“A farra do desmatamento sem limites está encontrando no Clima um juiz que sabe contar árvores e que não esquece nem perdoa.” (Antonio Donato Nobre – Futuro Climático da Amazônia)
por Sérgio Guimarães*
No verão de 2021 o Acre vivencia uma situação dramática, sofre com três crises simultâneas: Covid-19, o estado atravessa seu momento mais crítico em relação à pandemia, com explosão no número de pessoas infectadas e mortas pela doença; enchentes, com milhares de desabrigados, cuidar dos contaminados se tornou ainda mais difícil, garantir alimento e água potável um desafio; surto de dengue, resultado do aumento das chuvas e inundações, nos dois primeiros meses do ano, mais de 8 mil pessoas já foram infectadas. Isso sem falar na crise migratória de pessoas que tentam deixar o país pela fronteira com o Peru, sendo impedidas pelo país vizinho.
Verão de cheias históricas
O Acre sofre uma cheia histórica que em fevereiro deixou mais de 130 mil pessoas desabrigadas, cerca de 15% da população do estado, além de contribuir para ampliar as outras crises. O problema atingiu vários grupos indígenas e ribeirinhos, que perderam suas casas e boa parte de suas plantações, aumentando a vulnerabilidade social já vivida por essas comunidades. Em Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do estado, o rio Juruá atingiu em 2021 o maior nível histórico, impactando 33 mil dos seus 89 mil habitantes. Sena Madureira, a terceira maior cidade acreana, teve 80% de seu perímetro urbano coberto pelas águas do rio Iaco, afluente do Purus. Mais de 27 mil (cerca de 60%) dos 46 mil habitantes foram atingidos.
O estado decretou estado de calamidade pública, após a cheia dos rios Acre, Juruá, Envira, Iaco e Purus. Tão grave é a situação, que uma rede de solidariedade foi formada no Brasil, liderada por instituições e personalidades para arrecadar recursos e apoiar a população atingida.
Isak Kui, liderança do povo Huni Kuī, o mais numeroso povo indígena do Acre, com aproximadamente 22 mil pessoas e um dos mais afetados, diz que é a maior a enchente do Rio Envira, no município de Feijó. “Diversas aldeias foram afetadas, principalmente nas produções de banana, macaxeira, milho, amendoim. Todas essas plantações foram cobertas pela água e tudo foi perdido. Nem os mais antigos viram isso”. Famílias com crianças vivendo em batelão (barcos de madeira) ficaram até 10 dias sem beber água limpa, expostos a diversas doenças de contaminação hídrica.
De longe, é imensamente difícil dimensionar os prejuízos, das pessoas, do estado e da sociedade; mais ainda, imaginar o sofrimento de centenas de milhares de pessoas diante de situações que têm se tornado cada vez mais frequentes e extremas, não só na Amazônia, mas em diversas partes do Brasil e do mundo. Situações que são produto das mudanças no clima.
Efeitos da mudança climática
Ciclos de cheias e secas são normais na Amazônia. O que chama a atenção é a frequência e a intensidade cada vez maior que estão acontecendo. Nas duas primeiras décadas deste século, a Amazônia, que tem forte conexão com o clima global, tem sofrido frequentes eventos climáticos extremos. Quando não são as grandes inundações, são as secas severas que passam a ocorrer com mais intensidade e num espaço de tempo mais curto.
O ecólogo Foster Brown, da Universidade Federal do Acre (UFAC), diz que a tendência é de que “perturbações climáticas” se intensifiquem nos próximos anos. As mudanças do clima na região, afirma ele, não são um fenômeno futuro, mas são vividas já agora. “O que você pode dizer é que a chance de uma inundação destas aumentou em função de mudanças climáticas. Teremos chuvas mais fortes, secas mais fortes”.
Esse fato é bem conhecido da ciência climática. “O que a mudança climática faz – e fará cada vez mais no futuro, é exacerbar e aumentar a frequência dos fenômenos climáticos extremos”, afirma Carlos Nobre, pesquisador do INPE e INPA. Por sua vez, recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) e o relatório do clima do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para o Brasil preveem que “Eventos climáticos extremos, como chuvas intensas, vendavais, grandes secas devem ocorrer com mais frequência, intensidade e duração nos próximos anos em função das mudanças climáticas”.
Desmatamento
Também não há dúvida entre os pesquisadores que o desmatamento desenfreado na Amazônia é o principal responsável pelas “perturbações climáticas” que intensificam os extremos de secas e cheias na região. O Brasil, depois de reduzir e, cerca de 83% seu desmatamento entre os anos de 2004 e 2012 (de 27.8 mil Km2, para 4,6 mil km2), fruto de esforço conjunto de governos e sociedade, vê o desmatamento disparar novamente nos dois anos recentes, e chegar novamente na casa dos 10 mil km2. As consequências são várias e os prejuízos incalculáveis, incluindo perdas de investimentos e danos na economia do país.
Portanto, é preciso retomar com urgência as ações bem-sucedidas – e a sociedade tem um papel importante nisso – para que o país retome o rumo da redução do desmatamento, das suas emissões de efeito estufa e, consequentemente, dos prejuízos dos prejuízos econômicos e sociais, favorecendo atividades econômicas compatíveis com a floresta e as comunidades que nela habitam.
Como sabemos o clima não é uma coisa que só depende do tempo e da natureza. A atividade humana tem influência decisiva e precisamos olhar e agir sobre isso com urgência. Isak Kui não tem dúvida disso: ”o povo indígena vê que se a gente começa a destruir a natureza, um dia, futuramente, ela vai cobrar. Fica dessa maneira pela destruição dos próprios homens”.
* Sérgio Guimarães é Diretor Executivo do GT Infraestrutura. O GT é uma rede com mais de 40 organizações que atua para garantir um desenvolvimento mais sustentável para o Brasil, tendo a preservação da Amazônia como um dos focos principais.
Foto: cheia dos rios no Acre, por Marcos Vicentini/Fotos Públicas
Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna O Clima Que Queremos, no Climatempo.