Organizações da sociedade civil apresentam propostas para uma transição energética com justiça socioambiental em evento do G20, mas você sabe como funciona o G20?

O G20 é o grupo das nações mais ricas do planeta, nele está representado 80% do PIB mundial, mas também como lembrou André Corrêa do Lago, Secretário do Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério Das Relações Exteriores (MRE) do Brasil, “também é responsável por 80% das emissões [de GEE] mundiais”. A fala se deu no âmbito da reunião do Grupo de Trabalho de Transição Energética criado para discutir esse processo de forma justa e equilibrada. O G20 não é uma organização internacional como a ONU ou o FMI, mas um mecanismo de diálogo informal que possui uma presidência rotativa que trabalha em forma de Troika, um grupo que reúne o presidente anterior, o atual e o futuro presidente, a atual é composta pela Índia (2023), Brasil (2024) e pela África do Sul (2025), respectivamente. O grupo nasceu com a expansão do G7, quando houve a percepção clara de que o mundo havia mudado e apenas os sete países mais ricos do mundo não tinham mais a representatividade ou habilidade de conduzir o planeta para uma harmonia, inicialmente, financeira. O grupo sempre teve essa vinculação com a economia, mas com as sucessivas crises, dos anos noventa e, também, dos anos 2000, sobretudo 2008, o escopo do trabalho ampliou-se. Atualmente, o G20 atua em duas “trilhas” Sherpas[1] e Finanças. A Sherpas é organizada pelos MREs dos membros e é chefiada por emissários diretos dos líderes do G20 e a de Finanças pelos é onde os ministros de finanças e presidentes dos Bancos Centrais se encontram em reuniões para discutir os temas da área. A Trilha Financeira é composta por seis Grupos Técnicos, uma Força-tarefa e uma iniciativa sobre Tributação Internacional. Os grupos são: Assuntos do Setor Financeiro; Arquitetura Financeira Internacional; Economia Global; Finanças Sustentáveis; Inclusão Financeira; Infraestrutura. Já a Força-tarefa Conjunta de Finanças e Saúde foi concebida em 2021, no ápice da pandemia de Covid-19. Foi desenvolvida como um fórum para aperfeiçoar o diálogo e a cooperação global em Prevenção, Preparação e Resposta (PPR) a pandemias. Confira abaixo a ilustração com as trilhas do G20. Atualmente, a Trilha de Sherpas se organiza em quinze Grupos de Trabalho. São eles: anticorrupção; comércio e investimentos; cultura; desenvolvimento; economia digital; educação; trabalho; transições energéticas; turismo; empoderamento de mulheres; pesquisa e inovação; redução do risco de desastres; saúde; agricultura; sustentabilidade climática e ambiental. Além disso, essa Trilha tem duas Forças-tarefa – Mobilização Global contra a Mudança do Clima (coordenada pelo Ministério de Relações Exteriores e compartilhada com a Trilha Financeira) e a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza (coordenada pelo MRE e o Ministério de Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome) – e a Iniciativa de Bioeconomia, que se concentra em três eixos temáticos: ciência, tecnologia e inovação; o uso sustentável da biodiversidade e o papel da bioeconomia no desenvolvimento sustentável. Para melhor compreensão precisamos explicar como funcionam minimamente esses grupos. Há dois tipos de grupos de trabalho no G20; os GTs propriamente, que são organizados e conduzidos sobretudo por autoridades e membros de governo e ministérios e os Grupos de Engajamento que envolvem a sociedade civil, suas organizações, pesquisadores e empresas entre outros atores para fornecer perspectivas e recomendações diversificadas durante o processo de formulação de políticas. Em relação aos Grupos de Engajamento temos: Business20 (B20); Civil20 (C20); Labour20 (L20); Think20 (T20); Urban20 (U20); Youth20 (Y20); Woman20 (W20) que podem ser facilmente entendidos pelos seus respectivos títulos, o menos óbvio talvez seja o Labour, que representa diferentes sindicatos e o Think que se refere aos Think Tanks mundiais. Agora que está mais clara a atuação do G20, vamos aos fatos Para um exemplo prático de trabalho podemos citar a reunião realizada recentemente pelo grupo de trabalho intitulado GT sobre Transição Energética e Sustentabilidade Climática (ETWG & CSWG) que foi organizada nos dias 27 a 29 de maio, em Belo Horizonte. Nessa reunião para debater a transição energética o C20[3], teve um espaço para expor a síntese dos trabalhos que vem desenvolvendo com as mais de 700 organizações que compõem o grupo. A carta apresentada pelo grupo pode ser acessada aqui em inglês e aqui em português. Considerando