Das espécies migratórias às boas intenções do Banco Central

Pedro Bara Neto* No primeiro ano do seu segundo mandato, o então Presidente Lula abateu em pleno voo o principal questionamento da viabilidade socioambiental e econômica das represas do Madeira. Recomeçaria ali aquilo que nunca deu muito certo na expansão elétrica brasileira, construir grandes barragens na planície amazônica. Foi um início patético, com as principais impactadas — as espécies migratórias de peixes, representadas por seu indivíduo de maior valor comercial e ecológico, o grande bagre — com seu futuro decidido antes mesmo de aterrissar no colo do presidente. Rios amazônicos de água branca, formados a partir de cabeceiras andinas geologicamente instáveis, como o Madeira e o Solimões, carregam grande quantidade de sedimentos, o que provoca uma sequência linear de transferência de matéria e energia, na qual é possível observar organismos servindo de alimento um para o outro. O efeito dessa progressão, conhecida como cadeia trófica, em um ecossistema de tanta diversidade, como o amazônico, explica as mais de 900 espécies de peixes do Rio Madeira, com os grandes bagres migradores no seu ápice. Obviamente barrar um rio desses não é uma boa ideia, tampouco um bom negócio. De fato, em 31 de dezembro de 2020, o prejuízo acumulado da Santo Antônio Energia S.A. era, segundo seu demonstrativo financeiro, de R$ 7,8 bilhões, ou 1,5 bilhões de dólares. No caso da represa de Jirau, o último balanço de acesso público da Energia Sustentável do Brasil S.A., cujo propósito específico é a gestão desse projeto, se refere ao ano de 2013, quando o prejuízo foi de 70 milhões de dólares. Depois disso a empresa foi incorporada pela Energia Sustentável Participações Ltda., ou seja, se “fechou”. Esse foi um sinal de que as perspectivas da empresa, já àquela época, não eram tão animadoras. Com o barramento dois são os impactos principais sobre os peixes: a mudança do regime hidrológico, que afeta todas as espécies, rio abaixo, e o barramento em si, que afeta rotas de espécies migratórias, tanto de indivíduos adultos querendo subir o rio para se reproduzir em águas andinas mais frias, como de larvas e indivíduos mais jovens, se aventurando rio abaixo. Nesse ciclo de vida, o grande bagre percorre mais de 8 mil quilômetros, o que significa a maior distância migratória do mundo. Decorridos 10 anos do início de sua operação, nenhum deles conseguiu, até hoje, transpor o primeiro obstáculo colocado no seu rumo andino, a barragem da usina de Santo Antônio. Essa configuração espacial do impacto de um projeto, conhecida como sua “área de influência”, subdivide-se em 3 componentes: a área diretamente afetada (ADA), a área de influência direta (AID) e a área de influência indireta (AII). Os estudos de impacto ambiental (EIA) de projetos de infraestrutura e mineração têm minimizado drasticamente sua área de influência indireta. As represas do Madeira representam o caso mais notório desse descaso, em uma estratégia que ajudou a mascarar sua viabilidade socioambiental e econômica. Repetindo os mesmos erros Ainda no campo das hidrelétricas, a proposta atual de barrar 800 km do Rio Arinos através da construção da Usina de Castanheira, em Mato Grosso, rota de migração de muitas espécies de peixes de importância para as comunidades indígenas e não indígenas, reforça a falta de sensibilidade socioambiental do setor elétrico brasileiro em relação a necessidade de se manter alguns rios livres. Principalmente, no caso desse projeto, localizado em uma bacia hidrográfica, a do Rio Juruena, onde as principais rotas migratórias já foram barradas. E todo esse risco socioambiental para gerar pífios 98 MW de energia supostamente firme. Mas não é só na preparação de projetos do setor elétrico que se minimizam os impactos indiretos. Também na Ferrogrão, cuja função é a de alimentar um sistema intermodal de exportação de commodities agrícolas do Centro-Oeste, conhecido como “Saída Norte”, esse padrão se repete. E isso se dá ao tratar a influência da ferrovia na miopia da sua construção e não na perspectiva do potencial de captação da carga que a justifique. Assim, segundo o EIA, a influência indireta da Ferrogrão é de 10 km para cada lado da ferrovia, faixa esta que foi acrescida do contorno remanescente de unidades de conservação interceptadas pela ferrovia. Esse número é muito inferior ao potencial de influência da via, que pode chegar a 400 km a oeste da cidade de Sinop, no Norte de Mato Grosso, seu ponto de partida. Se esta área de influência for considerada, o ganho logístico proporcionado pela ferrovia pode induzir um novo ciclo de desmatamento do Cerrado ou de conversão de pasto em agricultura intensiva, com implicações para a região noroeste de Mato Grosso, que é parte do bioma amazônico, e que tem se destacado, tanto no avanço da atividade pecuária, como no desmatamento e conflitos pela terra. Por uma resolução específica para o financiamento de projetos Muito se tem discutido sobre a responsabilidade socioambiental e climática do sistema financeiro, desde a publicação pelo Banco Central, em 2014, dos contornos gerais de estabelecimento e implementação de uma política nesse sentido. Desde então, entende-se que tal política foi mais efetiva na preparação das instituições para o seu exercício, do que em casos práticos relevantes da sua aplicação. De qualquer forma, os últimos anos foram férteis para o aprendizado de lições, em especial em relação ao risco socioambiental e climático do avanço da agropecuária e de projetos de infraestrutura e mineração. Talvez por isso, o Banco Central tenha adotado recentemente uma estratégia diferente, ao propor uma resolução específica para o crédito rural. Por outro lado, para todos os outros produtos e serviços prestados pelo sistema financeiro, manteve-se o caráter genérico de comandos normativos, que desta vez foram incorporados a uma resolução existente, que trata do gerenciamento do risco do capital, onde todos os outros riscos deságuam, o que levou a questão-chave da identificação, avaliação, classificação e mensuração dos riscos socioambientais e climáticos a se perder nesse emaranhado. Em nome da assertividade e efetividade daquilo que o Banco Central vem buscando há anos, melhor seria que os financiamentos de projetos de desenvolvimento econômico, em especial de infraestrutura

