Crise hídrica é o preço que pagamos pelo desmatamento

Para especialista do ITA, momento crítico era anunciado. Reverter o problema exige aprender com o passado e pensar em soluções também para o longo prazo Estamos vivendo uma crise hídrica e energética sem precedentes. A bandeira vermelha já virou o “novo normal” e os especialistas não são muito otimistas quanto a possíveis novos aumentos nas contas de luz e racionamentos de água. No entanto, apesar dos constantes alertas sobre a relação inegável dessas crises com o desmatamento, a cada novo levantamento, a área desmatada da Amazônia, maior floresta tropical do mundo, só cresce. Os últimos estudos alertam, inclusive, para o risco de ela virar uma savana. A falta de chuvas é apenas uma consequência disso. “Precisamos lembrar que essa é uma crise anunciada”, afirma o professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), Wilson Cabral, que participou do novo episódio do podcast Infraestrutura Sustentável, que voltou a tratar do assunto. O especialista afirma não ter dúvidas de que esse já é o preço que estamos pagando pelo desmatamento. “Eu não diria só da Amazônia, mas a degradação de ecossistemas de forma generalizada”. Ele lembra que a Amazônia é peculiar, porque quando derrubamos a floresta estamos prejudicando também os rios voadores, cuja umidade é distribuída também para outras regiões. “Isso está relacionado com a agricultura, os níveis dos rios, o abastecimento dos reservatórios das hidrelétricas, precipitações, todos os usos possíveis e imagináveis da água”. A agricultura depende da floresta mas, em muitos casos, tem sido a grande vilã do desmatamento, o que Wilson Cabral descreve como “um ciclo vicioso” ou “uma retroalimentação negativa”. Ele explica que à medida que a agricultura avança e o desmatamento também, a atividade cria dificuldades para ela mesma, além de para toda a sociedade. O que podemos fazer para reverter, ou pelo menos não piorar, essa situação num momento em que as mudanças climáticas estão cada vez mais presentes para cobrar essa conta? Antes de responder a essa pergunta, Wilson Cabral diz que é fundamental lembrarmos porque não fizemos algo antes, o que para ele está relacionado ao fato de que, até muito pouco tempo atrás, não se pensava a longo prazo. Assim, como os efeitos do desmatamento não eram sentidos de forma tão imediata, a sociedade foi investindo em modelos de produção e consumo acelerados que nos trouxeram até aqui. “Agora não temos mais tempo a perder e as ações precisam ser emergenciais”, afirma. “O tempo urge e não há mais esse alongamento entre o tempo da causa e do efeito. Como diz a Greta Thunberg, precisamos lembrar que não há planeta B”, completa. Acontece que o que nós fizermos hoje, para o bem ou para o mal, também vai levar um tempo para gerar resultados. Por isso mesmo, Wilson Cabral acredita que precisamos olhar para o longo prazo. Ele exemplifica: estamos vivendo uma crise hídrica que, pela nossa matriz energética ser muito dependente das hidrelétricas, também significa uma crise energética. Para lidar com o problema, o acionamento de termelétricas tem sido considerado uma boa ideia. Mas essa ação tem um efeito de retroalimentação negativo muito importante, pois aumenta o lançamento de carbono na atmosfera, intensificando o impacto climático que ajudou a gerar esses períodos de seca prolongados, que geraram a crise hídrica. Ou seja, precisamos ser mais inteligentes que isso e pensar em soluções que gerem mais co-benefícios e menos impactos sobre o próprio modelo. A transparência na gestão dessas crises é um fato importante nesse contexto. A sociedade precisa saber a gravidade da situação e tudo o que está sendo feito, pois será ela a principal afetada por qualquer decisão. Wilson Cabral destaca que as previsões de precipitações para os próximos meses não são otimistas e medidas para isso já deveriam estar sendo tomadas agora. “Não campanhas para as pessoas tomarem menos banho, mas medidas concretas, inclusive em termos de eficiência energética e redução de consumo por outros atores (como a indústria)”, afirma. Ao mesmo tempo, precisamos investir em soluções que tenham resultados no médio e longo prazo, como fazer a restauração ecológica de bacias hídricas e zerar o desmatamento, não só da Amazônia, mas também de nossos outros biomas. Tudo isso também pede planejamento e integração de agendas, pois todos os atores precisam fazer suas partes. Se não, continuaremos vivendo a crise e contribuindo para agravá-la. Este artigo foi escrito por Alexandre Mansur e Angélica Queiroz e publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Exame.

