Como escoar a produção de soja sem destruir a Amazônia

O governo anunciou uma ferrovia de R$ 12 bilhões que cortaria o coração da Amazônia para exportar a soja do Mato Grosso. Mas existem alternativas bem melhores O governo federal anunciou que irá fazer a licitação de uma grande ferrovia cortando a floresta Amazônica. A concorrência é prometida para o primeiro trimestre de 2021. Trata-se de uma ferrovia que está projetada para percorrer quase 1.000 quilômetros entre Sinop, no Mato Grosso, até o porto de Miritituba, no rio Tapajós. Estamos falando do coração do agronegócio brasileiro e o objetivo da construção dessa linha de trem no meio da Amazônia é justamente acelerar a exportação de sua enorme safra de grãos. Mas, realizada sem os cuidados necessários, a construção da ferrovia deve acelerar o desmatamento e atingir vários territórios indígenas. Diante disso, precisamos perguntar: será que realmente precisamos dessa obra? A obra está estimada em R$ 12 bilhões. O governo federal anunciou que irá colocar no mínimo R$ 2,2 bilhões dos cofres públicos na empreitada. Uma obra desse tamanho envolve a contratação de muitas empresas, a movimentação de muito dinheiro. Sabe-se que grandes obras do tipo tradicionalmente envolvem corrupção e favorecimentos políticos. O governo federal decidiu que quer a obra. Mas ninguém viu as alternativas. Quais são as opções para escoar a produção de grãos com menor investimento inicial, menor risco, menor manutenção, menor custo social, menor prejuízo ambiental? Quando um projeto ainda está no papel, podemos avaliar se o que está sendo proposto é a melhor alternativa para o país. É a hora de pensar se esse é o caminho de menor custo. E quando falamos de custo, precisamos saber que não é são apenas as despesas com logística que entram na conta, mas também os custos ambientais e sociais. Nessa discussão também temos que considerar qual será a necessidade do transporte de grãos no futuro e quais são as alternativas existentes para levar esses grãos até os portos. Entre as rotas alternativas, uma delas permitiria levar a soja do Mato Grosso para o porto de Itaqui, no Maranhão. Além de evitar cortar o coração da floresta Amazônica, ainda teria a vantagem de conectar outros polos produtivos, inclusive o Matobipa. Há também rotas mais econômicas que aproveitam a infraestrutura já existente até o porto de Santos, permitindo melhorar o escoamento de outros produtos do país. O GT Infraestrutura, uma rede que conta com mais de 40 organizações socioambientais — entre elas World Wildlife Fund (WWF), Saúde e Alegria, Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) e Greenpeace —, tem a proposta de construir, coletivamente, uma agenda de análise técnica dos aspectos socioambientais que envolvem os empreendimentos e projetos de infraestrutura em curso no Brasil. Eles têm feito várias discussões sobre o assunto e a tônica geral é que precisamos discutir rotas, não projetos específicos. “Nem sempre as grandes obras são o que a Amazônia realmente precisa”, afirma o secretário executivo da rede, Sérgio Guimarães. O Brasil tem que discutir alternativas que possam reduzir os riscos sociais e ambientais na Amazônia. Afinal, a floresta tem muito mais valor, inclusive financeiro, em pé. Por isso, a primeira coisa que precisa ser avaliada é se essa obra é mesmo necessária, comparando-a com outros projetos que já existem e têm riscos sociais e ambientais menores, uma vez que não passam no meio da Amazônia. Também devemos pensar se esse é o caminho de menor custo. “É preciso dar um passo e discutir mais do que um projeto, mas o futuro logístico do país”, afirma André Ferreira, diretor presidente do IEMA, que tem se dedicado a estudar o assunto. “A pergunta é qual é a infraestrutura que a sociedade quer, qual é a infraestrutura que ela propõe”, completa. É a hora de fazer um estudo de cenários. E o sexto episódio do podcast do GT Infraestrutura fala justamente sobre isso, com a participação do André Ferreira. Ele deixa claro que o processo de decisão precisa ser mais transparente, claro e comparar diferentes alternativas. E a sociedade precisa poder opinar sobre isso. Especialmente as comunidades que vivem nessa área e que seriam atingidas pelos transtornos e consequências de uma obra como essa. O desenvolvimento do futuro é inteligente e anda junto com a preservação ambiental. Esse texto foi escrito por Alexandre Mansur e Angélica Queiroz e publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Revista Exame.

Infraestrutura para a Amazônia: que projetos a região realmente precisa?