Sem licença, sem usina de Tabajara

Marcelo Lucian Ferronato* Foi negada a licença para instalação da usina de Tabajara (400 MW), a ser implantada no rio Machado, na Cachoeira 2 de novembro, em Machadinho D’Oeste (RO). Fato que já começou a gerar polêmica e ataques ao Ibama. É a velha retórica de que o Ibama é contra o desenvolvimento, que não deixa fazer nada para o bem do povo, que é culpa dos ambientalistas, das ONGs e por aí vai, chega a ser cansativo a mesma ladainha de sempre. Conheço bem a região, na adolescência morei lá. Isso me dá propriedade para expor minha nessa opinião. Tenho consciência que muitas pessoas certamente discordarão da minha opinião, porém tenho motivos e argumentos de sobra para defender os pontos de vista elencados no parecer que sustenta a decisão do Ibama. Primeiro quero abordar uma questão importante a ser analisada sobre os inúmeros exemplos dos efeitos negativos desses grandes empreendimentos na Amazônia. Um sonho para alguns e pesadelo para muitos. Da maneira que são tocados, consolida-se a celebre frase: “Privatizar o lucro e socializar os prejuízos”. Essa afirmativa significa que os lucros de uma obra dessa magnitude são destinados para algumas poucas pessoas, as quais, no decorrer da construção concentram vultuosos lucros, em geral financiados com recursos de bancos públicos, fato que se repete durante a operação do empreendimento. Socializar os prejuízos é quando o impacto social e ambiental é compartilhado pela sociedade, durante ou pós construção. Esses se relacionam ao aumento da criminalidade, crescimento populacional desenfreado, pressão sobre os sistemas de saúde e educação, principalmente onde a infraestrutura já é deficitária, e uma lista imensa que estenderia demais esse texto. Para convencer a população loca, esta é levada a acreditar que haverá desenvolvimento, geração de riquezas, novas oportunidades, além de que serão pagas vultuosas indenizações, compensações e durante a geração da energia os royalties pelo uso da água para manutenção e melhoria dos serviços públicos. Porém o que na prática acontece é criação de bolsões de pobreza, subdesenvolvimento e concentração de renda e terras. No caso da usina de Tabajara, o desenvolvimento do parecer foi realizado por seis analistas ambientais do Ibama e 2.100 horas de análise técnica dos estudos. Trata-se de um parecer extremamente fundamentado e que demonstra a fragilidade dos estudos apresentados. Foram apontadas inúmeras fragilidades, inconsistências, informalidade científica e ausência de informações, tanto no Estudo de Impacto Ambiental – EIA, como também nas complementações apresentadas pelo empreendimento. O que foi apresentado ao órgão licenciador não possibilita sustentar uma decisão favorável de viabilidade do empreendimento. O parecer ressalta que é “indispensável a complementação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), com maior esforço de aquisição e análise de dados cientificamente válidos, a fim de esclarecer questões relacionadas à viabilidade ambiental, além de rigor na avaliação de impactos ambientais já solicitados pelo Ibama”. Os estudos não foram capazes de apresentar dados suficientes da delimitação do reservatório. Essa não determinação exata da área de alagação, pode resultar em área de inundação maior e mais extensa que o proposto pelo EIA. Ou seja, áreas com ocupação humana consolidada e histórica podem ser afetada e expulsar compulsoriamente seus habitantes, além de se estender por áreas de floresta conservadas, matando animais, plantas e causando impactos maiores do que os previstos. Os estudos relativos à fauna e flora da região de impacto, possuem inconsistências e solicitações não atendidas e/ou parcialmente atendidas. Nesse quesito não foi possível avaliar com clareza os dados sobre os impactos sobre a fauna. Nem as ameaças aos anfíbios e répteis com ocorrência específica para a região onde o empreendimento está planejado, e quais as ações de mitigação para evitar a extinção dessas espécies únicas. Chama atenção o fato de não terem coletados dados atualizados de desembarque e comercialização de pescado. O parecer ressalta “o fato de não existir pontos de desembarque e/ou comercialização na área não justifica de forma conveniente a não obtenção de dados pesqueiros com o uso da metodologia solicitada, uma vez que existem adaptações aplicáveis ao caso concreto”. O estudo deixou de caracterizar e analisar a pesca de subsistência, identificando a sua importância para a composição da renda familiar, número de pessoas envolvidas e o grau de impacto do empreendimento nesta atividade, dados que são de alta relevância para propor as medidas de mitigação e compensação a esse impacto. É certo que mais uma vez o Ibama, principal órgão de comando e controle ambiental do país, será mais uma vez alvo de inúmeras críticas e considerado o “vilão” e o responsável por “travar” o desenvolvimento. Porém, o que o órgão faz é de grande relevância e busca discutir as melhores alternativas para que os impactos sejam corretamente, ou o mais próximo disso possível, identificados, mensurados, mitigados e compensados. Nossa sociedade precisa compreender a importância do licenciamento ambiental para sua própria qualidade de vida e repartição dos benefícios seja para o bem da coletividade, e não para gerar mais problemas. Deve-se amadurecer a ideia de que se busca o contínuo aperfeiçoamento técnico para essas importantes obras de infraestrutura. Modo que elas tenham maior eficiência e menos impactos ambientais e às pessoas. Homem e natureza coexistem, são inseparáveis, esse deve ser o entendimento que devemos ter. Enquanto isso acompanhamos ataques do congresso nacional contra o licenciamento ambiental; Aumento do desmatamento na Amazônia, investigações da polícia federal no Ministério do Meio Ambiente, ataques de parlamentares do estado de Rondônia para reduzir unidades de conservação, inúmeras invasões para grilagem de áreas protegidas e terras indígenas e por aí vai. Basta olhar para identificar de que lado estão aqueles que buscam seguir as leis do país, inclusive as normas ambientais, daqueles que querem destruir todo esse aparato de proteção e/ou simplificar mecanismos para ganhar no grito o poder de destruição de nossos ecossistemas naturais. Não se trata de impedir desenvolvimento coisa nenhuma, trata-se de fazer o que é certo para garantir o bem-estar coletivo. REFERÊNCIA: Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Coordenação de Licenciamento Ambiental de Hidrelétricas, Obras e Estruturas Fluviais. Parecer Técnico nº 65/2021-COHID/CGTEF/DILIC. Disponível aqui. *Marcelo Lucian Ferronato é biólogo na Oscip Ecoporé, Mestre em Ciências Ambientais e Doutor em Desenvolvimento