Árvore ameaçada de extinção consegue refúgio em embaixada

Jatobá de seis metros de altura chega a porta de embaixada em mobilização contra o desmatamento e as queimadas no Brasil Por Sônia Guajajara* e Sérgio Guimarães** Enquanto o presidente Jair Bolsonaro discursava na ONU falando inverdades sobre meio ambiente no Brasil e outros temas, um Jatobá de seis metros de altura, espécie brasileira ameaçada de extinção, teve seu pedido de refúgio aceito terça-feira, 21 de setembro (Dia da Árvore) pela Embaixada da Noruega. A iniciativa do Jatobá, que contou com apoio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), do GT Infraestrutura e que teve a coordenação internacional dos assessores estratégicos Marcus Vinicius Ribeiro e Zachary Kuipers da 4H5H MEDIA, buscou chamar a atenção mundial para a destruição acelerada dos biomas brasileiros, em especial da Floresta Amazônica. Na porta da embaixada, lemos a carta com o pedido de socorro. Depois de várias horas de negociações, o apelo foi aceito e o Jatobá foi replantado no espaço da representação norueguesa. Trata-se de um acolhimento simbólico, mas importante por representar a luta de povos indígenas e ambientalistas, bem como o sentimento da grande maioria da população brasileira pela preservação da nossa floresta e seus povos. Segundo definição do Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (ACNUR), refugiados são aqueles que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição, como também à grave e generalizada violação de direitos e conflitos. A escolha da Embaixada da Noruega para o pedido de refúgio é por ser esse o primeiro país a proibir o desmatamento. Esse inusitado pedido pode parecer estranho ao homem branco que vive apartado do mundo natural e se considera acima das árvores, mas a ancestralidade sempre ensinou que o sentido da vida é o coletivo e que nós e natureza formamos um todo coeso. Esse pedido é um clamor pela vida de todas as espécies ameaçadas por uma visão corrompida e ultrapassada de convívio com a natureza. As espécies de plantas e animais dos biomas brasileiros, nesta ação representadas pelo Jatobá, estão sob ameaça. Estudo recente publicado na revista científica Nature revela que o fogo na Amazônia, provocado pela ação humana, pode ter atingido 95,5% das espécies de plantas e animais vertebrados conhecidas da floresta tropical. O desmatamento fora de controle aproxima a maior floresta tropical do mundo do seu ponto de não retorno. Se o ritmo atual de devastação for mantido, este “ponto de não retorno” pode chegar nos próximos anos, como vem alertando diversos cientistas brasileiros e internacionais. O inesperado pedido de refúgio mostra a gravidade da situação de milhões de árvores e outras formas de vida que estão sendo exterminadas sem ter a quem recorrer no Brasil, onde autoridades responsáveis por sua proteção muitas vezes estão aliadas aos destruidores. Cabe a nós, cidadãos brasileiros, moradores das florestas, do campo e das cidades nos posicionar com firmeza em defesa dessa e de milhões de árvores em busca de uma solução; o que permitirá que nossas florestas, sua biodiversidade e seus habitantes possam viver em paz no Brasil, continuando a prestar seus relevantes serviços para nós brasileiros e para todo o planeta. A ação visa também retomar as “Cinco Medidas Emergenciais para Combater a Crise do Desmatamento na Amazônia”, proposta apresentada por mais de 60 organizações e coletivos da sociedade brasileira, que incluem, além da moratória do desmatamento, o endurecimento das penas aos crimes ambientais, inclusive o bloqueio de bens dos 100 maiores desmatadores da Amazônia; a retomada do Plano de Controle do Desmatamento da Amazônia que conseguiu reduzir significativamente a devastação ambiental na região, engavetado por Jair Bolsonaro. Também a demarcação de terras indígenas, a titulação de territórios quilombolas e a criação de 10 milhões de hectares em Unidades de Conservação; além da reestruturação do Ibama, ICMBio e Funai, fragilizados pelo atual governo. A íntegra do documento está publicada no site www.arvorerefugiada.com.br e chama para a assinatura de uma petição pelo fim do desmatamento. “Estamos sob ataque de pessoas e estruturas que deveriam nos proteger. Precisamos chamar a atenção para essa tragédia em curso e mobilizar além da sociedade brasileira, a comunidade internacional para reverter essa dramática situação”, disse o Jatobá ao pedir refúgio. Todo nosso apoio a ele e às milhões de arvores e outras formas de vida que estão sendo dizimadas desnecessariamente no Brasil. * Sônia Guajajara, Coordenadora Executiva da APIB – Lider indígena nacional, ativista, ambientalista e pré-candidata à Presidência da República. **Sérgio Guimarães, Secretário Executivo do GT Infraestrutura – Engenheiro, especialista em políticas ambientais e ambientalista. Foto: Sérgio Guimarães

Qual será o sanduíche bom para o clima?

A produção de hambúrguer sintético é um dos negócios promissores com a demanda por cuidados com as pessoas e com o meio ambiente. O que mais esperar dessas tendências? Nos últimos anos, muito tem se falado em uma nova economia, que seja mais sustentável, mudando a forma como nos relacionamos com os recursos naturais e ajudando a mitigar os efeitos das mudanças climáticas, que ninguém pode mais negar. No entanto, muita gente ainda é resistente ao assunto, associando-o a algum tipo de retrocesso ou paralisação. Não é nada disso. O que precisamos é de uma transformação, com empreendimentos que tenham o olho no futuro e não no retrovisor. Os megaprojetos já estão perdendo espaço para outros menores e baseados em conhecimentos mais sofisticados. Essa é uma tendência porque os negócios precisam mudar para estimular mudanças de atividades e comportamentos que sejam indutores da redução de gases do efeito estufa e nos ajudem a cumprir as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris e endossadas pelas principais potências do mundo. “Os próprios objetivos para o desenvolvimento sustentável (ODS) convergem para uma economia que tenha como base os serviços para a sociedade de forma a não destruir a natureza”, afirma Ricardo Abramovay, que é economista, professor e especialista em economia verde, em mais um episódio do podcast Infraestrutura Sustentável. Nessa nova economia, boa para o clima, há espaço para que muitos negócios prosperem, mas eles precisam também estar alinhados com essa mentalidade do cuidado — com as pessoas e com o meio ambiente, ou seja, na luta contra as desigualdades e contra as mudanças climáticas. “Essa é a mensagem central: desenvolvimento sustentável não é só meio ambiente, é favorecer a emergência de uma vida social em que as pessoas possam florescer e exercer as suas capacidades”, afirma Abramovay. Nesse sentido, segundo ele, a infraestrutura se torna um meio para chegar a esses objetivos e os negócios que forem por essa linha têm tudo para se dar bem. A área da saúde é uma na qual há muito espaço para investimento, especialmente nos setores de vacinas, equipamentos e, sobretudo, cuidado com as pessoas. Abramovay lembra que a pandemia deixou muito claro que não podemos depender de apenas alguns países, como Índia e China, para a produção de insumos, mesmo os mais elementares, pois isso deixou muitos países desabastecidos, justamente quando mais precisavam. Mobilidade é outra área promissora. As pessoas vão precisar se locomover de outra forma, dependendo menos de veículos que emitem gases do efeito estufa. Isso já está dando lugar a novos negócios, tanto aqueles que usam tecnologias digitais, quanto os que investem em fontes renováveis de combustíveis. Naturalmente, a área de cuidados com a natureza é prioritária para quem pensa em novos negócios. Investir em energias renováveis, por exemplo, é não apenas uma forma de diminuir os efeitos das mudanças climáticas, mas também uma área que têm potencial de gerar muitos empregos, inclusive para postos de trabalho qualificados. Negócios especializados em regeneração florestal, recuperação de áreas degradadas também estão entre os que Abramovay acredita que têm muita chance de prosperar. Ele também cita que os imóveis, domésticos e comerciais, precisarão passar por adaptações para atender às mudanças no comportamento das pessoas. “As pessoas vão precisar reformar suas casas e instalar novos equipamentos de aquecimento, senão a conta não vai fechar. Isso vai dar lugar a negócios, inclusive pequenos”, explica o professor, lembrando que na Grã Bretanha, por exemplo, são 30 milhões de domicílios que vão ser recompostos para atender às metas ambiciosas do país. Os negócios ligados à alimentação também devem ganhar cada vez mais espaço. Abramovay afirma que a contestação ao consumo de carne e à crueldade animal vinculada a esse hábito é crescente. Essa nova exigência dos consumidores têm estimulado, por exemplo, a produção de carnes de laboratório. Há consultorias que estimam que, em 30 anos, 40% do consumo atual de carne vai ser direcionado para carnes vegetais ou essas elaboradas em laboratório. São negócios que estão crescendo com uma velocidade impressionante. É possível esperar uma pressão cada vez maior por redução nas emissões de metano, o que deve impactar a produção bovina, e estimular substitutos, inclusive aves e suínos. E esses são só alguns exemplos que provam que a economia boa para o clima não tem nada de paralisada, é exatamente o contrário. “O que está acontecendo é uma transformação profunda que será mais promissora quanto mais ela obedecer às necessidades da luta contra a crise climática”, conclui Abramovay. Os desafios são imensos, especialmente no Brasil, onde muita gente ainda tem receio de investir nesse tipo de negócio e há projetos novos que não só não estão indo no caminho certo como andam para trás, estimulando, por exemplo, o desmatamento, questão que não deveria nem mais estar sendo discutida, já que todo mundo que está minimamente atento sabe do potencial da floresta em pé. Investidores e empreendedores que pensam no longo prazo não podem mais ignorar que nada mais será como antes. Ainda bem. Foto:  Ivam Grambek/Flickr Este artigo foi escrito por Alexandre Mansur e Angélica Queiroz e publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Exame.

