada para dar espaço ao cultivo de grãos. Dois anos antes, uma área equivalente ao estado de Alagoas tinha sido desmatada na Amazônia, e as lavouras de soja eram apontadas como principal vetor de expansão do desmatamento. Os mercados consumidores, sobretudo o europeu, passaram a cobrar que as empresas envolvidas na cadeia produtiva do grão assumissem compromissos ambientais mais rigorosos, de modo a preservar a floresta.
Amaggi, ADM, Bunge, Cargill e LDC, entre outras companhias, fazem parte do grupo que se comprometeu a zerar o desmatamento relacionado à sua cadeia de produção na Amazônia. Em 2012, essas mesmas cinco empresas, em parceria com a Estação da Luz Participações (EDLP), formaram o consórcio Pirarara. Foi ele o responsável pela inclusão da Ferrogrão no portfólio da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), por meio de uma Manifestação Publica de Interesse (PMI) apresentada ao governo federal.
A construção da Ferrogrão, no entanto, ameaça os compromissos ambientais assumidos pelas empresas proponentes. Como demonstrado no item 2 desta carta, o projeto — caso concretizado — vai estimular o desmatamento em vasta área de floresta, e ameaça a preservação de unidades de conservação. Promover a construção da estrada, e projetar escoar o grão associado a ela, contraria a tendência de zerar o desmatamento que essas empresas assumiram, e que o mercado demanda.
7- Tem custos de construção subestimados e retorno aquém do projetado
Análises independentes apontam que os Gastos em Capital (Capex) do projeto da Ferrogrão, submetidos ao Tribunal de Contas da União (TCU), foram subestimados em mais de 200%. O projeto enviado ao TCU em julho de 2020 prevê R$8,42 bilhões em gastos para colocar a linha férrea em operação. Segundo Frischtak (2021), num cenário realista, o Capex seria de R$28,98 bilhões, considerando R$23 milhões / km, e uma margem de risco de 20%, “bastante modesta, dada a maior complexidade do projeto, a qualidade do solo, relevo e índices pluviométricos atinentes ao traçado da Ferrogrão, e a experiência em outro projetos no país, e o próprio registro internacional”.
Frischtak chega a essas conclusões ao comparar o projeto Ferrogrão a outro projeto greenfield recente, o da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO). No caso da FICO, os custos da implantação da infraestrutura e superestrutura ferroviária foram estimados em R$22,72 milhões/km.
O autor ainda destaca outras fragilidades que tendem a aumentar os custos do projeto. A Ferrogrão deve correr próxima ao leito do rio Jamanxim, em áreas alagadiças do Parque Nacional do Jamanxim. “No limite, a ferrovia teria trechos significativos (ao menos 2 km no Parque, e numa cota de 5 metros) submersos por períodos de até 5 meses, além de outros 3 km fora do Parque sujeitos à mesma condição”, destaca.
Novamente, considerando projetos semelhantes em execução no país, o autor considera fora da realidade a previsão de que a Ferrogrão levará 9 anos para ser implantada — uma das premissas submetidas ao Tribunal de Contas da União. Frischtak calcula 21,9 anos para licenciamento e implantação da ferrovia.
Atrasos e aumentos de custos ao longo da execução de um projeto são ocorrências corriqueiras em grandes obras de infraestrutura no Brasil. Confirmadas essas estimativas, a eventual implantação da Ferrogrão seguiria trajetória semelhante à das principais ferrovias greenfield financiadas pelo poder público nas últimas três décadas no Brasil: Norte Sul, Transnordestina e FIOL. Em conjunto, observou-se aumento real de 48,7% nos custos dessas ferrovias até 2019.
Por fim, o autor destaca que a “premissa de tarifa parece ser também irrealista”. Os documentos submetidos ao TCU preveem que a tarifa aplicada à Ferrogrão seria de R$107,55/ ton. É o valor que se considera atraente, de modo que a ferrovia capture clientes que hoje utilizam a BR-163. Esse valor não leva em conta, no entanto, possíveis reduções nos custos de transporte pela rodovia. Os custos de transporte pela BR-163 caíram 26% desde que a via foi pavimentada, de acordo com dados da Associação dos Produtores de Soja e Milho (Aprosoja – MT). Esses custos, segundo o autor, cairão ainda mais quando a rodovia for concedida ao setor privado, e melhorias forem executadas.
Associados, esses fatores fazem cair a Taxa Interna de Retorno (TIR) do projeto. Hoje, calcula-se que ela será de 11,04%. Frischtak pondera que, segundo análise mais realista, a TIR deve ficar entre 1,69% e 3,13%. A não ser que o Tesouro injete recursos de modo a garantir a manutenção da taxa de retorno apregoada.
8- Faz avaliação falha da concorrência
O traçado proposto da Ferrogrão segue um trajeto paralelo à BR-163 no trecho que vai de Sinop, em Mato Grosso, a Miritituba, no Pará. A previsão é de que a ferrovia transportaria 21,2 milhões de toneladas de carga já no primeiro ano de operação, e 51 milhões de toneladas no trigésimo.