Critérios de sustentabilidade para crédito devem contribuir para combater o desmatamento

Os bancos precisam começar a fazer a sua parte e parar de financiar projetos que não sejam sustentáveis O mundo está de olho no desmatamento dos biomas brasileiros, especialmente na Amazônia, onde a área destruída aumenta a cada levantamento. É hora de cada um olhar para a sua parcela de responsabilidade nisso. Incluindo os bancos, que ainda financiam atividades responsáveis por grande parcela dessa destruição. O Banco Central (Bacen) tem aberto consultas públicas para regular os critérios de sustentabilidade do crédito rural, o que é bom, mas ainda pouco. Aproveitando a deixa, algumas organizações do terceiro setor têm se mobilizado para alertar que os bancos precisam ser mais rígidos em seus critérios de sustentabilidade, especialmente no que diz respeito ao crédito rural. O assunto é de extrema importância porque a agropecuária é uma das atividades que mais impactam áreas de floresta da Amazônia e outros biomas importantes do nosso país. “Historicamente, a política de crédito no Brasil tem sido muito aleatória e não traz estímulos à bioeconomia, usando a floresta em pé. Mas a verdade é que deveria”, afirma Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura, rede que, não só enviou suas contribuições para a consulta pública, como também está dialogando diretamente com o Banco Central, alertando sobre a importância do assunto. Junto com outras organizações, eles também mandaram uma carta pública ao órgão pedindo, entre outras recomendações, a vedação do crédito em determinados casos e a geração de alertas para operações que representam um risco social, ambiental ou climático. Segundo o documento, esses são “instrumentos muito relevantes para reduzir o risco econômico associado também à imagem das instituições financeiras, mas também para prevenir e reduzir os impactos negativos causados pelas operações de crédito rural”. O Brasil tem um legado de crédito aplicado para coisas erradas, segundo Gustavo Pinheiro, coordenador do portfólio de Economia do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Ele explica que muito do dinheiro que os bancos emprestam já foi aplicado para financiar o desmatamento da Amazônia ou infraestruturas que não fazem sentido econômico ou social para a região e ainda trazem impactos ambientais devastadores. “O crédito para o desenvolvimento da Amazônia nunca financiou o desenvolvimento da região. É como se ela não tivesse sido descolonizada. O Brasil deixou de ser colônia de Portugal, mas a Amazônia passou a ser colônia do resto do país, esse lugar onde a gente só investe se for para tirar uma casquinha”, alertou em entrevista para o podcast Infraestrutura Sustentável, que explora o assunto e pode ser escutado aqui. Só em 2021, o Bacen já abriu três consultas públicas referentes ao assunto, o que mostra que a instituição está atenta ao seu papel para mudar essa realidade. Essas ferramentas buscam trazer para dentro do sistema de análise de crédito rural alguns critérios mais rígidos. Também tentam incorporar outras bases de dados onde seria possível verificar, por exemplo, se a área que está sendo financiada para atividade agrícola não está dentro de uma área de conservação ou terra indígena. São avanços, mas ainda pode ser melhor. É isso que as contribuições para o texto tentaram fazer: aproveitar essa oportunidade para que os riscos ambientais, sociais e climáticos sejam melhor considerados pelas instituições financeiras. Essas exigências estão totalmente alinhadas com as melhores práticas internacionais e, não por acaso, essa agenda é liderada no Bacen pela diretoria de assuntos internacionais. Alguns países, inclusive, já ameaçam boicotar produtos brasileiros que incentivam o desmatamento, questão que é central para o risco climático do planeta. Os bancos brasileiros, infelizmente, ainda estão entre os que mais oferecem riscos de desmatamento associado às suas carteiras de crédito. Em um levantamento feito pelo projeto Forests & Finance, entre os dez bancos com maior risco, quatro são brasileiros. A iniciativa é de uma coalizão de ONGs dos Estados Unidos, Malásia, Indonésia e Brasil. Não é uma boa fama internacional para nossos bancos. “Esse é o tipo de recorde que a gente não gostaria de ter”, lamenta Gustavo Pinheiro. Precisamos aproveitar esse movimento porque o Brasil não pode ficar atrasado em mais essa agenda, ainda mais com o mundo todo de olho na gente. Este artigo foi escrito por Angélica Queiroz e Alexandre Mansur e publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Revista Exame.