que promover uma transição energética justa, acessível e inclusiva, com devida atenção à sua dimensão social, é uma prioridade máxima do G20 deste ano, sob a presidência do Brasil, o C20 trouxe as recomendações focadas em cinco pontos principais: Em resumo, os elementos-chave desse processo de governança incluem: i) respeito pelos direitos dos povos indígenas e comunidades locais à autodeterminação, incluindo garantias de seus direitos territoriais e o direito ao consentimento livre, prévio e informado, ii) participação comunitária precoce nos processos de tomada de decisão, e iii) garantias de mecanismos eficazes para queixas e reparações. A carta foi entregue em mãos pelas representantes do C20, Priscilla Papagiannis (Observatório do Clima) e Natalia Tsuyama (Engajamundo), para Mariana Espécie, assessora especial do Ministro de Minas e Energia e coordenadora do ETWG no G20, e o Embaixador André Corrêa do Lago, Secretário do Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério de Relações Exteriores. (foto acima) Para saber mais sobre essa participação da sociedade civil confira a matéria publicada no site do C20. Mais informações sobre o Grupo de Trabalho (WG3) do C20 sobre “Meio Ambiente, Justiça Climática e Transição Energética”: priscillapapagiannis@outlook.com Outras referências: https://www.g20.org/pt-br/noticias/o-brasil-no-g20-e-a-lideranca-na-transicao-energetica https://www.g20.org/pt-br/noticias/se-conseguirmos-reduzir-as-emissoes-ganhamos-o-debate-afirma-coordenadora-do-gt-em-ultimo-de-dia-de-reuniao https://www.youtube.com/watch?v=aiPqk5vQGPc Entrevista coletiva com o Ministro de Minas e Energia do Brasil, Alexandre Silveira [1] Os “sherpas” são guias experientes originários do Nepal, notáveis por liderar expedições nas áreas montanhosas do Himalaia, desempenhando um papel vital para o sucesso das jornadas. [2] Material produzido e usado como subsídio para esse texto de autoria de BRICS Policy Center, Jubileu Sul Brasil e ABONG e pode ser acessado aqui. [3] O C20 foi oficializado como Grupo de Engajamento do G20 em 2013, e desde então, a cada ano procura garantir que os líderes mundiais escutem as recomendações e demandas da sociedade civil organizada, buscando proteger o meio ambiente, e promovendo desenvolvimento social e econômico, além de direitos humanos

Ferrogrão no Banco dos Réus: Tribunal Popular

Representantes dos povos indígenas, comunidades tradicionais, organizações e movimentos sociais do Pará e Mato Grosso promoveram no dia 4 de março de 2024, um “Tribunal Popular” para julgar a Ferrogrão (EF-170), seus impactos e as empresas envolvidas e financiadoras do empreendimento. Durante a programação, realizada na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém (PA), a “acusação do júri” apontou uma série de violação de direitos e sentenciou a extinção imediata do projeto. “Desde o início do processo da Ferrogrão, só foram realizadas audiências nas cidades, nenhuma dentro das aldeias indígenas. Sendo que os povos Munduruku, Kayapó e Panara têm os protocolos de consulta que precisam ser respeitados, eles são nossa arma de defesa. Por isso, estamos nos unindo em uma aliança contra esta ferrovia”, disse Alessandra Korap Munduruku, que esteve ao lado de caciques e representantes dos Munduruku, e dos povos Kayapó, Panará, Apiaká, Arapiuns, Tupinambá e Xavante. O Tribunal foi composto ainda por organizações e comunidades indígenas, representantes de comunidades de pescadores, agricultores familiares e movimentos sociais. A sentença traz cinco argumentos de acusação: violação do direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé; estudos falhos e subdimensionamento dos impactos e riscos socioambientais conexos; aumento da especulação fundiária, grilagem de terras públicas, desmatamento, queimadas e conflitos fundiários; e favorecimento indevido dos interesses das empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi. Desde a idealização da ferrovia, o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé – garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e internalizada à legislação brasileira – foi desrespeitado pelo Governo Federal. “Os estudos técnicos apresentados por aqueles que defendem o projeto dizem que a ferrovia passará longe dos territórios, mas para nós, que vivemos dentro deles, está perto e nunca fomos consultados. Realizaram audiências nas cidades e jamais pisaram em nossas aldeias, como determina o nosso protocolo de consulta. Por isso, exigimos respeito ao nosso direito de ser consultado antes de colocar empreendimento perto ou dentro do nosso