Os povos tradicionais do Brasil têm uma cultura de respeito à natureza que pode ser transformada em valor e fonte de afirmação nacional
por Sérgio Guimarães*
Os efeitos catastróficos das mudanças climáticas, cada vez mais frequentes, não param de nos lembrar que precisamos mudar radicalmente nossa relação com a natureza. Chuva torrencial na Alemanha, 48 graus no Canadá, 42 em Moscou e incêndios na Califórnia. No Brasil, uma grave crise hidro energética, com incalculáveis prejuízos econômicos para o país e a população. Esses são só alguns eventos que ganharam os noticiários recentemente, provas irrefutáveis de que deveríamos ter dado ouvidos aos alertas que toda a comunidade científica vem fazendo há décadas.
Paulo Artaxo, cientista da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) diz que é urgente parar o desmatamento da Amazônia, de queimar combustíveis fósseis e reduzir as emissões de carbono. No caso brasileiro, a floresta processa vapor d’água, produz chuvas, estabiliza o clima e alimenta o agronegócio no Brasil central. “Se o desmatamento continuar avançando, em pouco tempo será impossível plantar soja e criar gado ali. É esse o futuro que queremos? Um país inviável com as mudanças climáticas?”, pergunta com propriedade.
Assustados diante da TV ou em frente a tela do computador aberta em um site de notícias, nos perguntamos: o que precisamos fazer de forma diferente? A resposta não é simples, mas o Brasil pode começar a fazer isso olhando para seus povos tradicionais. Eles são exemplos de como estabelecer uma relação de respeito com a natureza, tirando tudo o que precisam para viver bem, mas sem destruir a mãe-terra, que nos dá tudo. Ou seja, sem “matar a galinha dos ovos de ouro”.
Além de serem benéficos ao clima, os produtos da floresta carregam consigo o que o mercado chama de valor agregado. A Rede Origens Brasil, concebida pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pelo Imaflora, é um exemplo de como a promoção de negócios sustentáveis na Amazônia pode gerar valor. O projeto, presente nos territórios Xingu, Calha Norte, Rio Negro e Solimões, incentiva as cadeias produtivas de comunidades que trabalham com produtos como óleos vegetais, sementes, frutos, farinha, pimenta, amendoim, mel, peças de vestuário e bijuterias, entre outros, que agora têm um selo de origem, que valida o modo de trabalho que contribui para a preservação do ambiente de onde são extraídos. O resultado é que todos esses produtos agora valem mais nos mercados nacional e internacional. O motivo é que quem vê o selo, sabe que está comprando algo que tem garantia de origem, transparência e rastreabilidade da cadeia produtiva, além de ajudar a promover o comércio ético e que respeita, em todo o seu processo, não só o meio ambiente, mas também seus trabalhadores. Consumidores cada vez mais exigentes estão dispostos a pagar a mais por isso.
Mas não é só isso. Nossas comunidades tradicionais são admiradas no mundo todo também pelo seu modo de pensar. Em um dos debates do Ciclo WebGTInfra, promovido pelo GT Infraestrutura, Ailton Krenak, reforçou a necessidade de que: “deveríamos ter infraestruturas de escuta, criadas a partir do chão, coladas na natureza.” Para ele, nossos projetos precisam começar a ser planejados a partir da perspectiva dos povos que vivem nas regiões e da natureza, que também deve ser vista como uma infraestrutura por si só. “Precisamos aprender a pisar leve no mundo, caminhar sem deixar rastro”, afirmou.
No mesmo debate, o professor Ricardo Abramovay seguiu na mesma linha de raciocínio: “se tivermos como base que infraestrutura deve ser voltada prioritariamente para atender às necessidades das pessoas, abrimos um horizonte extraordinariamente fértil, que inclusive inclui crescimento econômico e aumento da qualidade de vida”. Ele tem razão! Precisamos acabar com essa conversa fiada de que quem defende as comunidades tradicionais e a preservação ambiental é contra o progresso. Ao contrário, o modo de viver dessas comunidades pode, não só nos ensinar como evitar enormes prejuízos, mas também nos ajudar a gerar valor, renda e milhões de empregos.
Os povos tradicionais são especialistas em produzir sem destruir, mantendo a nossa floresta em pé. Como se não bastasse ser a casa de mais da metade da biodiversidade do planeta, a Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, vale muito mais preservada. Um dos estudos que mostram isso é o Changes in the Global Value of Ecosystem Services, liderado por pesquisadores australianos, que estimou que o rendimento da Amazônia preservada para o Brasil é de mais de US$ 1,8 trilhões por ano em valor bruto, muito mais que a renda gerada por todas as atividades que desmatam juntas.
Todo esse pacote de cultura tradicional, que inclui visão de mundo, tecnologias da floresta, tradições e mitologia, entre outros, também pode ser transformado em valor. As alternativas são incontáveis e vão desde a produção de filmes e séries dirigidos e protagonizados por essas pessoas, que certamente contribuiria para difundir outros modos de ver e se relacionar com a natureza, até o estímulo a um turismo que não seja apenas sustentável, mas também ajude a gerar um senso de identidade, fazendo com que mais gente entenda a importância dessas comunidades, não só pelo que produzem, mas também por tudo que têm a nos ensinar.
Os povos podem expressar novas visões de mundo e novos desenhos para a infraestrutura, algo muito mais sofisticado do que extrair e que ainda ajudaria a transmitir não só para nós brasileiros, como também para as pessoas de todo mundo um pouco mais sobre essa visão. Um jeito de andar suavemente pela terra e usar os recursos naturais de maneira respeitosa e inteligente, que é o que o mundo todo está precisando e pedindo como solução para a crise ambiental e civilizatória. E nós temos essa solução dentro de casa. Só é preciso ter ouvidos para ouvir, olhos para ver e mente e coração abertos para aprender e praticar.
*Secretário executivo do GT Infraestrutura, rede de mais de 40 organizações comprometidas com a construção de um mundo com mais justiça socioambiental.
Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.