Lições do Covid para tornar a nossa economia mais resiliente

A pandemia mostrou como a falta de infraestrutura básica agrava as crises humanitária e econômica. Como podemos nos preparar? O Brasil vive a fase mais aguda da pandemia. Recordes de mortes, colapso nos hospitais, cenas de horrores nas UTIs, sofrimento, comércio fechado, prejuízo para as empresas e perspectivas de que o cenário pode ficar ainda pior se medidas urgentes não forem tomadas. Na região Norte, a situação é ainda mais grave, um reflexo da baixa qualidade dos serviços e falta de infraestrutura na região. A Amazônia tem os piores indicadores de qualidade de vida, e isso fica mais evidente quando o país todo está sob pressão pela pandemia. Postos de saúde, hospitais, água tratada, saneamento básico, transporte para levar vacinas, galões de oxigênio, profissionais e doentes. Tudo isso ainda falta nos estados cujos sistemas de saúde foram os primeiros a colapsar. Isso sem falar na falta de infraestrutura de energia, que causou blecautes no Acre e no Amapá. Um grupo de organizações e associações do Brasil se organiza para exigir medidas emergenciais nas próximas semanas. A ideia é chamar atenção para a necessidade de uma série de medidas contra a pandemia, como mais vacinas, auxílio emergencial maior e lockdown nacional durante o mês de abril. Todas têm uma coisa em comum: o Brasil precisa de mais infraestrutura. Sem ela, todos os setores perdem. O pano de fundo da campanha é a precariedade geral do país para enfrentar a crise de saúde e de economia e a mobilização mostra o papel fundamental das organizações não-governamentais, que representam a vontade da sociedade, para organizar momentos próprios e fazer o que os governos ou empresas não fazem. Está na hora de usarmos esse momento crítico e prestar atenção no que ele revela. Precisamos aproveitar a indignação e transformar o sofrimento em ação. Para isso, a população é fundamental em seu poder de pressionar os gestores públicos eleitos e os legisladores. Cobrar deles medidas para melhorar a qualidade de vida das pessoas, em todo o país. A pandemia mostrou, claramente, que, mais do que grandes obras faraônicas de infraestrutura, as pessoas da região Norte precisam de projetos mais fundamentais, que sejam pensados para as pessoas que vivem nas regiões onde eles serão implantados. São as infraestruturas básicas que dão condições para que as pessoas enfrentem os momentos mais difíceis. Essa crise sanitária é só um exemplo. “Tudo o que a gente pede ajudaria as populações, especialmente de comunidades mais vulneráveis, a atravessarem esse momento com menos dificuldades, o que, certamente, significaria menos vítimas fatais”, afirma Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura, uma rede com mais de 40 organizações que trabalham para garantir que os projetos sejam pensados para a Amazônia e não apenas na Amazônia. Precisamos identificar casos exemplares de outros países que estão atravessando esse momento com menos perdas humanas e econômicas. Se olharmos para os melhores exemplos, todos eles investiram, antes, em infraestrutura. “A pandemia veio evidenciar os nossos graves níveis de desigualdade. Não podemos sair da crise sanitária e voltar para essa outra, porque já ficou claro que ela só dificulta as coisas, em qualquer cenário”, afirma Glaucia Barros, diretora programática da Avina Brasil, uma das organizações que estão à frente da mobilização para exigir uma gestão mais responsável da pandemia. Essa união das organizações da sociedade civil é um dos caminhos para essa mudança, uma construção que deveria ficar para além da pandemia. “Nosso papel é escutar as dores da população e procurar traduzir isso numa política de gestão da crise para aqueles atores que podem e devem fazer alguma coisa. O objetivo de todo esse esforço agora tem que estar, além de fazer mais robusta essa infraestrutura cívica, informar sobre as prioridades de agenda no médio e longo prazo”, destaca Glaucia. Esse é o assunto do décimo episódio do podcast Infraestrutura Sustentável, do qual ela é a convidada. A pandemia é uma tragédia nacional. Está nos jogando numa recessão. Reduzindo a renda da população. Gerando insegurança nos investidores e consumidores. Mas se aprendermos com o que ela revela, construiremos um país mais resiliente para os negócios e melhor para os brasileiros. Esse texto foi escrito por Angélica Queiroz e Alexandre Mansur e publicado na coluna Ideias Renováveis, da Revista Exame. Foto: Projeto Asas de Emergência, do Greenpeace, transportou mais de 63 toneladas de equipamentos e insumos de saúde para populações indígenas da região Norte (Greenpeace/Divulgação)