Sérgio Guimarães, diretor executivo do GT Infra A pandemia do Covid-19, com grande número de infectados e mortos – mais de 210 mil só no Brasil – expôs de forma inédita uma série de fragilidades sociais e econômicas, escancarando ainda mais a imensa desigualdade social existente em nosso país. Além da saúde, os impactos atingem em cheio a economia e os empregos, desafiando a capacidade do estado apoiar as populações mais desfavorecidas. Não é à toa que a palavra de ordem em todo o mundo é a retomada da economia, incluindo-se aí, de forma definitiva, as dimensões da sustentabilidade social e ambiental. Há uma forte convergência de que investimento em infraestrutura é um dos pilares para essa retomada. Mas, qual é a infraestrutura que não leva às mesmas contradições, à concentração de renda e às crises social e ambiental? Aquela que tenha como foco a geração de empregos e renda, a melhoria dos serviços essenciais para a população e a sustentabilidade ambiental, particularmente o enfrentamento da crise climática, e contribua para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Na Amazônia, quando se fala em infraestrutura, logo pensamos em mega obras, sejam grandes hidrelétricas ou estradas que “viabilizem a exploração” dos recursos naturais, sem considerar os impactos sobre as populações locais e o meio ambiente. Mas, será que é disso mesmo que a região precisa? A quem servem esses empreendimentos? Será que que contribuem para melhorar de alguma forma a vida das comunidades rurais e urbanas? O questionamento que deve ser feito é que infraestrutura pode contribuir efetivamente para a retomada da economia regional, reduzindo os impactos negativos sobre o meio ambiente com base em cadeias produtivas regionais, visando a construção de uma economia que valorize a floresta, em vez de destruí-la, que gere benefícios para as comunidades, em vez de impactá-las. É uma pergunta que ainda não está totalmente respondida, mas existem alguns pontos fundamentais que, necessariamente, precisam ser considerados: Uma infraestrutura voltada para a Amazônia, deve contribuir para reduzir impactos negativos sobre o clima e a biodiversidade e, ao mesmo tempo, para melhorar as condições de vida das populações locais, precisa ter como referência os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Gestão de resíduos sólidos, saneamento básico, acesso à saúde, universalização da energia elétrica, educação, melhoria nos transportes e internet de qualidade são alguns dos componentes de uma infraestrutura voltada para as pessoas e seus produtos. A participação social é fundamental em todas as fases dos projetos e esses devem incluir no total dos custos os componentes sociais e ambientais. As definições e decisões devem passar, necessariamente, por ouvir as populações locais, protagonistas e verdadeiros interessados, que podem indicar os caminhos da infraestrutura necessária e mais efetiva para a região e suas populações rurais e urbanas. Nesse sentido, uma pesquisa de percepção da população local realizada em outubro de 2020 pelo Ideia Big Data para os Institutos O Mundo que Queremos e Clima e Sociedade mostra importantes indicadores das carências regionais, das prioridades das populações locais, e traz resultados bem interessantes: A área mais carente é a saúde, indicada por 74% dos entrevistados, seguida da educação (50%) e geração de empregos. A preservação ambiental é condição fundamental para o desenvolvimento econômico na avaliação de 86% dos brasileiros que vivem na Amazônia. A atividade econômica com maior potencial a ser desenvolvida na Amazônia é o turismo (oportunidade de lucro sem necessidade de desmatamento). Por outro lado, apenas 8% dos entrevistados acreditam que a preservação ambiental interfere no crescimento econômico do país. Para 66% dos entrevistados a floresta representa o maior bem da humanidade para 66%, sendo a principal ameaça à natureza atualmente o desmatamento das florestas (56%). Quase metade dos entrevistados (49%) afirmam ainda que a opinião da população não é levada em consideração pelos políticos locais. Temos aí fortes indicadores do caminho a seguir. Uma visão muito distante das políticas públicas e decisões tomadas para a região por diferentes governos, desde os militares até o PT. É hora de ouvir as populações locais e construir uma nova economia para a região, em benefício do Brasil e sua população. Este artigo foi, originalmente, publicado no site Plurale. *A pesquisa foi realizada entre os dias 11 a 23 de outubro de 2020, com 1400 entrevistados. A margem de erro é de três pontos percentuais. Foto: Pixabay

O desmatamento da Amazônia e o Sistema Cantareira

Reservatório depende de “rios voadores” que saem da floresta. Entenda Sérgio Guimarães, diretor executivo do GT Infra No início de janeiro de 2021, o Sistema Cantareira, que abastece a região metropolitana de São Paulo, voltou a operar em alerta, com pouco mais de 35% de sua capacidade. A redução do volume de chuva sobre a região têm a ver com isso, claro, mas uma das causas do problema está a milhares de quilômetros de distância: na Amazônia. Em 2020, segundo o INPE, a Amazônia teve recordes de focos de incêndio e de área desmatada. Foram derrubados 11,1 mil km² de Amazônia Legal de agosto de 2019 até julho de 2020, quase 10% a mais que o mesmo período do ano anterior. O que isso tem a ver com a Cantareira? Tudo! É que boa parte das chuvas que chegam à região Sudeste do país vem da Amazônia que, inclusive, produz umidade que gera chuvas até mesmo em outros países da América do Sul, como Uruguai e Paraguai. É o fenômeno conhecido como “Rios Voadores”, que são grandes fluxos aéreos de água alimentados pela umidade produzida pela maior floresta tropical do mundo. Rios voadores? Os rios voadores são, como o nome sugere, fluxos de vapor de água invisíveis, que podem transportar mais água que o próprio iio Amazonas. Como isso acontece? Por evapotranspiração, as árvores bombeiam a água das chuvas, que fica retida em suas copas, de volta para a atmosfera. As árvores também conseguem puxar a umidade dos oceanos para o continente. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpe), uma árvore de grande porte pode transpirar de 300 a 1000 litros de água por dia. Se lembrarmos que estamos falando de um bioma com mais de 600 milhões de árvores podemos entender a relevância do fenômeno: cerca de 20 trilhões de litros de água são enviados para a atmosfera todos os dias. Tudo está interligado O relatório “O Futuro Climático da Amazônia”, publicado em 2014 pelo Inpe em parceria com a Articulação Regional Amazônica (ARA) , mostra como a floresta é importante para regular o Clima de todo o planeta. Um dos motivos é que os rios voadores influenciam no regime de chuvas e na temperatura das regiões às quais chegam. A tragédia é que, quanto mais destruímos a floresta, mais o clima vai sofrer. Não é só o desmatamento anual que diminui os rios voadores, mas também o acumulado dos últimos anos. Voltando ao Cantareira, se um sistema está no limite, menos volume de água nos rios voadores, pode causar um desabastecimento. Segundo a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), responsável pelo Reservatório, pode ser que as chuvas, esperadas para os próximos meses, sejam um alívio, evitando uma nova crise hídrica grave. Mas, as chuvas dependem da floresta. Para a gente preservar o Sistema Cantareira precisamos preservar a Amazônia também. É por isso que diversos segmentos da sociedade no Brasil e em todo o mundo estão preocupados com a nossa floresta, especialmente quando o assunto é conter o avanço das mudanças climáticas e garantir as metas do Acordo de Paris para manter o aumento da temperatura abaixo de 2°C. O clima está todo conectado, não podemos separar uma coisa da outra. Por isso é tão importante que a sociedade atue para conter a crise climática. A mitigação e a adaptação às mudanças climáticas exigem planejamento, implantação de medidas de proteção e sistemas de informação e de alerta preventivo, bem como novos investimentos. Caso contrário, os efeitos dela estarão cada vez mais perto de nós. O Sistema Cantareira é só um exemplo. Este artigo foi originalmente publicado no Climatempo.

