Descarbonização e inclusão social sem espaço no PNE 2050

O principal recado que a pandemia de 2020 deu à humanidade é que se faz urgente a mudança na forma como os recursos naturais (renováveis ou não) têm sido explorados. E que se quase 200 países são signatários do Acordo de Paris para impedir o aumento de temperatura global, cada país precisa fazer sua parte em seus planos de infraestrutura de longo prazo com vistas à descarbonização e à inclusão social. A pandemia também explicitou as carências sociais, deixando claro que tão importante quanto crescer economicamente é avançar para a equidade de serviços básicos, como água e energia, educação e cidadania para todos.

Infelizmente, não é isso que o Plano Nacional de Energia 2050 apontou. Ainda que ele seja fruto de uma série de encontros setoriais, com profissionais de Estado bastante qualificados na formulação de propostas e políticas públicas, o plano, da forma como está apresentado, não é disruptivo para contribuir com o cenário de descarbonização da economia. Ainda que o PNE traga um cone de incertezas quanto às dificuldades de um planejamento de longo prazo em um cenário cada vez mais imprevisível, há um consenso em todas as esferas mundiais que a aceleração da descarbonização da economia é fundamental para assegurar a resiliência das pessoas e dos biomas num contexto de mudanças climáticas. 

Assim, ao indicar que em 2050 o Brasil produzirá três vezes mais petróleo que atualmente, ao manter em funcionamento as usinas de carvão, ampliar as usinas a gás natural e nucleares e ainda apostar em empreendimentos energéticos que avançarão sobre 40% de áreas protegidas no bioma amazônico, o PNE mostra que a receita neste cenário tão adverso continua sendo a mesma de sempre no país. Suas atuais diretrizes acomodam interesses, mas não apontam para a solução de problemas que já estão sendo vividos atualmente e deverão ser aprofundados neste horizonte de três décadas. 

Diante de exercícios que levam a cenários contraditórios entre si, a mensagem que se passa é a ausência de estratégia governamental. E, sem uma visão clara, qual a orientação que será dada para as políticas públicas? Se o caminho de futuro pode ser tanto o de uma matriz elétrica 100% renovável quanto o de manter o foco no aproveitamento dos recursos de petróleo, que orientação o governo dará para as políticas industrial (deveremos priorizar/cortar subsídios para as renováveis ou para os fósseis?), de pesquisa e desenvolvimento (o recurso público de P&D deve priorizar o quê?), entre outras questões que permanecem abertas.

Contribuições
Organizações que integram o GT Infraestrutura apresentaram suas contribuições ao PNE. Entre elas, destaca-se que o Plano deveria rever a expansão de empreendimentos energéticos na Amazônia, sobretudo em áreas protegidas, como terras indígenas e unidades de conservação. Para isso, seria interessante incluir no plano um novo cenário além dos quatro já disponibilizados, onde a expansão elétrica aconteça sem a construção de novas grandes hidrelétricas na Amazônia. Este sim é um cenário já alinhado à realidade, visto que a concretização recente de grandes projetos hidrelétricos, alinhados com o antigo PNE 2030 e listados no atual relatório do PNE-2050, revelaram que os custos socioambientais destes grandes projetos continuam sendo subestimados, bem como o seu custo de investimento, seu potencial de conflitos, atrasos e judicialização. Assim, faz-se necessária uma abordagem mais cautelosa no PNE 2050 sobre a realização de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, inclusive sobre aqueles que, aparentemente, não interferem sobre áreas especialmente protegidas.

Além disso, ainda no capítulo sobre ‘Hidreletricidade’ o documento não apresenta estimativas nem aborda a existência de estudos sobre as emissões de carbono associadas à realização de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, bem como não leva em consideração os estudos que apontam o potencial de emissão de metano destes projetos atualmente em estudo. A questão social também é uma lacuna. O texto do PNE 2050 não aponta soluções para o problema da falta de participação da sociedade no processo de planejamento das hidrelétricas.

Conforme o próprio  relatório menciona no item “Complexidade socioambiental” é necessária “a participação da sociedade desde as etapas iniciais do planejamento energético”. Entretanto nenhuma das usinas hidrelétricas elencadas no atual relatório passou por este processo, uma vez que a sociedade civil toma conhecimento dos empreendimentos após sua indicação nos Planos Decenais, ou seja, quando já foram ultrapassadas as fases iniciais do planejamento.

Ainda sobre impactos na região Amazônica, verificou-se que não há sequer uma previsão consistente de qualquer plano de geração de energia renovável para a Região Norte sem ser por fonte hídrica. Sabe-se que há um grande potencial solar, eólico e de biomassa, esta última bastante diversificada. O Plano deveria considerar esses potenciais e apontar diretrizes para esta geração. Neste aspecto chama atenção a falta de planejamento específico para o estado de Roraima, o único do país que ainda não está conectado ao Sistema Interligado Nacional, e que tem o maior potencial solar e eólico entre os estados da região Norte, conforme já constatado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) no relatório do GT-Roraima/2017.

A leitura atenta do PNE 2050 permite concluir que não há como estabelecer uma visão de 2050 sem levar em conta as intensas transformações que a transição energética trará – e já está trazendo – ao setor energético e à economia de maneira geral. De fato, dadas as vantagens competitivas do país na transição para uma economia de baixo carbono, bem representadas no documento, os benefícios da transição energética superam em larga margem os custos de sua implementação. 

No entanto, para que esta visão seja efetivada, os princípios que norteiam o Plano devem ter uma relação explícita com a busca por uma matriz energética competitiva, de baixo carbono, inclusiva e que seja vetor de desenvolvimento socioeconômico para o país. A visão de 2050 para o Brasil deve explicitamente fundamentar-se nos princípios de uma transição energética justa e economicamente eficiente, condicionando as políticas públicas, programas e planos, inclusive impedindo os que caminhem em direção contrária. Sendo assim fundamental para essas avaliações que o plano inclua indicadores sociais como saúde e renda. Sem esse tipo de conexão entre o setor energético e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, não é possível avaliar os impactos e seus efeitos.

Da mesma forma, ao reconhecer o papel das mudanças climáticas na oferta de recursos naturais para a geração,  o PNE não se propõe a avaliar um cenário de expansão do setor sem aumento das emissões de gases de efeito estufa, dando por certo que estas aumentarão. Usa-se, para tanto, a justificativa de que ainda é preciso ampliar a demanda para atendimento das necessidades de desenvolvimento. A meta é a manutenção da base renovável da matriz energética e não a ampliação.

Essa visão acomoda o país no discurso de que “o Brasil já se destaca dos demais países por sua base renovável”, e mantém o país numa zona de conforto perigosa, que resulta na perda de oportunidades e no desperdício das vantagens comparativas do setor energético. Perde-se a oportunidade de enxergar a abundância e a diversidade de fontes renováveis como um ativo que pode ser melhor explorado para além do setor de energia em si. Perde-se a chance de colocar a indústria e os produtos brasileiros mais competitivos, criar e fomentar o desenvolvimento e inovação tecnológica nacional. 


Artigo produzido a partir da contribuição da Rede Energia & Comunidades ao Plano Nacional de Energia 2050. Integram a Rede: Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB); Greenpeace; Frente por uma Nova Política Energética; Fundo Mundial para a Natureza (WWF-Brasil); Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC); Instituto Clima e Sociedade (ICS; Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA); Instituto Socioambiental (ISA); International Energy Iniciative-Brasil (IEI); Projeto Saúde e Alegria (PSA); e Um Litro de Luz.

Foto: Belo Monte: contribuições são guias para que isso não aconteça mais

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