A Amazônia, a Ferrogrão e o paradigma ASG

Nelson Siffert Filho e Pedro Bara Neto* Com uma produção de 120 milhões de toneladas, o Brasil passou a representar mais de 50% das exportações mundiais de soja, com destaque para a região centro-oeste do país. A melhoria logística proporcionada por um projeto “greenfield”, que conecta Sinop/MT a Miritituba/PA, com 933 km de extensão, coloca a Ferrogrão no centro da agenda nacional de infraestrutura. Apesar disso, é difícil imaginar que qualquer recurso privado ou institucional de longo prazo, interno ou externo, seria investido neste projeto desconsiderando riscos ambientais, sociais e de governança (ASG). Principalmente, no caso desta ferrovia, que corre paralela a uma rodovia (BR-163), marcada por conflitos pela apropriação de recursos naturais, em meio a territórios indígenas e unidades de conservação sob pressão de intrusões e atividades ilegais. Essa percepção do alto risco ASG da Ferrogrão, confirmada por um “road show” recentemente promovido pelo Programa de Parcerias de Investimentos, levou o governo a colocar à disposição dos empreendedores, R$ 2 bilhões de recursos públicos, provenientes da renovação da concessão de outras ferrovias, para mitigar tais riscos. Isso antes mesmo da finalização do estudo de impacto ambiental. Mas haveria outro caminho para endereçar tais riscos? Segundo a Price Waterhouse & Coopers, até 2025, 60% dos fundos mútuos de ativos europeus estarão alinhados a princípios ASG. Quatro são os processos por trás desse crescimento: a mudança de uma postura voluntária para um arcabouço regulatório, como, no caso brasileiro, da política de responsabilidade social e ambiental do sistema financeiro; casos práticos que desmistificaram a tese de que, para ser sustentável, investidores devem sacrificar seus retornos; o crescimento expressivo de uma nova mentalidade de investidores, particularmente institucionais, que demandam impactos ASG positivos, ao lado do retorno financeiro; e o aumento da consciência pública dos impactos sobre as mudanças climáticas e a sustentabilidade, que levaram essa questão ao topo da agenda global. Segundo o estudo de viabilidade, a demanda para o carregamento de grãos pela ferrovia deve atingir, em 2030, um volume de 19,2 milhões de toneladas, alcançando 47,4 milhões 10 anos depois. Neste momento, a produção de soja do Mato Grosso atingiria 55 milhões – um acréscimo de 60% em relação aos 35 milhões de toneladas da última safra. Tal feito se dá pela assumpção de um extraordinário crescimento da produtividade da soja, dos atuais 3,6 para 5,6 toneladas por hectare. Todavia, caso se adotasse a taxa observada nos últimos 20 anos – da ordem de 20% – haveria a necessidade de um acréscimo da área cultivada de 3 milhões de hectares. A implantação deste projeto é capaz de reduzir os custos logísticos em 1/3. Como parte deste ganho deve se traduzir em preços mais atrativos para os produtores rurais, os incentivos econômicos para a expansão da área cultivada serão ainda maiores, com o risco de que tal expansão se dê pela conversão de pastos em culturas anuais, empurrando mais boi para dentro da Amazônia. Nesse aspecto, os riscos socioambientais do projeto não foram adequadamente incorporados nos estudos de viabilidade econômica, o que não significa dizer que, quando incorporados, possam levá-lo à um cenário de inviabilidade econômico- financeira. Ao contrário, os indicadores econômico-financeiros do projeto são suficientemente robustos para iniciativas, tanto de prevenção de um avanço desordenado da fronteira agrícola, como do desenvolvimento ASG na sua área de influência. E isso pode ser articulado, com os R$ 2 bilhões disponíveis, em um processo de qualificação da Ferrogrão como um investimento de impacto regional, social, econômico, ambiental e de governança. Nessa trilha, é viável se pensar em uma redução de 1% no custo médio ponderado de capital do projeto através da captação de green bonds. Se esse “ganho verde” fosse repassado a iniciativas ASG, seu valor presente seria de R$ 1,1 bilhões. Na busca de sustentabilidade do investimento, do local ao global, o primeiro passo em relação aos riscos e oportunidades ASG do projeto deveria ser a construção de uma governança participativa com os grupos de interesse regional – começando por uma consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais, que atenda aos protocolos por elas desenvolvidos. Dado que forças e interesses vão impulsionar a Ferrogrão – em síntese, seu DNA e a agenda do setor ferroviário – chegou a hora de começar a escrever uma nova estória no desenvolvimento da infraestrutura do país na Amazônia. *Nelson Siffert Filho, é Doutor em Economia pela USP, foi economista do BNDES de 1985 a 2020 / Pedro Bara Neto, é Mestre em Ciências da Engenharia pela Universidade de Stanford e especialista em infraestrutura e energia na Amazônia

Redução de danos e do preço a pagar

Por Sérgio Guimarães* Os ciclos da natureza, como as mudanças nas estações, acontecem todos anos, o que nos permite planejar uma série de atividades diretamente dependente deles, como a agricultura. Mudam um pouco a cada ano, mas mantêm um padrão que nos permite fazer diversas previsões e ajustar nossas ações. As dificuldades surgem quando as atividades humanas interferem e contribuem para alterar os padrões conhecidos, como está acontecendo hoje. As mudanças estão acontecendo cada vez com maior velocidade, causando o que conhecemos como crise climática. Consequências e prejuízos que nem estavam no radar num primeiro momento, mas podem ser incalculáveis. Um deles, que o Brasil está vivenciando e cuja tendência é que se agrave nos próximos anos, por conta das alterações no clima, é a redução do volume de chuva e os baixos níveis dos reservatórios das hidrelétricas. Relatórios recentes do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) mostram que, entre setembro de 2020 e fevereiro de 2021, as regiões Sudeste e Centro-Oeste receberam o menor volume de chuvas desde o início da série histórica, há mais de 90 anos. Em janeiro deste ano, o Brasil registrou o menor índice mensal de chuvas desde 2010 e os reservatórios estão, em média, com apenas 23% de suas capacidades. Isso causa fortes impactos no fornecimento de energia elétrica e tem obrigado a ONS a ligar termelétricas movidas a combustíveis fósseis, com cada vez maior frequência. O problema das termelétricas As termelétricas são muito mais poluentes e caras para o consumidor. Somente nos meses de dezembro/20 e janeiro/21, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), os brasileiros pagaram cerca de R$1 bilhão a mais nas contas de luz por conta de bandeiras tarifárias. Isso mesmo, R$1 bilhão em dois meses, somente para cobrir custos adicionais do maior uso das termelétricas. Se projetarmos esses valores para os próximos anos, principalmente considerando que essa situação deve se agravar – hoje a redução dos níveis de chuva atinge todas as regiões do Brasil, inclusive a Amazônia – as cifras podem alcançar as centenas de bilhões em poucos anos. O que em tempos de crise econômica, agravada pela pandemia do Covid-19, que ainda não tem prazo para acabar, certamente tem um efeito multiplicador e um peso adicional significativo para a ampla maioria da sociedade. O alto preço da inconsequência Este é só um exemplo dos impactos e do alto preço que a sociedade paga por atitudes inconsequentes do homem sobre a natureza. Também pela falta de medidas efetivas de governos, que muitas vezes amplificam os problemas. Outro exemplo dramático que o Brasil e o mundo vivenciam nesse momento é a própria pandemia do Covid-19. Um vírus oriundo de animal silvestre, que passou para o ser humano com consequências devastadoras e que já atingiu cerca de 140 milhões de pessoas, com quase 3 milhões de mortos em todo mundo. Só no Brasil, até 12 de abril, eram mais de 13,5 milhões de casos e mais de 350 mil mortes. Ou seja, novamente o preço pago pela sociedade é incalculável. Preço, muitas vezes, agravado e ampliado em diferentes lugares por atitudes inconsequentes e estultices na gestão da própria pandemia, como é o caso do Brasil. Aqui atitudes desencontradas e mesmo frontalmente contrárias ao que recomenda a ciência, têm contribuído para agravar significativamente a situação. Quantas vidas poderiam e podem ser poupadas, quanto sofrimento poderia e pode ser evitado, quantos bilhões de reais poderiam e podem ser poupados caso tivéssemos e tenhamos daqui pra frente uma gestão minimamente razoável da pandemia? Mas, precisamos fazer mais do que apontar os erros e os absurdos cometidos diariamente, visíveis aos olhos de todos e mostrados pelos veículos de comunicação, que difundem a visão de cientistas, médicos e outras autoridades. Temos o alerta de renomados infectologistas sobre a proximidade de um ponto de não retorno da crise sanitária no Brasil e é necessária, urgente e fundamental uma articulação ampla, envolvendo segmentos da sociedade civil, do empresariado, de governos subnacionais, parlamentos, academia e agências multilaterais. O objetivo é implementar uma gestão da pandemia no Brasil capaz de conter o avanço acelerado da letalidade, com segurança sanitária, alimentar e de integridade física para todos os brasileiros. Nesse sentido, alguns passos são essenciais, entre eles: informação à população sobre o prognóstico de agravamento do colapso, possivelmente ainda em abril, e articulação com governos subnacionais, com o Parlamento Federal e Tribunais Superiores. Ao mesmo tempo, desenvolver ações de apoio para o aumento da Renda Básica e do Auxílio Emergencial. Também, estabelecer contatos internacionais com governos e Agências Multilaterais para buscar ajuda internacional. Isso tudo, sem esquecer ações de médio prazo como fortalecimento do SUS e Reforma Tributária. Claro, é um enorme desafio. Mas, extremamente urgente, necessário e inadiável, para reduzir imensos danos sociais e econômicos e o incalculável preço a pagar pela sociedade, principalmente pelos mais pobres e vulneráveis. Mas que, com boa vontade, discernimento e ação articulada, temos boa chance de conseguir. É fundamental para o Brasil, para as atuais e futuras gerações que consigamos. *Sérgio Guimarães é Secretário Executivo do GT Infraestrutura – uma rede com mais de 40 organizações que atua para contribuir com a democratização e a efetividade de Políticas Públicas de Energia e Infraestrutura, baseadas em princípios de justiça socioambiental. Imagem: Abril pela Vida