Bancos de desenvolvimento, ajudem-nos a apagar os incêndios em nossa casa

Ilan Zugman* Neste novembro, enquanto enormes áreas naturais do Brasil recuperam-se de uma catastrófica temporada de incêndios, executivos de mais de 450 instituições financeiras de todo o planeta participaram, entre os dias 9 e 12, do primeiro encontro global de bancos públicos de desenvolvimento, o Finance in Common (FiC). O cenário de terra arrasada do Pantanal brasileiro, com suas chocantes carcaças de animais incinerados e sua vegetação virando cinzas, pode parecer distante dos debates sobre fluxos financeiros. Porém, um tem tudo a ver com o outro. A relação se dá à medida em que os bancos de desenvolvimento do Brasil e de todo o mundo definem, em certo grau, o “pipeline” — para usar uma expressão típica do mercado —, de investimentos e de projetos cruciais para a economia. Suas escolhas podem direcionar a sociedade para uma recuperação justa e equitativa ou para o velho normal do pré-pandemia. Em termos climáticos, isso significa que os fluxos financeiros controlados por essas instituições podem contribuir para estimular as iniciativas de resiliência de que os países tanto precisam ou agravar severamente os extremos climáticos, como as secas históricas que, somadas a outros fatores, propiciam o cenário ideal para os incêndios descontrolados em nossos biomas. Por isso, ativistas de mais de 300 instituições da sociedade civil em diversos países aproveitaram o encontro inédito das instituições financeiras para enviar um recado simples: queremos que o dinheiro do contribuinte pare de alimentar as chamas que estão destruindo nossa casa comum e passem a ser usados em projetos de adaptação aos extremos climáticos, redução das emissões de gases do efeito estufa e promoção urgente de justiça social e racial. O desafio é grande, mas as oportunidades também são. O volume de atividades dos bancos públicos de desenvolvimento chega a US$ 2 trilhões por ano, o equivalente a 10% de todo o investimento realizado no mundo, segundo os organizadores do FiC. O Brasil, aliás, é o campeão mundial em número de bancos de desenvolvimento: são 21 instituições desse tipo no país. No entanto, uma parte significativa dos recursos dessas instituições ainda é alocada nos setores que nos trouxeram à crise climática que vivemos, os de petróleo, gás e carvão. Segundo relatório divulgado em outubro deste ano pela ONG alemã Urgewald, só o Banco Mundial emprestou mais de US$ 12 bilhões a projetos de combustíveis fósseis desde 2015, quando o Acordo de Paris foi assinado. Um caso emblemático foi a aprovação, em maio de 2020, de um empréstimo de US$ 38 milhões para a implementação da política brasileira de exploração de petróleo e gás. Em plena pandemia, enquanto o mundo debatia pacotes de recuperação baseados em apoio a energias limpas e a pequenos negócios, o banco escolheu direcionar recursos para uma atividade que agrava a emergência climática, concentra ganhos nas mãos de algumas poucas empresas e gera desastres ambientais que prejudicam as comunidades mais pobres. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a mais conhecida instituição desse tipo no Brasil, também tem muito a melhorar nesse sentido. Um cálculo da 350.org feito com base em dados do próprio banco mostra que os empréstimos da instituição para projetos de petróleo, gás e carvão, entre 2009 e 2019, somaram mais de R$ 90 bilhões. Francamente, é uma cifra vergonhosa para um banco que destaca o desenvolvimento social em seu nome. A falta de ambição e a ambiguidade de vários bancos de desenvolvimento nos fazem questionar: a preocupação com o meio ambiente e a assistência às comunidades mais vulneráveis não deveriam ser uma prioridade e, sobretudo, um tema transversal e obrigatório nas escolhas de financiamento, especialmente quando esses empréstimos são feitos com dinheiro público? Não se trata, aqui, de negar os esforços que essas instituições cultivam ou os diversos projetos louváveis que viabilizam. Trata-se, isso sim, de dizer aos bancos públicos que a sociedade civil está farta do jogo duplo que as instituições financeiras ainda fazem e que o tempo para a hipocrisia climática acabou. Pelos “tubos” que os bancos públicos de desenvolvimento controlam podem passar tanto a água que apagará os incêndios em nossos biomas quanto o combustível que nos levará a um cenário ainda mais infernal de extremos climáticos. A pressão da sociedade para que façam a escolha certa está aumentando. É hora de transformar os discursos bem intencionados em realidade. *diretor interino da 350.org Foto: Lucas Landau/ Ação em frente ao BNDES – ativistas pedem que parem de financiar combustíveis fósseis Esse artigo foi originalmente publicado no Jornal Correio Braziliense, em 15 de novembro de 2020.