O projeto parte da premissa de que a Ferrogrão substituiria a BR-163, firmando-se como uma alternativa economicamente superior para o transporte de grãos. A distância entre os dois modais, no entanto, foi reduzida a partir do final de 2019, quando o governo federal concluiu a pavimentação da BR-163 no trecho que vai de Sinop a Miritituba. A obra fez o valor do frete baixar: uma queda de 26%, segundo dados de março de 2020. O Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) da ferrovia, no entanto, não calcula o impacto dessa obra para a viabilidade da Ferrogrão.
Além da BR-163, a Ferrogrão vai competir com outras alternativas ferroviárias, já em funcionamento ou planejadas. Entre aquelas já operacionais, há a Ferronorte — ferrovia que liga Santa Fé do Sul, em São Paulo, a Rondonópolis, em Mato Grosso. Há, ainda a ferrovia Norte-Sul, no trecho que vai de Anápolis, em Goiás, à Açailândia, no Maranhão. O EVTEA da ferrovia considera quatro competidores: a BR-163, a FICO Oeste (trecho da Ferrovia Transcontinental), a Hidrovia Teles-Pires e a Hidrovia Araguaia. Frischtak (2020) aponta, no entanto, que “o documento deixa de abordar com um mínimo de rigor o motivo dos empreendimentos avaliados como concorrentes não tornarem a Ferrogrão economicamente inviável, mesmo indicando que parte da demanda seria captada por eles”.
Segundo o EVTEA, as concorrentes levariam suas cargas para servir à Ferrogrão e só entrariam em operação depois da consolidação da Ferrogrão, quando as perspectivas concretas mostram exatamente o contrário. A FICO – Ferrovia de Integração Centro-Oeste já tem recursos assegurados e está liberada para iniciar as obras, sendo o cenário de sua operação antes do previsto no estudo da Ferrogrão de grande probabilidade. Apesar disso, segundo o EVTEA da Ferrogrão, a FICO só entraria em funcionamento depois que a Ferrogrão fosse expandida até Lucas do Rio Verde em 2035. De forma forçosa, o estudo de demanda não leva em conta que o primeiro trecho da FICO ligará Água Boa (MT) à Ferrovia Norte-Sul, escoando carga no sentido oposto ao do projeto da Ferrogrão.
Outra ferrovia concorrente que, de acordo com o EVTEA da Ferrogrão, sofreria de letargia seria a (Ferronorte) da Rumo, que chegaria a Lucas do Rio Verde somente em 2045, e, a propósito, conforme cita o Estudo de Demanda, também levaria carga para a Ferrogrão.
Por fim, Frischtak (2021) manifesta estranhamento em relação aos termos propostos pelo governo para a concessão da BR-163. O prazo de concessão, por exemplo, é de 10 anos, em contraste com os 35 anos aplicados para concessões federais. A justificativa apresentada é de que, findo esse prazo, espera-se que a Ferrogrão já esteja em operação. Para o autor, “o Poder Público está limitando a concorrência de um modal em relação a outro sob a premissa implícita de que uma concessão em bases usuais iria gerar um elemento a mais de inviabilizar a Ferrogrão”.
Tais equívocos, em conjunto, demonstram e contribuem para a fragilidade do projeto Ferrogrão.
9- Não avalia as rotas alternativas
A Ferrogrão foi inserida no portfólio da Empresa de Planejamento e Logística (EPL) a pedido do consórcio Pirara, formado pela Estação da Luz Participações (EDLP) e por cinco tradings da soja. Hoje, ela consta entre as obras previstas pelo Plano Nacional de Logística 2035 (PNL), que aponta as prioridades de longo prazo para o setor.
A eleição da Ferrogrão como um projeto prioritário, no entanto, foi arbitrária: não considerou as necessidades de desenvolvimento sustentável e de integração territorial do país nos médio e longo prazos. A decisão se baseou em apenas dois critérios: ter execução prevista e perspectiva de operação em 2025.
Nem no planejamento setorial do governo federal sobre a logística de transportes, nem tampouco no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da EF-170 (nesse último caso, contrariando dispositivos da Resolução 01/86 do CONAMA) foram analisadas alternativas ao projeto, no sentido de identificar rotas com menor risco para danos e conflitos socioambientais, inclusive regiões com melhores condições de governança sobre o uso da terra.
O Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) do projeto também falha ao não explicitar porque o escoamento de grãos pelo norte do país seria mais economicamente eficiente do que o escoamento por outras rotas. A Ferrogrão concorre com projetos em implantação ou já existentes, tais como:
O escoamento da produção pelo porto de Santos, via Ferronorte — ferrovia para a qual existe proposta de expansão de Rondonópolis a Lucas do Rio Verde.
O escoamento pela ferrovia Norte-Sul.
O transporte da produção pela Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO) e também pela FIOL (Ferrovia de Integração Oeste – Leste, que se conectará com a Ferrovia Norte e Sul e com a FICO.
Escoamento pela BR-158/155, subsistema MT/PA, já em estudo para concessão.