O que aprender com o desastre de Belo Monte

Construtores ignoraram avisos que as mudanças climáticas e o desmatamento local secariam o rio Xingu, prejudicando a população e a produção de energia Um grupo de especialistas acaba de dar um parecer assustador: o rio Xingu, na região da Volta Grande, pode secar. O estudo foi encomendado pelo Ministério Público Federal (MPF) em razão de uma nova autorização dada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) à concessionária da Usina de Belo Monte, em um novo projeto para aumentar a produção de energia elétrica na região, mas com compensações ambientais insuficientes para mitigar os impactos previstos. A região fica no município de Altamira, no Pará, onde vivem várias comunidades ribeirinhas e pelo menos duas comunidades indígenas. Altamira é uma dessas cidades que recebeu grandes obras ao seu redor e, por isso, experimentou um crescimento desenfreado e impactos altamente negativos, principalmente da Usina de Belo Monte. A herança maldita da obra continua causando uma série de graves problemas tanto sociais, como ambientais. Essa nova ameaça coloca em evidência, mais uma vez, as perguntas que já fiz algumas vezes por aqui: a quem interessam as grandes obras na Amazônia? Será que elas melhoram a vida de quem mora na região? Antonia Melo, liderança do Movimento Xingu Vivo para Sempre, vive e conhece bem a realidade da região. “Belo Monte causou e vem causando uma destruição total em toda a área, especialmente na Volta Grande do Xingu, onde moram centenas de ribeirinhos, pequenos agricultores e comunidades indígenas”, lamenta. Segundo ela, desde 2016, não há mais peixes e piracema, que é uma importante estratégia reprodutiva de várias espécies na região. Ou seja, muitas famílias, além de todo o transtorno, perderam a sua única fonte de renda. As cidades ficam abandonadas e como uma população empobrecida. “Para nós Belo Monte ensinou que quem ouve não escuta”, lamenta Antonia. Mas isso não começou hoje. Todos esses problemas foram previstos quando Belo Monte estava na fase de projeto e a população se mobilizou para evitar a construção. Muitos técnicos também alertaram e continuam avisando, como esse grupo de especialistas está fazendo agora. É um desastre antecipado. Por que a obra foi para frente mesmo assim? Porque o pensamento não é de longo prazo. A destruição atende a alguns interesses, no curto prazo, mas não se sustenta. Para encontrar uma alternativa econômica viável para a região da Amazônia, é preciso ouvir quem vive lá. Investir em infraestruturas básicas, inclusive nas cidades, precisa ser prioritário porque atraem desenvolvimento, preservando a riqueza da floresta, que vale muito mais em pé e com os rios correndo. Na fase de planejamento, o governo federal ignorou completamente os alertas de que a usina era inviável. Belo Monte deveria operar gerando 4.571 MW de energia garantida ao longo de 12 meses. Essa é a chamada “energia firme”, o mínimo que os técnicos prometem gerar com a variação natural de mais ou menos chuva para encher o reservatório. Só que foram otimistas demais. Ou escolheram abafar os alertas. Hoje, com o rio vazio, a produção de verdade é bem menor. A hidrelétrica produziu uma média mensal de apenas 568 MW em agosto, 361 MW em setembro, 276 MW em outubro e 583 MW em novembro. Mesmo no auge da estação das cheias, o máximo que Belo Monte produziu foi 6.882 MW por mês, bem abaixo dos 11.233 MW prometidos aos investidores – e ao país. Os moradores de Altamira, que sofrem em primeira mão com as consequências da obra desastrada, não usufruem da energia de Belo Monte. Boa parte das famílias da região ainda não tem luz elétrica. As chuvas estão reduzindo por dois motivos. O primeiro são as mudanças climáticas globais. Entre os efeitos previstos há décadas pelos cientistas, inclusive no IPCC, Painel da ONU, já antecipavam redução nas chuvas na Amazônia. Isso foi dito antes da obra e ignorado. Para agravar, o desmatamento descontrolado na Amazônia reduz ainda mais as chuvas localmente. Isso porque é a floresta que gera as chuvas. As árvores puxam água das camadas profundas do solo e jogam umidade na atmosfera, que produz as chuvas não só para a Amazônia mas para o resto do país. O desmatamento acelerado está secando a Amazônia. Em Altamira, o desmatamento foi potencializado pela obra sem cuidados. A construção atraiu multidões de migrantes e incentivou a especulação em torno das terras públicas, disponíveis para grilagem. O desmatamento na Amazônia é principalmente o resultado de um processo de invasão de terras públicas. Os grileiros invadem as terras e desmatam, para tentar legalizar a posse. Grandes obras como Belo Monte aumentam a cobiça dos grileiros. Os responsáveis pelo desastre de Belo Monte, os governos que continuam coniventes com a má gestão dos recursos hídricos e que fazem vista grossa para o desmatamento na região têm uma dívida com os moradores da região. Também tem uma dívida com o resto do Brasil, que pagou caro em dinheiro por Belo Monte e vai sofrer as consequências das reduções nas chuvas. E ainda têm uma dívida com o resto do mundo, que pode arcar com mudanças climáticas mais severas por causa do desmatamento na Amazônia. Esse é o assunto do nono episódio do podcast Infraestrutura Sustentável, produzido pelo GT Infra, uma rede de mais de 40 organizações, que buscam dialogar sempre com as pessoas que, de fato, sabem de que tipo de obra a Amazônia precisa. Quem pensa em fazer investimentos por lá deveria ouvir o que eles têm a dizer. Esse texto foi escrito por Angélica Queiroz e Alexandre Mansur e publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Revista Exame. Foto: Usina de Belo Monte: durante construção, governo federal ignorou os alertas de que a usina era inviável (Agência Senado/Divulgação)