território”, defendeu a liderança da Terra Indígena Baú, no Pará, Mydjere Kayapó Mekrãgnotire. Foto: Leandro Barbosa/Amazon Watch “Este réu representa não só a Ferrogrão, mas outros empreendimentos que estão sendo pensados sem nenhuma consulta aos povos afetados. Os protocolos de consulta dos povos devem ser respeitados como foram pensados nos territórios e a ausência do instrumento do protocolo não é impedimento para a consulta de um povo afetado pelo empreendimento”, reforçou Kleber Karipuna, Coordenador Executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e representante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). Além das comunidades indígenas que seriam impactadas pelo empreendimento, o Tribunal foi também espaço para manifestação e fala de representantes de comunidades tradicionais da região. Francisca Barroso, coordenadora da Rede Agroecológica de Trairão (PA), tratou dos efeitos do projeto nas comunidades de agricultores que vivem no entorno da rodovia BR-163, que corre o risco de virar uma ferrovia. “Essa luta não é apenas dos povos indígenas, mas de todos nós que vivemos da terra e precisamos ter os nossos direitos territoriais respeitados. Nós, agricultores, estamos avisando que a agricultura familiar que alimenta esse país – afinal, as famílias brasileiras não comem soja – vai ser prejudicada com a construção desta ferrovia. Vai ser impossível produzir nessas terras que já estão ameaçadas pela grilagem e uso de agrotóxicos”, destacou Francisca. O Programa Nacional de Logística (PNL 2035) do Ministério da Infraestrutura não tem nenhum cenário futuro sem a Ferrogrão, que demonstra a forte influência do lobby do agronegócio e das empresas internacionais – e existem outras alternativas possíveis para o escoamento de grãos que poderiam ser consideradas. “A Ferrogrão não considera o potencial de desenvolvimento da floresta. E ignora a economia local proveniente da agricultura familiar, ribeirinhos e demais comunidades amazônicas. É um projeto na Amazônia e não para a Amazônia”, explicou João Andrade, representante do GT Infraestrutura Socioambiental. Protesto em frente à Cargill No mesmo dia do Tribunal, o GT Infraestrutura noticiou aqui no site a movimentação dos manifestantes em um ato contra a Ferrogrão no Porto de Santarém, chamando a atenção para os impactos da ferrovia e para sua relação com a Cargill, uma das empresas internacionais interessadas na implementação da ferrovia, e uma das responsáveis por seu financiamento. Foto: Raissa Azeredo “Os 1.000 mil km da ferrovia que passaria pelo coração da Amazônia foram propostos pelas empresas transnacionais Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi para o Governo Federal do Brasil. Caso seja construída, o Governo vai entregar os recursos deste país para a China e Europa. O lucro não será para as pessoas do Brasil. A Ferrogrão será construída no Brasil, será financiada pelo Brasil, irá destruir as florestas e os territórios do Brasil, mas apenas um pequeno lucro irá ficar no Brasil. O resto será exportado, assim como a soja e o milho”, denunciou Mathew Jacobson, diretor de campanha da Stand.Earth. Para Pedro Charbel, assessor de campanhas da Amazon Watch, o tribunal representa a força e determinação dos povos indígenas, comunidades tradicionais e movimentos sociais em defender seus direitos e o futuro do planeta. “O governo brasileiro deveria se atentar à sentença do Tribunal e cancelar imediatamente o projeto da Ferrogrão, caso contrário estará optando por aprofundar a destruição da Amazônia, do Cerrado e dos direitos dos habitantes desta região”, finalizou. Sentença do júri Ao final de seis horas de “Tribunal”, os povos indígenas e tradicionais sentenciaram: “Considerando os graves vícios no planejamento, as violações dos direitos da natureza e dos povos e comunidades tradicionais da região, bem como a necessidade de resguardar os biomas brasileiros e o futuro do planeta dos interesses de empresas transnacionais multibilionárias, este Tribunal Popular determina o  cancelamento imediato e definitivo do projeto da Ferrogrão por parte do Governo Federal e a devida responsabilização da ADM, Bunge, Cargill, Amaggi e Louis Dreyfus pelos danos incorridos contra a natureza e os habitantes da região do Tapajós e do Xingu“, traz o documento da sentença final. Foto: Yuri Rodrigues/FASE Além disso, o Tribunal também determinou que o Governo Federal promova

AMAZÔNIA: SEM SOCIAL NÃO TEM AMBIENTAL