Uma gota no Pantanal

Uma viagem pela Transpantaneira nesta temporada de seca faz o visitante se encontrar com um chocante futuro. Andreia Fanzeres Conheci a Transpantaneira na seca de 2007 para acompanhar analistas do Ibama e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA) no censo das aves. A escolha da estrada parque não foi um acaso. Os 140 quilômetros que cortam o Pantanal mato-grossense eram um dos principais locais de avistamento de fauna de todo o bioma. Seria praticamente impensável cruzar essa estrada sem se encontrar com o que de mais característico há no Pantanal. Mas, depois dos incêndios que devastaram a região em 2020 e da ausência de chuvas na região, a paisagem ainda parece agonizar. Árvores enegrecidas, redemoinhos de ar quente levantando a poeira nas fazendas, corixos secos, solo rachado e exposto no lugar das lagoas chocam o visitante que um dia viu o Pantanal transbordando de vida. Sem água, a família de capivaras se comportava como retirante na aridez deste novo Pantanal. E, em vez dos jacarés, da revoada de tuiuiús e do colorido das suas aves no céu, foi o gado que posou para foto. A água, elemento que determina o pulso da vida na maior planície inundada do mundo, agora falta. Não apenas para os bichos, mas também para o pantaneiro. Chega barrenta, manchando pratos e corpos de quem luta, sob o sol escaldante, para minimizar os efeitos da tragédia dos incêndios este ano. Na casa de uma moradora da Transpantaneira, as rãs escolheram o vaso sanitário para viver. “É que aí tem água sempre”, explicou-me. Ela não se conformava em lembrar que desde o ano passado o Pantanal não encheu mais e agora é possível atravessar a pé rios como o majestoso Paraguai. Nesse comecinho de setembro, a nebulosidade e o vento espalhavam os tímidos pingos de chuva, que mal chegavam a fixar a poeira no chão. Cada gota passou a ter um valor ainda maior, desde então. Com o preço do combustível e da energia elétrica nas alturas, garantir água tratada e refrigerada nesses rincões é prioridade, questão de vida e também de morte. Como levantou de forma inédita o Mapbiomas, o Brasil perdeu mais de 3,1 milhões de hectares de superfície de água nos últimos 30 anos. Isso representa uma redução de 15,7% com relação aos corpos hídricos existentes no país em 1991. No Pantanal, esse decréscimo foi particularmente agudo, na ordem de impressionantes 68% entre 1985 e 2020. Tamanha diferença se expressa, é claro, naquilo que vemos como paisagem, mas que costuma ficar na memória dos mais antigos, não sendo tão perceptível de um ano para outro. Os alertas de que o Pantanal estava secando a cada nova barragem autorizada na Bacia do Alto Paraguai, ou da farra de outorgas para uso da água no bioma, sem avaliações sobre impactos cumulativos e efeitos sinérgicos dessas intervenções, anteviam um cenário em que tantas alterações na delicada dinâmica hídrica no Pantanal poderiam ter consequências gravíssimas para as futuras gerações. O criminoso desleixo na implementação das políticas ambientais pelo governo federal desde 2019, somado a condições climáticas inéditas, fez 2020 mudar para sempre o que conhecíamos como Pantanal. A escalada do desmatamento e condições climáticas severas fizeram de 2020 um marco para o Pantanal. Especialistas ouvidos pelo Observatório do Clima apontaram, por exemplo, que o nível do rio Paraguai tinha sido o mais baixo desde 1971 e choveu em média entre 50% e 60% menos do que o normal, o que tornou o combate aos incêndios criminosos uma missão sem precedentes na história do Pantanal. Hoje, incêndios ativos voltam a torrar o que já queimou ano passado. Agora, os animais que disputam nesgas de água vistas das pontes secas da Transpantaneira são um presente cada vez mais raro a quem tem a chance de testemunhar o que será desse futuro que já chegou. Imagens: Andreia Fanzeres

Como será a nova economia boa para o clima?