Descarbonização e inclusão social sem espaço no PNE 2050

O principal recado que a pandemia de 2020 deu à humanidade é que se faz urgente a mudança na forma como os recursos naturais (renováveis ou não) têm sido explorados. E que se quase 200 países são signatários do Acordo de Paris para impedir o aumento de temperatura global, cada país precisa fazer sua parte em seus planos de infraestrutura de longo prazo com vistas à descarbonização e à inclusão social. A pandemia também explicitou as carências sociais, deixando claro que tão importante quanto crescer economicamente é avançar para a equidade de serviços básicos, como água e energia, educação e cidadania para todos. Infelizmente, não é isso que o Plano Nacional de Energia 2050 apontou. Ainda que ele seja fruto de uma série de encontros setoriais, com profissionais de Estado bastante qualificados na formulação de propostas e políticas públicas, o plano, da forma como está apresentado, não é disruptivo para contribuir com o cenário de descarbonização da economia. Ainda que o PNE traga um cone de incertezas quanto às dificuldades de um planejamento de longo prazo em um cenário cada vez mais imprevisível, há um consenso em todas as esferas mundiais que a aceleração da descarbonização da economia é fundamental para assegurar a resiliência das pessoas e dos biomas num contexto de mudanças climáticas.  Assim, ao indicar que em 2050 o Brasil produzirá três vezes mais petróleo que atualmente, ao manter em funcionamento as usinas de carvão, ampliar as usinas a gás natural e nucleares e ainda apostar em empreendimentos energéticos que avançarão sobre 40% de áreas protegidas no bioma amazônico, o PNE mostra que a receita neste cenário tão adverso continua sendo a mesma de sempre no país. Suas atuais diretrizes acomodam interesses, mas não apontam para a solução de problemas que já estão sendo vividos atualmente e deverão ser aprofundados neste horizonte de três décadas.  Diante de exercícios que levam a cenários contraditórios entre si, a mensagem que se passa é a ausência de estratégia governamental. E, sem uma visão clara, qual a orientação que será dada para as políticas públicas? Se o caminho de futuro pode ser tanto o de uma matriz elétrica 100% renovável quanto o de manter o foco no aproveitamento dos recursos de petróleo, que orientação o governo dará para as políticas industrial (deveremos priorizar/cortar subsídios para as renováveis ou para os fósseis?), de pesquisa e desenvolvimento (o recurso público de P&D deve priorizar o quê?), entre outras questões que permanecem abertas. Contribuições Organizações que integram o GT Infraestrutura apresentaram suas contribuições ao PNE. Entre elas, destaca-se que o Plano deveria rever a expansão de empreendimentos energéticos na Amazônia, sobretudo em áreas protegidas, como terras indígenas e unidades de conservação. Para isso, seria interessante incluir no plano um novo cenário além dos quatro já disponibilizados, onde a expansão elétrica aconteça sem a construção de novas grandes hidrelétricas na Amazônia. Este sim é um cenário já alinhado à realidade, visto que a concretização recente de grandes projetos hidrelétricos, alinhados com o antigo PNE 2030 e listados no atual relatório do PNE-2050, revelaram que os custos socioambientais destes grandes projetos continuam sendo subestimados, bem como o seu custo de investimento, seu potencial de conflitos, atrasos e judicialização. Assim, faz-se necessária uma abordagem mais cautelosa no PNE 2050 sobre a realização de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, inclusive sobre aqueles que, aparentemente, não interferem sobre áreas especialmente protegidas. Além disso, ainda no capítulo sobre ‘Hidreletricidade’ o documento não apresenta estimativas nem aborda a existência de estudos sobre as emissões de carbono associadas à realização de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, bem como não leva em consideração os estudos que apontam o potencial de emissão de metano destes projetos atualmente em estudo. A questão social também é uma lacuna. O texto do PNE 2050 não aponta soluções para o problema da falta de participação da sociedade no processo de planejamento das hidrelétricas. Conforme o próprio  relatório menciona no item “Complexidade socioambiental” é necessária “a participação da sociedade desde as etapas iniciais do planejamento energético”. Entretanto nenhuma das usinas hidrelétricas elencadas no atual relatório passou por este processo, uma vez que a sociedade civil toma conhecimento dos empreendimentos após sua indicação nos Planos Decenais, ou seja, quando já foram ultrapassadas as fases iniciais do planejamento. Ainda sobre impactos na região Amazônica, verificou-se que não há sequer uma previsão consistente de qualquer plano de geração de energia renovável para a Região Norte sem ser por fonte hídrica. Sabe-se que há um grande potencial solar, eólico e de biomassa, esta última bastante diversificada. O Plano deveria considerar esses potenciais e apontar diretrizes para esta geração. Neste aspecto chama atenção a falta de planejamento específico para o estado de Roraima, o único do país que ainda não está conectado ao Sistema Interligado Nacional, e que tem o maior potencial solar e eólico entre os estados da região Norte, conforme já constatado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) no relatório do GT-Roraima/2017. A leitura atenta do PNE 2050 permite concluir que não há como estabelecer uma visão de 2050 sem levar em conta as intensas transformações que a transição energética trará – e já está trazendo – ao setor energético e à economia de maneira geral. De fato, dadas as vantagens competitivas do país na transição para uma economia de baixo carbono, bem representadas no documento, os benefícios da transição energética superam em larga margem os custos de sua implementação.  No entanto, para que esta visão seja efetivada, os princípios que norteiam o Plano devem ter uma relação explícita com a busca por uma matriz energética competitiva, de baixo carbono, inclusiva e que seja vetor de desenvolvimento socioeconômico para o país. A visão de 2050 para o Brasil deve explicitamente fundamentar-se nos princípios de uma transição energética justa e economicamente eficiente, condicionando as políticas públicas, programas e planos, inclusive impedindo os que caminhem em direção contrária. Sendo assim fundamental para essas avaliações que o plano inclua indicadores sociais como saúde e renda. Sem esse tipo de conexão entre o setor energético e os