Considerados seus potenciais impactos socioambientais, o projeto da Ferrogrão ainda carece de um estudo independente que compare cenários alternativos para o transporte dos grãos produzidos no centro-oeste.
Considerações Finais
Os problemas de subdimensionamento de impactos socioambientais da Ferrogrão (EF-170) e as deficiências em análises de viabilidade econômica, amplamente demonstrados, fragilizam o projeto e representam sérios riscos econômicos, legais e de reputação para instituições financeiras potencialmente interessadas em investir no empreendimento. O projeto tem falhas na sua concepção e desenho, não se relacionou propriamente com o território e, assim, ameaça a floresta, as populações tradicionais e os compromissos de mitigação da crise climática. O contexto de desmonte das políticas ambientais do país agravam essa situação.
Ainda pesam contra o projeto riscos jurídicos. Os processos da Ferrogrão se encontram presentemente suspensos por medida cautelar do ministro Alexandre de Moraes, do STF. Questiona-se a mudança nos limites do Parque Nacional do Jamanxim para a passagem da ferrovia, feita por meio de Medida Provisória — algo inconstitucional. As violações aos direitos dos povos indígenas e outras populações tradicionais à Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) representam risco adicional de judicialização.
Tais riscos econômicos, legais e de reputação devem ser analisados cuidadosamente frente a legislação brasileira e normas internacionais em vigor, antes da tomada de qualquer decisão de eventual financiamento, sob risco de os investidores interessados não apenas descumprirem com políticas institucionais de responsabilidade socioambiental (ESG) como também se tornar, automaticamente, responsáveis solidariamente por danos socioambientais que vierem a ocorrer, nos termos do artigo 14, § 1º, da Lei 6.938/81 (Política Nacional de Meio Ambiente), inclusive daqueles não previstos ou assumidos em licenças ambientais.
Referências
ARAÚJO, Rafael; ASSUNÇÃO, Juliano; BRAGANÇA, Arthur. Resumo para política pública. Os impactos ambientais da Ferrogrão: Uma avaliação ex-ante dos riscos de desmatamento. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2020
CHIAVARI, Joana; ANTONACCIO, Luiza; COZENDEY, Gabriel. Regulatory and Governance Analysis of the Life Cycle of Transportation Infrastructure Projects in the Amazon. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2020.
FRISCHTAK, Cláudio; LOBO, Marina; FARIA, Manuel; CANINI, Renata; DUQUE, Bernardo. Relatório Técnico Interno. Questões Críticas em Grandes Projetos de Infraestrutura no Brasil: Estudo de Caso: Ferrogrão. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative e World Resources Institute, 2020.
FRISCHTAK, Cláudio R. 20ª Carta de Infraestrutura. Ferrogrão: um projeto viável? Rio de Janeiro: Inter. B Consultoria Internacional de Negócios, 2021
LELES, William; DAVIS, Juliana; RIBEIRO, Amanda; SOARES-FILHO, Britaldo. Amazônia do futuro: o que esperar dos impactos socioambientais da Ferrogrão?. Belo Horizonte: Centro de Sensoriamento Remoto, 2020
Instituto de Estudo Socioeconômicos. Enquanto a soja passa: impactos da empresa Hidrovias do Brasil em Itaituba, Pará. Disponível em: < https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2021/02/DossieHidrovias-VersaoFinal_PT2.pdf >. Acesso em: maio de 2021.
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Redução da Flona do Jamanxim: vitória da especulação fundiária?
Disponível em: <https://imazon.org.br/publicacoes/reducao-da-flona-do-jamanxim-vitoria-da-especulacao-fundiaria/>. Acesso em: maio de 2021
Subscrevem:
GT Infraestrutura
Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais – FBOMS
Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental – FMCJS
Observatório do Clima
Movimento Tapajós Vivo – MTV
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
Sociedade para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente – SAPOPEMA
Grupo de Trabalho Amazônico – Rede GTA
Rede Pantanal
350.org
Conectas
Associação Alternativa Terrazul
Greenpeace
Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC
Projeto Saúde e Alegria – PSA
International Rivers – IR
Fundação Vitória Amazônica – FVA
Instituto Socioambiental – ISA
ECOA – Ecologia e Ação
Núcleo de Estudos Amazônicos da Universidade de Brasília – NEAz UnB
Instituto de Energia e Meio Ambiente – IEMA
Operação Amazônia Nativa – OPAN
Conservation Strategy Fund – CSF
Centro de Inteligência Urbana de Porto Alegre – CIUPOA
ARAYARA.ORG
Instituto Internacional de Educação do Brasil – IIEB
Instituto de Pesquisas Ecológicas – IPE
Instituto Centro de Vida – ICV
Comissão Pastoral da Terra – CPT
Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia – IDESAM
Instituto 5 Elementos
Instituto Sociedade, População e Natureza – ISPN
Instituto Climainfo
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC
Asociación Interamericana para la Defensa del Ambiente – AIDA
Bank Information Center – BIC
Federação do povos indígenas do Estado do Pará – FEPIPA
Latinoamérica Sustentable – LAS