A transformação radical na forma como produzimos bens e serviços também oferece oportunidade de geração de renda e criação de empregos “A partir de amanhã ninguém usa carro”. Até hoje não tivemos nenhum governo que dissesse algo assim. Mas, com as restrições impostas pela pandemia, entre abril e junho de 2020, as emissões globais caíram pela primeira vez nas últimas décadas. A ameaça do vírus alterou os modos de vida das pessoas em todo o mundo. Está na hora de fazermos algo parecido com relação à crise climática. O exemplo do carro pode parecer um exagero, mas o mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), deu um alerta vermelho para toda a humanidade: temos muito o que fazer e pouco tempo para agir. A crise climática está se acentuando e os eventos extremos vão se tornar cada vez mais frequentes se não diminuirmos nossas emissões agora. O raciocínio do professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de vários livros sobre economia verde, Ricardo Abramovay, é de que a nossa economia precisa passar por mudanças drásticas. Ele explica que o modelo atual de produção não só é destrutivo para a natureza, como não satisfaz as necessidades básicas de parte importante da população mundial, que ainda vive com fome, sem saneamento e acesso à saúde e à educação. Ao pensarmos sobre isso, o que nos vem à mente é que precisamos produzir mais, para gerar mais recursos e empregos que ajudem a melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. “Mas o jeito que a humanidade sabe produzir até agora é emitindo gases do efeito estufa”, lembra o pesquisador. Para se ter uma ideia do tamanho da encrenca, segundo o professor, há 30 anos atrás, a matriz energética mundial dependia em 86% de combustíveis fósseis. De lá para cá, houve uma enorme mobilização governamental, científica e até no meio empresarial e, mesmo assim, hoje a nossa dependência dessa fonte de energia ainda é de cerca de 80%. “Em 30 anos, diminuímos 6%. Agora, até 2030, temos que fazer com que esse número caia pela metade, ou seja, para uns 40%. É um desafio extraordinariamente importante e difícil de ser alcançado, porque exige mudar a matriz energética global”, afirma Abramovay e ressalta que, apesar de as fontes renováveis estarem em ascensão em todo o mundo, ainda somos dependentes de carvão e as empresas petrolíferas continuam investindo nessa fonte numa quantidade superior à necessária para a transição que precisamos fazer. “Do ponto de vista das empresas produtoras de combustíveis fósseis, é como se a crise climática ou não existisse ou fosse ser enfrentada por meio de tecnologias que não estão prontas, como a captação de carbono, que ainda é cara e difícil”, afirma Abramovay. Isso precisa parar. Como? Olhando para as oportunidades. Quais são elas? Para o professor, que falou sobre o assunto no novo episódio do podcast Infraestrutura Sustentável, elas estão no fato de que a Europa Ocidental, os Estados Unidos, a China, a Índia, o Japão, todos os jogadores mundiais que contam nessa história, estarem “fazendo um imenso esforço de pesquisa científica e tecnológica para chegar à soluções capazes de reduzir as emissões de gases do efeito estufa.” Ele ressalta que a precificação do carbono, cobrando uma espécie de imposto de quem emite, ainda está dando os primeiros passos, mas deve ser uma realidade num futuro não muito distante. E que, além disso, fazer essa conversão da economia global em direção à redução de gases do efeito estufa também é oportunidade de geração de renda e criação de empregos. “É uma reviravolta na economia.” Desde o fim da Segunda Guerra Mundial nenhum país fixou para sua economia um objetivo diferente do de fazer com que a economia crescesse. Abramovay explica que a política macroeconômica sempre foi a estabilização, porque ela ajudava a chegar a esse objetivo. No entanto, com a crise climática, isso mudou. Nos Estados Unidos, por exemplo, desde a vitória de Joe Biden, a economia está planejada para o combate às mudanças climáticas. “Pela primeira vez na história, temos um tema referente à relação entre sociedade e natureza no âmago das políticas e da gestão econômica. Esse é um fato importante de esperança porque alguma coisa interessante vai sair daí no plano global”, afirma. “Todas as autoridades das organizações multilaterais estão gritando forte que o que a gente está fazendo não está à altura dos desafios que estão sendo colocados”, completa. No entanto, Abramovay lembra que não se muda um modelo econômico por decreto. “Estamos lidando com uma situação de alta complexidade em que decisões governamentais e de direções empresariais são fundamentais, mas se inserem num contexto que vai muito além da capacidade de elas provocarem por si só as transformações necessárias”, explica. Para ele, todos precisamos nos perguntar o que queremos da nossa vida econômica. E a resposta não pode mais ser o óbvio crescimento. “Esse raciocínio não pode mais ser desse jeito. A gente precisa saber para onde a economia tem que crescer e que meios ela tem que usar.” O professor ressalta ainda que, não poderemos continuar consumindo como sempre, mesmo que a tecnologia nos ajude a reduzir as emissões. Nesse sentido, a infraestrutura também precisa mudar, passando a ser pensada a partir dos serviços que gera. Abramovay vai lançar, em breve, um trabalho sobre esse assunto e adianta que essa é outra área que está em transformação. Ele ressalta dois aspectos: o primeiro é que atores importantes, como o Banco Mundial, o G-20 e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) já estão falando com frequência sobre soluções baseadas na natureza; a segunda é que ele chama de “o fim da era do concreto”. Nesse cenário, o foco não é mais só construir, mas “usar de maneira inteligente a natureza para poder, por meio desse uso, lançar as bases permanentes para a satisfação das necessidades humanas.” Os mega projetos devem perder espaço. “O que mais precisamos é de projetos dispersos, localizados, em diferentes áreas, mas que precisam ser apoiados