Cresce número de PCHs e CGHs previstas para a bacia do Juruena

Mapeamento realizado pela OPAN revela aumento de pequenos empreendimentos em cascata e deficiência na transparência pública de informações socioambientais. Em apenas um ano, nove empreendimentos hidrelétricos projetados em cascata foram incluídos no planejamento energético para a bacia do rio Juruena, ameaçando diretamente um dos poucos rios livres da região, o Sauê-Uiná. Junto com Membeca (8), Buriti (15) e Juruena (20), este rio, localizado na região de ocupação imemorial do povo Nambikwara, passou a figurar entre os principais pontos de atenção no monitoramento independente de hidrelétricas realizado pela Rede Juruena Vivo e pela Operação Amazônia Nativa (OPAN) na bacia do rio Juruena, de acordo com dados oficiais apurados entre março e setembro de 2020. A projeção de uma sequência de empreendimentos de pequeno porte em um mesmo rio tem sido frequente na bacia do Juruena, comprometendo sua saúde e suas funções ecológicas e sociais, segundo o relatório técnico da entidade. De acordo com a avaliação dos autores do estudo, as alterações na legislação favoreceram o avanço desses complexos hidrelétricos. Ao comparar os dados de 2020 e 2019, observa-se uma manutenção do comportamento dos empreendedores de investir em projetos de PCHs e CGHs que tendem a se concentrar num mesmo curso d’água. Devido à Resolução Normativa nº 875, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), de 10 de março de 2020 e à Lei nº 13.360, de 17 de novembro de 2016, os projetos hidrelétricos enquadrados nas categorias de CGH (de zero a 5MW) passaram a ser liberados de requerer outorgas. Isso torna o processo autorizativo desses empreendimentos mais simplista e menos transparente, avaliam. Os pesquisadores lembram que, muitas vezes, durante o processo de licenciamento das PCHs (usinas de 5 a 30MW) e CGHs, os projetos são avaliados individualmente. Com isso, os impactos cumulativos de um complexo de empreendimentos nos rios não são levados em conta. O que reivindicam é que se considere o contexto do local e o conjunto de projetos concebidos ou já implementados, para se ter uma avaliação conjuntural, do complexo hidrelétrico de modo inter-relacionado. E, aí sim, se comece a estudar o impacto ambiental nos termos deste conjunto de projetos e não de projetos isolados. Além dos efeitos sobre os ecossistemas aquáticos e terrestres, a presença desses empreendimentos ameaça os 25 projetos de assentamento e as 20 terras indígenas existentes na região, onde vivem os Apiaká, os Bakairi, os Enawene Nawe (Salumã), os Haliti (Paresi), os Kawaiwete (Kayabi), os Kajkwakratxi (Tapayuna), os Kawahiva, os Manoki (Irantxe), os Myky, os Munduruku, os Nambikwara e os Rikbaktsa, além de grupos isolados. Situação geral dos empreendimentos no Juruena Segundo o relatório técnico, subiu de 66 para 72 a quantidade de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) mapeadas em 2020 em comparação com 2019, e de 46 para 49 a de Centrais Geradoras Hidrelétricas (CGHs), consideradas micro empreendimentos energéticos. O aumento representa um acréscimo de 9,09% de avanço do setor elétrico sobre esta região, responsável pela drenagem de cerca de 60% de toda água que flui no rio Tapajós. Ao todo foram identificados 146 empreendimentos hidrelétricos na bacia do Juruena, em Mato Grosso, sendo que 70% deles encontram-se em planejamento (103 projetos). Os que estão na etapa de construção são seis, o que equivale a 4,11%, e os em operação 37, ou 25,34% do total. Cleiton Silvestrim, secretário-executivo da Rede Juruena Vivo, evidencia a importância do monitoramento para o acompanhamento de projetos hidrelétricos na bacia, além da necessária compreensão das informações pela população. “O monitoramento permite que a gente tenha acesso à informação de uma maneira mais clara e palatável. É uma ferramenta importante para nos apropriarmos de como são feitas essas pesquisas e entender como andam esses processos, que na maioria das vezes não são de conhecimento das bases e comunidades. E quando chega ao conhecimento, ele já está em fase avançada de licenciamento”. Formada por diferentes agentes da sociedade civil interessados em alternativas para o desenvolvimento local, a Rede Juruena Vivo busca defender a integridade da bacia do rio Juruena e a participação popular nas decisões sobre o futuro da região. O grupo vem acompanhando o avanço de empreendimentos energéticos ainda na fase do planejamento, esperando que, assim, tenham mais tempo e condição de participar dos processos decisórios. Um dos projetos mais preocupantes em licenciamento no Juruena hoje é a UHE Castanheira, projetada para o rio Arinos e cujo empreendedor é a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Considerada prioridade pelo governo federal, recentemente, estudos ecológicos e antropológicos demonstraram, entre outros fatores, que este projeto poderá causar a extinção do bivalve tutãra e, com isso, afetar visceralmente a cultura do povo Rikbaktsa. Outra grande preocupação tem sido o avanço de projetos hidrelétricos altamente impactantes durante a pandemia, com implicações diretas ao direito à consulta e consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas. Este é o caso dos projetos da PCH Jesuíta, no rio Juruena, e da PCH Sacre 14, no rio Sacre, entre outros. Formada atualmente por 29 municípios, a bacia do Juruena está localizada no noroeste do estado de Mato Grosso. É composta por uma grande rede de rios que nascem no Chapadão dos Paresi e escoam suas águas límpidas por um percurso de mais de 19 milhões de hectares no sentido sul-norte até unirem-se com o rio Teles Pires e formarem o Tapajós. O mapeamento ainda destaca a falta de transparência dos órgãos responsáveis pela publicação de dados sobre os empreendimentos. É o que ocorreu no caso da PCH Ponte de Pedra, da CGH Santo Antônio II e da CGH Santo Antônio V. Embora haja informações sobre sua localização, os documentos públicos disponíveis não permitem saber sobre as respectivas etapas. O relatório recomenda que sejam aprimorados os sistemas públicos de busca por informações socioambientais no estado de Mato Grosso. Este artigo foi escrito por Por Beatriz Drague Ramos e publicado originalmente no site da OPAN. Foto: Canteiro de obras de PCH no rio Buriti. O rio pertence a bacia hidrográfica do rio Juruena / Andreia Fanzeres/OPAN.