A usina de Tucuruí, no Pará, foi inaugurada nos anos 80 para gerar energia ao país e à indústria do alumínio. As comunidades impactadas do entorno só tiveram acesso à luz elétrica quase três décadas depois. Os paraenses seguem pagando a maior tarifa da federação, apesar de o estado ser o segundo maior produtor de energia do Brasil. E seguimos exportando alumínio para importar bicicletas de alumínio. A visão nacional de desenvolvimento ainda nos remete a grandes projetos de infraestrutura na Amazônia, só que não necessariamente para a Amazônia. Planejados para atender o resto do país, nem sempre se convertem em benefícios para os seus 28 milhões de habitantes. Comparada às outras regiões, há um abismo no acesso dos amazônidas às políticas sociais e serviços básicos de saúde, educação, energia, transportes, comunicações e saneamento. A luz elétrica já alcançou quase 99% dos lares brasileiros, mas é na Amazônia onde se encontra grande parte dos excluídos (IEMA). Enquanto mais de 80% da população do Sudeste tem acesso a coleta de esgoto, esse número não chega a 15% na região Norte (Trata Brasil/2023). Com a Covid-19, a falta de estrutura assistencial ficou ainda mais escancarada, com seus municípios entre os primeiros a colapsar, sem respiradores, tampouco cilindros de oxigênio para abastecê-los. Como as políticas básicas são de competência dos governos locais, a exclusão se torna ainda mais aguda em uma Amazônia onde municípios têm tamanho de nações, populações dispersas, de difícil acesso, e altos custos logísticos. Os mecanismos de compensação são insuficientes frente a um sistema de arrecadação desenhado para realidade ao sul do país. Não são fáceis os desafios de uma prefeitura como a de Altamira (PA) para distribuir merenda escolar seguindo o padrão custo-aluno ou implementar a atenção básica via tabela SUS junto aos seus cidadãos espalhados em uma área maior que a Grécia, Portugal ou Ceará. A conta jamais fechará sem alianças e estratégias diferenciadas que compensem devidamente a logística onerosa e atendam aos contextos amazônicos. Empreender em polos isolados e longínquos demanda soluções que tenham resolutividade local, garantias de manutenção e autonomia comunitária. Se as coisas demoram mais para chegar à Amazônia, que quando cheguem sejam o que há de mais avançado. Porém, para que se constituam em tecnologias de ponta, na ponta, é preciso cocriá-las a partir das comunidades e suas culturas de governança para boa gestão. Caso contrário, corre-se o risco de aumentar o ferro-velho de empreendimentos abandonados no meio do mato. De barcos hospitais à sistemas fotovoltaicos multifinalitários, já existem muitas iniciativas demonstrativas bem-sucedidas e prontas para escalar via governos através da soma de esforços entre comunidades, ONGs, projetos de extensão e programas de responsabilidade empresarial. Movimentos indígenas, quilombolas, extrativistas e organizações parceiras acabam de propor um conjunto de políticas e tecnologias sociais integradas, de baixo custo e alto impacto, para fazer chegar água potável, energia e internet até 2025 para os quase um milhão de amazônidas excluídos, povos da floresta de aldeias e comunidades remotas. São investimentos que salvam vidas e se pagam ao reduzir o custeio dos serviços assistenciais a partir das energias renováveis, inclusão digital, tratamento de água, telemedicina, conservação de vacinas, processamento de alimentos e agregação de valor aos produtos da sociobiodiversidade. No entanto, em vez de medidas de bem viver, deixamos que nossos povos da floresta que prestam um serviço voluntário como guardiões dos ativos naturais que nos mantêm vivos recebam em troca grileiros, bala, doenças de fora e mercúrio. Sem um Estado suficiente, seguiremos vendo situações, por exemplo, em que uma liderança indígena tem que recorrer ao garimpeiro ilegal das proximidades para salvar o filho doente com algum remédio ou combustível para remoção. Aí os favores normalizam as relações e sua presença no território, o movimento pela desintrusão se divide, enfraquece e abre-se a porteira para entrada de novas levas de garimpeiros, do chão, que não são os ricos, aqueles lá fora que de fato ficam com o brilho do ouro. Um ciclo perverso de pobreza, monetária e não monetária… Sem social não tem ambiental. CAETANO SCANNAVINO – Coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, com atuação há mais de 30 anos na Amazônia, membro da coordenação do Observatório do Clima, do GT Infraestrutura e integrante da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.•••Publicado originalmente na Folha de SP: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/desigualdades/2023/10/amazonia-sem-social-nao-tem-ambiental.shtml