Como a geração elétrica depende das florestas

As lições de Itaipu para conservar e recuperar a vegetação nativa, fonte de água e de chuvas para a usina O novo relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC) alarmou o mundo avisando que algumas consequências que estamos vivendo já são irreversíveis. A Amazônia, segundo o estudo, pode virar uma savana se perder de 3% a 8% a mais de sua cobertura florestal. Isso pode acontecer se não pararmos agora o desmatamento — no ano passado, a área derrubada foi a maior dos últimos 11 anos. Como se não bastasse ter papel fundamental para regular o clima do planeta, as florestas são as nossas fábricas de água e, consequentemente, de energia. Segundo dados divulgados pelo Operador Nacional do Sistema (ONS) e pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), as hidrelétricas entregaram 72,6% de todos os MWh consumidos no Brasil no primeiro semestre de 2021. Isso apesar da pior seca dos últimos 91 anos, que nos jogou numa crise energética. Como a chuva que cai do céu vem das florestas, para não ficar sem água e energia, o caminho é cuidar das nossas árvores. Para o setor elétrico, a conservação das florestas deve ser uma prioridade. “No Brasil, com uma matriz energética com grande contribuição da hidroeletricidade, a segurança energética está diretamente associada à segurança hídrica, e nossos recursos hídricos estão associados aos ciclos climáticos e à riqueza de nossos ecossistemas”, explica Ariel Scheffer, superintendente de Gestão Ambiental de Itaipu. A empresa responsável pela gestão da usina percebeu há tempos a relação entre floresta, chuva e energia. “As florestas têm um papel essencial na regulação do ciclo hidrológico, uma vez que a cobertura vegetal contribui na disponibilidade e purificação da água, influencia no regime de precipitação, alimenta o lençol freático e contribui na recarga de aquíferos. Além disso, a vazão regular, cíclica, das chuvas influencia o regime hidrológico dos rios. E a estabilidade do sistema climático-hidrológico é essencial para a segurança hídrica e energética do país”, diz Ariel. A usina de Itaipu realiza ações de conservação e restauração das matas ciliares dos corpos hídricos e nas áreas conhecidas como de recarga das grandes bacias de contribuição para o reservatório. Isso garante um fluxo mais regular para a geração de energia, assim como para outros usos da água. “Aproximadamente 18% da contribuição hídrica ao reservatório de Itaipu, vem do aporte de água ‘produzida’ em cinco bacias hidrográficas que desaguam diretamente no reservatório abaixo de Porto Primavera (em São Paulo) graças aos sistemas naturais”, explica Ariel. Ele acredita que esta “produção local” pode aumentar se houver esforços conjuntos na restauração ambiental. Ele lembra que a relação entre o déficit florestal em matas ciliares, áreas de recarga e nascentes tem sido cada vez mais estudada no Brasil e muitas ações e investimentos de setores dependentes da água, se baseiam na relação água e floresta. Segundo Ariel, Itaipu está atenta à importância de cuidar das árvores desde 1979, quando criou mais de 100 mil hectares de áreas protegidas, implantando floresta ciliar no entorno do seu reservatório. Hoje, essa faixa de proteção possui uma média de 210 metros de largura e ocorre na borda de todo o reservatório. Ao longo do tempo, os objetivos se ampliaram juntamente com a escala de atuação, onde boas práticas se replicam no território de contribuição da bacia hidrográfica do rio Paraná, exigindo da empresa um modelo de gestão ambiental para os usos múltiplos do reservatório e áreas protegidas, com articulações setoriais e arranjos multi-institucional. “Como na natureza todo processo é sistêmico, os resultados diretos dos investimentos em restauração ajudaram a recuperar serviços ecossistêmicos, entre os quais citam-se a redução da erosão marginal e a retenção de sedimentos que iriam para o reservatório, a fixação de carbono pela floresta, entre outros. Além disso, a formação de um corredor de biodiversidade que liga duas importantes unidades de conservação do bioma Mata Atlântica promove a recuperação da biodiversidade regional, com diversos benefícios diretos aos arranjos produtivos da região, como a polinização, regulação hídrica e a amenização dos eventos climáticos extremos”, afirma. A empresa também tem desenvolvido, nos territórios das principais bacias hidrográficas de contribuição do seu reservatório, ações em sinergia com os principais compromissos obrigatórios e voluntários assumidos pelo governo brasileiro. Entre outras ações, eles adotaram mecanismos de certificação em biodiversidade, e fizeram parcerias para gestão ambiental territorial participativa, como a Unidade de Gestão descentralizada da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, que envolve diversos setores, instituições e comunidade para discussão das agendas de desenvolvimento da região. As ações também vão ao encontro do compromisso e atuação nos 17 ODS, em contribuição ao esforço do Brasil para cumprimento da agenda 2030. Cuidar das florestas não deve ser prioridade apenas para quem administra hidrelétricas. As usinas termelétricas também dependem de água para resfriamento. Boa parte dessa água evapora. Ou seja, não volta para os rios depois do uso. Isso significa que as termelétricas são grandes consumidoras de água das nascentes das florestas. Embora as ações para conservar florestas no entorno das usinas elétricas sejam fundamentais, também é essencial olhar para o sistema de geração de chuvas como um todo. E a conservação da Amazônia é decisiva. Existe uma conexão das águas atmosféricas do sistema climático amazônico com o regime climático do Sudeste e Sul do Brasil. Por conta de nossas dimensões continentais e diversidade de biomas, cada um tem sua função nos sistemas climáticos regionais, que regulam o todo. “Como as grandes bacias hidrográficas passam por grandes porções do território nacional e, em alguns casos, por vários biomas brasileiros, podemos dizer que somos um país conectado pelas águas, e que os ecossistemas de uma região influenciam em outra região”, explica Ariel. Os “rios voadores” trazem uma grande quantidade de água do Norte do Brasil para o Sudeste e Sul, influenciando no clima e na regulação hídrica dos rios ao sul e, consequentemente, na geração de energia de dezenas de hidrelétricas no eixo em que desagua este “rio”, como é o caso das usinas localizadas na bacia hidrográfica do rio