Árvore refugiada: um inusitado pedido de socorro!

Sérgio Guimarães* Aconteceu! Foi durante o recente evento “24 horas de realidade: contagem regressiva para o futuro”, promovido pela Climate Reality Brasil, conversa global sobre a crise climática, a pandemia de COVID-19 e a injustiça racial que o inusitado pedido foi ouvido. Trata-se de um pedido insólito. Fugindo do desmatamento e das queimadas que devastam a Amazônia e outros biomas brasileiros, um Jatobá, espécie ameaçada de extinção, pediu refúgio em embaixadas de países estrangeiros em Brasília, para salvar não apenas a própria vida, mas também a Amazônia e outros biomas brasileiros, onde está presente. A árvore denuncia as crescentes ameaças, a perseguição e o risco de vida que sua espécie e milhares de outras estão sofrendo no Brasil diante da extinção em massa provocada pelo aumento do desmatamento e das queimadas. Segundo definição do Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (ACNUR), refugiados estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição, como também devido à grave e generalizada violação de direitos e conflitos. O pedido de refúgio faz sentido. Segundo números do Deter, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento da Amazônia somou 10.129 km² no período entre agosto de 2018 e julho de 2019. De agosto de 2019 a julho de 2020, esse número cresceu mais de 30%. Ou seja, mais 10.000 km²! As queimadas também atingiram áreas recordes na Amazônia em 2020. De janeiro a setembro deste ano, o número de focos registrados, cerca de 90 mil, é o maior desde 2010. O Pantanal, um dos biomas mais preservados do país, é é outro que registrou números recordes de focos de incêndio este ano. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas do Pantanal (INPP) e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), mostram que pelo menos 23 mil km² foram consumidos pelas chamas em 2020. O número é maior que a área perdida entre 2000 e 2018, que foi de 2,1 mil km² de área nativa, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os números deixam claro os motivos pelos quais o Jatobá clama por socorro. A árvore pede para nos engajarmos na campanha “5 Medidas Emergenciais para Combater a Crise do Desmatamento da Amazônia” formuladas por cientistas e entidades que atuam no território, cuja a primeira delas e estabelecer uma moratória do desmatamento da Amazônia por pelo menos cinco anos. A íntegra das medidas está publicada no site www.arvorerefugiada.com.br e chama para a assinatura de uma petição. No site também é possível assistir ao vídeo com o pedido de ajuda. Além da Climate Reality Brasil, respondem ao pedido e se engajam na campanha, o GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, grupo de trabalho com 40 organizações socioambientais que atua conjunto com organizações locais e o Engajamundo, uma rede de jovens que promove o engajamento político como meio de transformação da realidade. “Nosso meio ambiente está sob ataque de pessoas e estruturas que deveriam protegê-lo. Precisamos chamar a atenção para essa tragédia em curso, e mobilizar muito além da comunidade internacional para reverter esse cenário”, afirmou Renata Moraes, gerente do Climate Reality Brasil. A organização de jovens Engajamundo também salientou a importância da ação: “A Amazônia pede socorro há anos. O pedido de refúgio desta árvore ameaçada de extinção simboliza não somente a sobrevivência deste e outros seres vivos que são essenciais para a vida no planeta, mas também dos muitos povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, entre tantos outros que vivem na Amazônia e que lutam para proteger a floresta e seus territórios. Esse inusitado pedido de refúgio mostra a gravidade da situação de milhões de árvores e outras formas de vida que estão sendo exterminadas sem ter a quem recorrer no Brasil, onde autoridades responsáveis por sua proteção muitas vezes estão aliadas aos destruidores. Cabe a nós, cidadãos, nos posicionar em defesa desta e de milhões de árvores em busca de uma solução, que começa pela implementação das cinco medidas emergenciais de combate ao desmatamento, o que permitirá que milhões de árvores, nossas florestas e seus habitantes possam viver em paz no Brasil, prestando seus relevantes serviços climáticos para nós e a todo o planeta. Este artigo foi escrito pelo Secretário Executivo do GT Infraestrutura, Sérgio Guimarães, e originalmente publicado no Portal Neo Mondo. Foto: Pixabay

Bolsonaro e as ‘ONGs’