As cidades da Amazônia podem ajudar a resolver os desafios da floresta

As áreas urbanas precisam ser pensadas para prestar bons serviços e promover desenvolvimento sustentável e alinhado com o perfil do território Quando falamos em preservação da Amazônia, nossa mente vai no automático para a floresta, os rios, comunidades ribeirinhas. Mas, você já parou para pensar no papel das cidades e de suas populações para conseguirmos, de fato, proteger nossas áreas naturais? Precisamos lembrar que, assim como no restante do país, a maior parte da população da região Norte vive nas cidades: Belém tem 1,5 milhão de habitantes e Manaus, mais de 2 milhões. Tudo está interligado e as organizações que trabalham com o assunto sabem que sem olhar o desafio social das populações urbanas, não se resolve as dificuldades ambientais da região. As cidades, na medida em que se desenvolvem, passam a interferir ainda mais no desenvolvimento socioeconômico de suas regiões, pois demandam mais recursos naturais, insumos das zonas rurais e, ao mesmo tempo, absorvem uma população rural migrante em busca de educação, saúde e, às vezes, de emprego. Esse fluxo entre pessoas, serviços e produtos acentua os problemas que a cidade já tinha, como mobilidade urbana, saneamento básico e moradia. “Com o inchaço populacional das cidades amazônicas, esses problemas ganham uma outra importância na região e na visão de sustentabilidade do território”, explica Fabiano Silva, coordenador da Fundação Vitória Amazônica (FVA), organização que atua na região há mais de 30 anos. O coordenador da FVA explica que a forma como essas cidades se desenvolvem tem tudo a ver com a floresta e o desenvolvimento urbano precisa ser pensado de forma com que esses centros urbanos sejam promotores de serviços e produtos efetivamente sustentáveis e alinhados com o perfil do território. Os grandes projetos, como estradas ou linhas de transmissão das hidrelétricas, conectam cidades. No entanto, quase nunca beneficiam os moradores desses municípios, gerando mais prejuízos do que ganhos, como aconteceu com a região de Altamira (PA), com a construção de Belo Monte. A população viu explodir o valor imobiliário e o custo de vida, além do aumento da pressão sobre os sistemas de saneamento e saúde pública. É o que o GT Infraestrutura, rede de mais de 40 organizações socioambientais, tem chamado de “infraestrutura na Amazônia e não para a Amazônia”. O que pode ser feito? Pensar as cidades como projetos de infraestrutura, de maneira planejada, com função e objetivos, é um começo, segundo Fabiano Silva. Além disso, o perfil do território deve ser levado em conta na hora de pensar esses projetos. “Cidades da Amazônia precisam ser pensadas de forma diferente, tanto na sua composição urbanística, mas também na sua função terriotorial”, explica. Se uma cidade tem potencial turístico, madeireiro ou pesqueiro, é importante que seus equipamentos urbanos e de logística sejam pensados com base nisso. Esse é o assunto do oitavo episódio do podcast do GT Infra. Vale a escuta! Foto: A cidade de Belém tem 1,5 milhão de habitantes. A conservação da floresta que a cerca depende das soluções urbanas (Alexandre Mansur/Reprodução) Esse texto foi escrito por Angélica Queiroz e Alexandre Mansur e publicado, originalmente, na coluna Ideias Renováveis, da Revista Exame.