Pisando leve no mundo: o papel protagonista dos indígenas brasileiros

Os povos tradicionais do Brasil têm uma cultura de respeito à natureza que pode ser transformada em valor e fonte de afirmação nacional por Sérgio Guimarães* Os efeitos catastróficos das mudanças climáticas, cada vez mais frequentes, não param de nos lembrar que precisamos mudar radicalmente nossa relação com a natureza. Chuva torrencial na Alemanha, 48 graus no Canadá, 42 em Moscou e incêndios na Califórnia. No Brasil, uma grave crise hidro energética, com incalculáveis prejuízos econômicos para o país e a população. Esses são só alguns eventos que ganharam os noticiários recentemente, provas irrefutáveis de que deveríamos ter dado ouvidos aos alertas que toda a comunidade científica vem fazendo há décadas. Paulo Artaxo, cientista da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) diz que é urgente parar o desmatamento da Amazônia, de queimar combustíveis fósseis e reduzir as emissões de carbono. No caso brasileiro, a floresta processa vapor d’água, produz chuvas, estabiliza o clima e alimenta o agronegócio no Brasil central. “Se o desmatamento continuar avançando, em pouco tempo será impossível plantar soja e criar gado ali. É esse o futuro que queremos? Um país inviável com as mudanças climáticas?”, pergunta com propriedade. Assustados diante da TV ou em frente a tela do computador aberta em um site de notícias, nos perguntamos: o que precisamos fazer de forma diferente? A resposta não é simples, mas o Brasil pode começar a fazer isso olhando para seus povos tradicionais. Eles são exemplos de como estabelecer uma relação de respeito com a natureza, tirando tudo o que precisam para viver bem, mas sem destruir a mãe-terra, que nos dá tudo. Ou seja, sem “matar a galinha dos ovos de ouro”. Além de serem benéficos ao clima, os produtos da floresta carregam consigo o que o mercado chama de valor agregado. A Rede Origens Brasil, concebida pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pelo Imaflora, é um exemplo de como a promoção de negócios sustentáveis na Amazônia pode gerar valor. O projeto, presente nos territórios Xingu, Calha Norte, Rio Negro e Solimões, incentiva as cadeias produtivas de comunidades que trabalham com produtos como óleos vegetais, sementes, frutos, farinha, pimenta, amendoim, mel, peças de vestuário e bijuterias, entre outros, que agora têm um selo de origem, que valida o modo de trabalho que contribui para a preservação do ambiente de onde são extraídos. O resultado é que todos esses produtos agora valem mais nos mercados nacional e internacional. O motivo é que quem vê o selo, sabe que está comprando algo que tem garantia de origem, transparência e rastreabilidade da cadeia produtiva, além de ajudar a promover o comércio ético e que respeita, em todo o seu processo, não só o meio ambiente, mas também seus trabalhadores. Consumidores cada vez mais exigentes estão dispostos a pagar a mais por isso. Mas não é só isso. Nossas comunidades tradicionais são admiradas no mundo todo também pelo seu modo de pensar. Em um dos debates do Ciclo WebGTInfra, promovido pelo GT Infraestrutura, Ailton Krenak, reforçou a necessidade de que: “deveríamos ter infraestruturas de escuta, criadas a partir do chão, coladas na natureza.” Para ele, nossos projetos precisam começar a ser planejados a partir da perspectiva dos povos que vivem nas regiões e da natureza, que também deve ser vista como uma infraestrutura por si só. “Precisamos aprender a pisar leve no mundo, caminhar sem deixar rastro”, afirmou. No mesmo debate, o professor Ricardo Abramovay seguiu na mesma linha de raciocínio: “se tivermos como base que infraestrutura deve ser voltada prioritariamente para atender às necessidades das pessoas, abrimos um horizonte extraordinariamente fértil, que inclusive inclui crescimento econômico e aumento da qualidade de vida”. Ele tem razão! Precisamos acabar com essa conversa fiada de que quem defende as comunidades tradicionais e a preservação ambiental é contra o progresso. Ao contrário, o modo de viver dessas comunidades pode, não só nos ensinar como evitar enormes prejuízos, mas também nos ajudar a gerar valor, renda e milhões de empregos. Os povos tradicionais são especialistas em produzir sem destruir, mantendo a nossa floresta em pé. Como se não bastasse ser a casa de mais da metade da biodiversidade do planeta, a Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, vale muito mais preservada. Um dos estudos que mostram isso é o Changes in the Global Value of Ecosystem Services, liderado por pesquisadores australianos, que estimou que o rendimento da Amazônia preservada para o Brasil é de mais de US$ 1,8 trilhões por ano em valor bruto, muito mais que a renda gerada por todas as atividades que desmatam juntas. Todo esse pacote de cultura tradicional, que inclui visão de mundo, tecnologias da floresta, tradições e mitologia, entre outros, também pode ser transformado em valor. As alternativas são incontáveis e vão desde a produção de filmes e séries dirigidos e protagonizados por essas pessoas, que certamente contribuiria para difundir outros modos de ver e se relacionar com a natureza, até o estímulo a um turismo que não seja apenas sustentável, mas também ajude a gerar um senso de identidade, fazendo com que mais gente entenda a importância dessas comunidades, não só pelo que produzem, mas também por tudo que têm a nos ensinar. Os povos podem expressar novas visões de mundo e novos desenhos para a infraestrutura, algo muito mais sofisticado do que extrair e que ainda ajudaria a transmitir não só para nós brasileiros, como também para as pessoas de todo mundo um pouco mais sobre essa visão. Um jeito de andar suavemente pela terra e usar os recursos naturais de maneira respeitosa e inteligente, que é o que o mundo todo está precisando e pedindo como solução para a crise ambiental e civilizatória. E nós temos essa solução dentro de casa. Só é preciso ter ouvidos para ouvir, olhos para ver e mente e coração abertos para aprender e praticar. *Secretário executivo do GT Infraestrutura, rede de mais de 40 organizações comprometidas com a construção de um mundo com mais