Jair Bolsonaro precisa de inimigos para manter viva a sua narrativa política junto ao núcleo mais radical dos seus apoiadores. Sua tática é diversionista e, em vez de explicar fatos concretos quando incomodam, parte para cima de qualquer inimigo, sob qualquer pretexto, como forma de direcionar para outros alvos as energias negativas de seus seguidores. No primeiro ano e meio de mandato, o presidente esculhambou meio mundo, xingou chefes de Estado, a própria ONU, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), mobilizando fanáticos para ameaçar um autogolpe. Vendo seu mandato ir por água abaixo precocemente, optou por cooptar progressivamente o apoio dos demais poderes. Fechou com o “centrão”, mediante a entrega de cargos e orçamentos significativos, e passou a formar uma espécie de bancada própria no STF. Essa política de redução de danos foi facilitada pela reversão da tendência de queda na sua popularidade graças ao auxílio emergencial. A aliança com o “centrão” não garante ao presidente uma maioria no Congresso e no STF, mas retira o governo do isolamento e o recoloca no jogo político institucional, evitando, pelo menos por enquanto, a ameaça do impeachment. Mais grave, agora, é a situação no front externo, onde a rejeição a Bolsonaro e a seus valores agregados – culto à violência, hostilidade às minorias e desprezo pelo meio ambiente – chegou ao extremo, com a aprovação no Parlamento Europeu de uma moção contra a ratificação do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul, nos seus termos atuais. Acuado na briga entre cachorros grandes, Bolsonaro concentra, agora, sua retórica agressiva contra a imprensa, a ciência, as diferenças étnicas, além das organizações não governamentais (ONGs). Não é pouca coisa, mas vai tornando cada vez mais caricatural o populismo bolsonarista. Falsa valentia política. ONG é uma designação que se aplica, de modo literal, a qualquer instituição que não integre as estruturas políticas dos diversos poderes e da administração direta e indireta da União, dos Estados e municípios. No sentido jurídico, a designação confunde-se com a figura das organizações civis sem fins lucrativos, que, por sua vez, é adotada por um conjunto muito distinto de segmentos, da filantropia a clubes de serviços, passando por movimentos sociais, religiosos, organizações de projetos, de advocacy, de esportes, desde que não exerçam funções empresariais ou estatais. Para disseminar suspeitas genéricas sobre as ONGs, Bolsonaro alega que a maior disponibilidade de recursos externos do que internos subverte o compromisso dessas organizações, contrapondo seus objetivos aos interesses do país. Se este fosse o problema, ele estaria sendo agravado pela política da administração federal de impedir a destinação de recursos públicos federais para editais e projetos do terceiro setor. No entanto, o próprio presidente tem sido pródigo em oferecer a mineradoras e países (alinhados a sua ideologia) os recursos da Amazônia. Fato é que o governo desconhece, por completo, a natureza e os méritos indiscutíveis das ações desenvolvidas por ONGs em vários temas e regiões do Brasil. Bolsonaro lança mão da sigla ONGs como um ente genérico, para criar e atacar um espantalho. Está pouco se lixando para a figura jurídica em si, tanto que repassou dinheiro destinado ao combate à pandemia para ONGs assistenciais, ligadas ao trabalho da primeira-dama e igualmente alinhadas ao bolsonarismo. Se uma milícia fundar uma ONG, ele até poderia se associar. O problema do presidente é com a produção de informação qualificada, com a crítica política e com a reação organizada aos retrocessos promovidos pelo seu governo e que desnuda as narrativas dissimuladoras sobre a situação dramática do país. Bolsonaro já a repetiu mais de uma centena de vezes a expressão “ONG”, num reconhecimento, às avessas, que elas jamais tiveram de qualquer governo. Ele próprio nos dá a medida da importância do papel dessas organizações numa conjuntura crítica em ameaças ao processo civilizatório. A única vez que o bolsonarismo nominou organizações, foi numa farsa policialesca, tramada na região Santarém (PA), para escamotear a responsabilidade criminal de apoiadores do governo nos incêndios florestais. Inflexão grave Mas está havendo uma inflexão grave no direcionamento do ódio pelo governo, com recentes tentativas de expor ou criminalizar lideranças civis. Primeiro, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), acusou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) de crime de lesa-pátria, nominando publicamente e ameaçando processar uma das integrantes de sua coordenação, Sônia Guajajara, tentando transferir a responsabilidade, que é de Bolsonaro, pela rejeição européia ao acordo com o Mercosul. Agora, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, quer criminalizar, por críticas à sua atuação desastrosa, o secretário-executivo do Observatório do Clima, Márcio Astrini. Para Heleno, Sônia e Márcio são “maus brasileiros”, porque se opõem à política bolsonarista anti-indígena e antiambiental. O chefe do GSI passa por cima dos direitos constitucionais dos indígenas, explicitamente afrontados pelo governo e pelo presidente, e também ignora o aumento brutal do desmatamento e das queimadas na Amazônia e no Pantanal. Para completar a salada, o general Eduardo Villas Bôas, subordinado ao Heleno, saiu em defesa do Salles, que foi duramente contestado por João Paulo Capobianco, ex-secretário-geral do Ministério do Meio Ambiente e atual coordenador do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS). Heleno o acusou de lesar a pátria, sendo que foi na gestão da ex-ministra Marina Silva, a quem Capobianco assessorou, que se deu a mais significativa redução do desmatamento, o que colocou o Brasil na vanguarda das negociações internacionais sobre meio ambiente. Vilas Bôas não acha que sejam maus brasileiros os atuais dirigentes do país, aos quais assessora, e que promovem uma escalada do desmatamento e levam o país à atual situação de isolamento internacional. Na mesma linha de criminalizar em vez de enfrentar as causas dos problemas, a delegação oficial do Brasil à COP-25, reunião da ONU sobre mudanças climáticas que aconteceu na Espanha, no fim do ano passado, incluiu vários agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), subordinada ao GSI, para investigar a atuação de “maus brasileiros”. A prioridade para o governo não é a gravíssima situação do clima, mas policiar quem a denuncia, enquanto o Brasil