Covid, enchentes e refugiados: o drama do estado do Acre

“A farra do desmatamento sem limites está encontrando no Clima um juiz que sabe contar árvores e que não esquece nem perdoa.” (Antonio Donato Nobre – Futuro Climático da Amazônia) por Sérgio Guimarães* No verão de 2021 o Acre vivencia uma situação dramática, sofre com três crises simultâneas: Covid-19, o estado atravessa seu momento mais crítico em relação à pandemia, com explosão no número de pessoas infectadas e mortas pela doença; enchentes, com milhares de desabrigados, cuidar dos contaminados se tornou ainda mais difícil, garantir alimento e água potável um desafio; surto de dengue, resultado do aumento das chuvas e inundações, nos dois primeiros meses do ano, mais de 8 mil pessoas já foram infectadas. Isso sem falar na crise migratória de pessoas que tentam deixar o país pela fronteira com o Peru, sendo impedidas pelo país vizinho. Verão de cheias históricas O Acre sofre uma cheia histórica que em fevereiro deixou mais de 130 mil pessoas desabrigadas, cerca de 15% da população do estado, além de contribuir para ampliar as outras crises. O problema atingiu vários grupos indígenas e ribeirinhos, que perderam suas casas e boa parte de suas plantações, aumentando a vulnerabilidade social já vivida por essas comunidades. Em Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do estado, o rio Juruá atingiu em 2021 o maior nível histórico, impactando 33 mil dos seus 89 mil habitantes. Sena Madureira, a terceira maior cidade acreana, teve 80% de seu perímetro urbano coberto pelas águas do rio Iaco, afluente do Purus. Mais de 27 mil (cerca de 60%) dos 46 mil habitantes foram atingidos. O estado decretou estado de calamidade pública, após a cheia dos rios Acre, Juruá, Envira, Iaco e Purus. Tão grave é a situação, que uma rede de solidariedade foi formada no Brasil, liderada por instituições e personalidades para arrecadar recursos e apoiar a população atingida. Isak Kui, liderança do povo Huni Kuī, o mais numeroso povo indígena do Acre, com aproximadamente 22 mil pessoas e um dos mais afetados, diz que é a maior a enchente do Rio Envira, no município de Feijó. “Diversas aldeias foram afetadas, principalmente nas produções de banana, macaxeira, milho, amendoim. Todas essas plantações foram cobertas pela água e tudo foi perdido. Nem os mais antigos viram isso”. Famílias com crianças vivendo em batelão (barcos de madeira) ficaram até 10 dias sem beber água limpa, expostos a diversas doenças de contaminação hídrica. De longe, é imensamente difícil dimensionar os prejuízos, das pessoas, do estado e da sociedade; mais ainda, imaginar o sofrimento de centenas de milhares de pessoas diante de situações que têm se tornado cada vez mais frequentes e extremas, não só na Amazônia, mas em diversas partes do Brasil e do mundo. Situações que são produto das mudanças no clima. Efeitos da mudança climática Ciclos de cheias e secas são normais na Amazônia. O que chama a atenção é a frequência e a intensidade cada vez maior que estão acontecendo. Nas duas primeiras décadas deste século, a Amazônia, que tem forte conexão com o clima global, tem sofrido frequentes eventos climáticos extremos. Quando não são as grandes inundações, são as secas severas que passam a ocorrer com mais intensidade e num espaço de tempo mais curto. O ecólogo Foster Brown, da Universidade Federal do Acre (UFAC), diz que a tendência é de que “perturbações climáticas” se intensifiquem nos próximos anos. As mudanças do clima na região, afirma ele, não são um fenômeno futuro, mas são vividas já agora. “O que você pode dizer é que a chance de uma inundação destas aumentou em função de mudanças climáticas. Teremos chuvas mais fortes, secas mais fortes”. Esse fato é bem conhecido da ciência climática. “O que a mudança climática faz – e fará cada vez mais no futuro, é exacerbar e aumentar a frequência dos fenômenos climáticos extremos”, afirma Carlos Nobre, pesquisador do INPE e INPA. Por sua vez, recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) e o relatório do clima do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para o Brasil preveem que “Eventos climáticos extremos, como chuvas intensas, vendavais, grandes secas devem ocorrer com mais frequência, intensidade e duração nos próximos anos em função das mudanças climáticas”. Desmatamento Também não há dúvida entre os pesquisadores que o desmatamento desenfreado na Amazônia é o principal responsável pelas “perturbações climáticas” que intensificam os extremos de secas e cheias na região. O Brasil, depois de reduzir e, cerca de 83% seu desmatamento entre os anos de 2004 e 2012 (de 27.8 mil Km2, para 4,6 mil km2), fruto de esforço conjunto de governos e sociedade, vê o desmatamento disparar novamente nos dois anos recentes, e chegar novamente na casa dos 10 mil km2. As consequências são várias e os prejuízos incalculáveis, incluindo perdas de investimentos e danos na economia do país. Portanto, é preciso retomar com urgência as ações bem-sucedidas – e a sociedade tem um papel importante nisso – para que o país retome o rumo da redução do desmatamento, das suas emissões de efeito estufa e, consequentemente, dos prejuízos dos prejuízos econômicos e sociais, favorecendo atividades econômicas compatíveis com a floresta e as comunidades que nela habitam. Como sabemos o clima não é uma coisa que só depende do tempo e da natureza. A atividade humana tem influência decisiva e precisamos olhar e agir sobre isso com urgência. Isak Kui não tem dúvida disso: ”o povo indígena vê que se a gente começa a destruir a natureza, um dia, futuramente, ela vai cobrar. Fica dessa maneira pela destruição dos próprios homens”. * Sérgio Guimarães é Diretor Executivo do GT Infraestrutura. O GT é uma rede com mais de 40 organizações que atua para garantir um desenvolvimento mais sustentável para o Brasil, tendo a preservação da Amazônia como um dos focos principais. Foto: cheia dos rios no Acre, por Marcos Vicentini/Fotos Públicas Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna O Clima Que Queremos, no Climatempo.