Cinco ideias para prevenir a corrupção em grandes obras da Amazônia

Planejamento e regulamentação são algumas das saídas para reduzir o problema que provoca roubo de dinheiro e florestas públicas Alexandre Mansur e Angélica Queiroz* Grandes obras de infraestrutura são estratégicas para o desenvolvimento regional, social e econômico do país. O problema é que aqui no Brasil elas estão, muitas vezes, relacionadas a casos de corrupção e graves impactos socioambientais. O mais grave deles é o incentivo à grilagem, o roubo de terras públicas, que virou um grande negócio na Amazônia. Nos últimos anos, vários escândalos afetaram a agenda de infraestrutura no Brasil, colocando várias dessas obras sob investigação. A região é carente de muitos investimentos para atender a quem vive lá, que quase nunca são as mesmas grandes obras milionárias que vemos na imprensa. Se essas obras aumentam o desmatamento, passam por territórios indígenas e causam outros danos à maior floresta tropical do mundo, precisam ser repensadas. Afinal, não é novidade que a Amazônia vale muito mais em pé, não só para o Brasil, mas para todo o planeta. É por isso que a comunidade internacional e os investidores estão com os olhos voltados para lá. E nós também deveríamos. Cientes da relevância da questão, a Transparência Internacional-Brasil e o WWF-Brasil fizeram um esforço para compreender as raízes do problema e, a partir daí, pensar num conjunto de recomendações de integridade e transparência, tanto para diminuir os riscos de corrupção tanto para que os empreendimentos conseguissem fazer uma melhor gestão de seus impactos socioambientais. O resultado foi publicado no estudo “Grandes Obras na Amazônia, corrupção e impactos socioambientais”. O trabalho mostra como a corrupção interfere nos processos de tomada de decisão, desde o planejamento e da seleção de qual obra vai ser objeto de investimento público ou privado, passando pelos processos de licitação e contratação, pelo licenciamento ambiental, pela implementação de medidas de compensação e mitigação de danos e até pelos royalties dos investimentos que os geram, como hidrelétricas e empreendimentos de gás, mineração e petróleo. “A escolha de se investir em determinada obra deve levar em conta o interesse público nas suas várias dimensões: econômica, ambiental e social”, afirma Renato Morgado, que é consultor do Programa de Integridade Socioambiental da Transparência Internacional no Brasil. Segundo ele, os benefícios socioeconômicos de um empreendimento devem ser confrontados com seus impactos socioambientais. “A corrupção distorce esse processo e leva ao abuso do poder para ganhos privados. Ela faz com que determinadas obras sejam levadas adiante mesmo que elas não atendam o interesse público mais amplo, o que é um ponto muito grave.” Combater a corrupção não é um problema trivial ou para o qual temos soluções mágicas. O problema é complexo e ainda mais desafiador quando pensamos em grandes obras de infraestrutura. “São processos com elementos técnicos, muitas vezes difíceis de serem compreendidos pela população em geral e que movimentam recursos na casa dos bilhões”, lembra Renato Morgado. “A corrupção boa é aquela que não acontece. Depois que ela acontece, dificilmente a gente vai ter condições de reparar de fato o dano ou responsabilizar de forma adequada os culpados”. As recomendações da Transparência Internacional-Brasil e o WWF-Brasil são nesse sentido de prevenção: 1. Combater a corrupção em licitações e contratos; 2. Regulamentar o lobby e o conflito de interesse; 3. Promover reformas de integridade nos setores público e privado; 4. Fortalecer a participação e o controle social; 5. Aprimorar a gestão de impactos e o licenciamento ambiental. Juntas, essas recomendações podem ajudar a mudar o futuro das nossas grandes obras, que precisam ser diferentes para cumprirmos nossas metas de redução de emissões e fazer com que novos projetos sejam menos suscetíveis à corrupção. O projeto de uma ferrovia cortando a Amazônia, a Ferrogrilo, é um desses com os quais deveríamos estar preocupados, já que a ferrovia cruzará 933 km de floresta preservada, abrindo um filão de desmatamento e grilagem no coração da Amazônia. O GT Infraestrutura acaba de divulgar um trabalho alertando os investidores sobre os riscos e falhas desse projeto, que continua sendo considerado prioritário pelo governo federal, apesar de todos os alertas. “Precisamos acompanhar porque a Ferrogrilo tem todo um ‘jeitão’ de que foi pensada para favorecer a corrupção, já que existem alternativas melhores para escoar a produção da região”, afirmou o secretário executivo do GT Infraestrutura, Sérgio Guimarães, no 15° episódio do podcast Infraestrutura Sustentável. “Quando a gente questiona um projeto, dizem que somos contra o desenvolvimento, o que não é verdade. A gente sabe que o grão existe e precisa ser transportado, mas isso pode ser feito com menos impactos sociais e ambientais, num projeto de infraestrutura que atenda ao interesse público e não apenas de alguns”, completa Sérgio. Há muitas potencialidades de mobilização da agenda anticorrupção a serem exploradas na atuação das organizações que compõem o GT Infraestrutura. Por isso, o assunto também vai ser tema de um webinário, que será realizado no Youtube da rede no próximo dia 18 de agosto, às 17 horas. Precisamos ficar atentos, pois o primeiro passo para alcançarmos uma infraestrutura sustentável é combater a corrupção. *Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Exame.