Tutãra, a joia do Arinos

Ao levar adiante o projeto da UHE Castanheira, governo assume o risco de acabar com uma preciosidade da cultura Rikbaktsa e da ecologia na bacia do Juruena Até o dia 13 de outubro os brasileiros estão sendo convidados a enviar contribuições pela internet ao Plano Nacional de Energia 2050. O documento traça o horizonte da expansão energética no país que, do ponto de vista da geração de energia hidráulica, encontrou um potencial de 108 GW em operação e construção até 2019, e apontou outros 68 GW ainda inventariados em projetos localizados, em sua maioria, na Amazônia. O governo reconheceu que 77% do potencial hidrelétrico situam-se em áreas de alta sensibilidade socioambiental, interferindo em unidades de conservação e terras indígenas. E estimou que 23% (12 GW) não interferem. A UHE Castanheira, projetada para gerar pífios 0,098 GW de energia firme na bacia do rio Juruena, no norte de Mato Grosso, é um desses casos em que o perímetro do reservatório não toca terras indígenas. Esta tem sido a explicação oficial para que tal projeto, ineficiente e altamente impactante ao meio ambiente e aos povos indígenas, garanta sua sobrevida nos planos do governo como obra prioritária do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Evitar as terras indígenas significa, na prática, menos problemas e processos mais céleres. O risco, entretanto, é minimizar os efeitos dos empreendimentos sobre elas, ainda mais quando as comunidades dependem do rio que vai ser barrado. A manobra reduz a importância dos povos indígenas sobre os rumos do planejamento energético e do licenciamento ambiental, contabilizando atropelos que só estudos independentes vêm conseguindo desvelar. Nesse sentido, a existência de uma joia diretamente ameaçada pela UHE Castanheira foi reportada ao Ministério Público Federal (MPF) pelo povo indígena Rikbaktsa na expectativa de dar mais concretude a essa subestimação. Ela, a joia, é o Tutãra – nome do colar de casamento, uma das mais sofisticadas peças da arte plumária produzida e plenamente utilizada por um povo ameríndio. É como se chama também o pequeno molusco usado em sua confecção, que por sua vez só pode ser coletado pelos indígenas no rio Arinos e, por causa dele, é conhecido como “água de concha”. Dois relatórios técnicos, um produzido pela bióloga Claudia Callil, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e outro pela antropóloga Adriana Athila, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), a pedido da Operação Amazônia Nativa (OPAN), demonstram de forma cabal a gravidade e a irreversibilidade dos impactos da UHE Castanheira sobre o tutãra. Ele é ao mesmo tempo patrimônio ecológico, histórico, paisagístico, artístico e arqueológico. Apesar disso, foi sumariamente ignorado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que é o empreendedor desta usina. Os povos Munduruku, Apiaká e Kayabi do rio Teles Pires estão aí para confirmar que simplesmente deixar a hidrelétrica do lado de fora da terra indígena é subestimar não só os danos, mas o conhecimento de quem mais entende da região. É isso que os Rikbaktsa lutam para evitar. “O rio Arinos para nós é muito importante e a usina de Castanheira coloca em risco o futuro das novas gerações”, falou Adílio Peta Rikbaktsa, da Aldeia São Vicente, na Terra Indígena Japuíra. Egídio Matsiu, de outra aldeia no Arinos, reforçou diante dos procuradores do MPF que “para o povo Rikbaktsa, só é possível fazer colar de casamento porque tem tutãra no rio Arinos. A usina vai com certeza acabar com essa tradição. Além disso, o rio é rico em peixes como o bagre, que também pode sumir”, avisa. O tutãra Tutãra é o nome na língua Rikbaktsa para uma espécie de “molusco bivalve de água doce, grande, de nácar perolado em intensos tons de rosa”, descreve Callil. O P. syrmatophorus é encontrado exclusivamente no baixo curso do rio Arinos, já em condição de vulnerabilidade. De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) bivalves como ele ocupam o primeiro lugar no ranking entre os organismos aquáticos continentais como sendo o grupo em maior declínio no planeta. É um organismo filtrador, indicador de boa qualidade ambiental, sobre o qual se sabe pouquíssimo. “O ciclo de vida dos bivalves é complexo com requisitos ecológicos específicos, nada se conhece sobre esta relação para os bivalves da América do Sul”, relata a pesquisadora, que aponta para o desaparecimento da espécie se a UHE Castanheira for construída. Para os Rikbaktsa, isso seria trágico. “O Tutãra é um belo artefato essencialmente composto sob a maestria das mulheres Rikbaktsa e a única peça da extensa coleção da plumária exclusivamente usada por elas. Ele é feito da artesanal junção de diferentes partes que são, elas mesmas, extensivamente trabalhadas por várias pessoas, de diversos gêneros, aldeias e Terras Indígenas ocupadas pelos Rikbaktsa”, detalha a antropóloga Adriana Athila, autora do relatório técnico entregue ao MPF. Segundo ela, os processos de aquisição da tutãra incluem e ultrapassam o que equivocadamente se considera ser sua simples “coleta”, remetendo a uma complexa tecnologia de negociação sociológica e mesmo cosmológica. “Ele é fruto dos saberes singulares Rikbaktsa, do modo como se organizam, casam-se, articulam-se e desempenham seus ritos anuais; de como vêm existindo ao longo do tempo”, diz Athila. Por isso, nenhum outro povo indígena é capaz de produzi-lo nem de usá-lo e seu extermínio jamais será passível de restituição ou mitigação. Algo tão relevante do ponto de vista cultural e ambiental não foi devidamente observado nos estudos entregues pela EPE no curso do licenciamento ambiental da UHE Castanheira, conduzido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA). A ausência de estudos qualificados do impacto da hidrelétrica sobre peixes, regimes hidrológicos e qualidade da água e equívocos socioambientais motivaram a abertura de inquéritos tanto no MPF como no Ministério Público Estadual. Desde então, organizações da sociedade civil e comunidades locais apressam-se para tentar entender o que faz o governo querer tanto uma usina que, segundo estudo da Conservação Estratégica (CSF-Brasil), gerará prejuízos que podem atingir 129 milhões de dólares. De acordo com levantamento da OPAN atualizado em 2020, dos mais de cem