Infraestrutura na Amazônia, sim, para o amazônida

Tecnologias de ponta na ponta Caetano Scannavino* A usina de Tucuruí no Pará foi inaugurada nos anos 80 para gerar energia ao país e à indústria do alumínio. As comunidades do entorno, além de conviverem com os impactos do empreendimento, só tiveram acesso à luz elétrica vinte e poucos anos depois. Os paraenses seguem pagando a maior tarifa da federação, apesar do estado ser o 2º maior produtor de energia do Brasil. E seguimos exportando alumínio para importar bicicletas de alumínio. Em geral, a visão nacional de desenvolvimento ainda nos remete a grandes projetos de infraestrutura na Amazônia, sejam minerários, hidrelétricos ou viários. Planejados para atender o resto do país, nem sempre se convertem devidamente em benefícios para os quase 25 milhões de brasileiros que vivem no bioma. Se comparada com outras regiões, há um abismo infra-estrutural gigantesco no acesso dos amazônidas às políticas sociais e aos serviços básicos de saúde, educação, energia, transportes, comunicações e saneamento. A luz elétrica já alcançou 98% dos lares brasileiros, mas é na Amazônia onde se encontra grande parte dos excluídos. Isso traz um limitante para qualidade de vida não apenas pela iluminação, como também para as telecomunicações, agregação de valor nas cadeias produtivas, conservação de alimentos e medicamentos. Com a Covid-19, as mazelas sociais amazônicas ficaram ainda mais escancaradas quando vimos que São Paulo entrou na pandemia com um respirador para cada 2,4 mil habitantes, enquanto em Macapá/AP havia um aparelho para cada 9 mil, ou em Santarém/PA, um para cada 20 mil. Como agravante, além da insuficiência de respiradores, vimos locais colapsados também pela falta de oxigênio para abastecê-los. Enquanto mais de 90% da população do Sudeste têm acesso à rede de água, esse número cai para apenas 57% na região Norte, onde somente 10,5% dos seus moradores têm esgoto coletado (Trata Brasil/2020). É um paradoxo que na maior bacia de água doce do mundo, em cima do maior aquífero do Planeta, com reservas que poderiam abastecer a humanidade por 250 anos, os ribeirinhos sofram de estresse hídrico, dependentes das águas contaminadas dos rios. É a origem de boa parte das doenças e maior causa da mortalidade infantil, decorrente das diarréias e da desidratação. Sem querer desmerecer as devidas preocupações com as florestas, com o desmatamento, o fato é que não basta só o ambiental sem respostas ao social. Segundo a pesquisa Decisores da Amazônia (Mundo Que Queremos / Clima e Sociedade), a saúde é vista como o principal problema para três em cada quatro moradores da Amazônia Legal, entendida como a área mais carente em infraestrutura nos municípios da região. E num território onde municípios têm o tamanho de países – dos dez mais extensos do mundo, seis estão na Amazônia – o quadro de exclusão é ainda mais agudo nas zonas rurais, com populações dispersas, esparsas, de difícil acesso, e altos custos logísticos. Como as políticas básicas são de competência dos governos locais, a conta jamais fechará se a equação continuar simplificada ao número de habitantes versus receitas. Não são fáceis os desafios de uma Prefeitura como a de Altamira/PA para distribuir a merenda escolar seguindo o padrão custo-aluno ou implementar a atenção básica via tabela SUS junto aos seus cidadãos espalhados em uma área maior que a Grécia ou Portugal. Para isso, estratégias diferenciadas que atendam às peculiaridades amazônicas devem ser priorizadas na formulação de políticas para região, adaptadas e includentes, assim como o estímulo às alianças, à participação local e ao desenvolvimento de tecnologias sociais apropriadas, demonstrativas e escaláveis para impactar o território como um todo. Já existem algumas iniciativas neste sentido. Temos visto melhores resultados quando tomadores de decisão adotam uma postura mais proativa de cooperação e soma de esforços mobilizando comunidades, associações de bairros, academia, organizações do terceiro setor e programas de responsabilidade empresarial. Um bom exemplo vem do Tapajós, com o modelo de saúde básica através do barco-hospital Abaré tendo virado política pública nacional. A experiência implementada pela ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA), junto com as Prefeituras locais e representações comunitárias, inspirou a Estratégia de Saúde da Família Fluvial. Lançada há pouco mais de 10 anos pelo Ministério da Saúde, tem apoiado os municípios da Amazônia e do Pantanal, contando hoje com mais de 60 embarcações de atendimento (UBSF) à ribeirinhos de zonas remotas. Em meio a pandemia, vale destacar também o trabalho da ONG Expedicionários da Saúde, com as Unidades de Atenção Primária Indígena no apoio aos DSEIs (Distrito Sanitário Especial Indígena). Desenhadas para o enfrentamento das síndromes gripais e da Covid-19, as UAPIs contam com uma configuração de equipamentos que permite inclusive o tratamento de oxigenoterapia nas próprias aldeias, reduzindo assim situações de agravos e remoções para as cidades. No campo do saneamento, seja através do PSA ou de outras organizações afins, tem-se inovado em tecnologias de captação de chuvas, sistemas de abastecimento e tratamento da água, movidos a energia solar, sem necessidade de diesel ou baterias, o que facilita a sustentação pelos próprios moradores. Assista aqui o vídeo de Saneamento e Água nos Munduruku. Empreender em pólos isolados e longínquos demanda soluções que tenham resolutividade, garantias de manutenção, e gerem autonomia comunitária. Se por um lado as coisas demoram mais para chegar na Amazônia, que quando cheguem, sejam o que há de mais avançado. Por outro lado, para que se constituam em tecnologias de ponta, na ponta, é preciso desenvolvê-las junto com a comunidade, de forma adequada ao universo cultural e capacidades locais para sua boa gestão. Caso contrário, corre-se o risco de aumentar a manada de elefantes brancos dos tantos empreendimentos que, mesmo bem-intencionados, hoje se encontram abandonados no meio do mato. Por isso a importância dos movimentos de base (indígenas, quilombolas, agroextrativistas), das organizações não-governamentais, dos projetos de extensão e das parcerias público-privadas que atuam na ponta com metodologias participativas de cocriação e empoderamento comunitário. Nesse sentido, modelos de energias renováveis para eletrificação rural, de telecentros de acesso a internet para inclusão digital, de processamento de alimentos, de beneficiamento de produtos florestais para agregação de valor, entre outras