Representantes indígenas de três povos habitantes das margens do rio Teles Pires afirmam que após a implementação da Usina Hidrelétrica Teles Pires, a água, antes consumida diretamente no rio pelas populações, foi poluída e os sistemas de abastecimento instalados não são suficientes para garantir o acesso à água potável.
Os relatos foram feitos em audiência judicial desta quarta-feira (2), em evento que marcou a primeira vez em que os povos indígenas foram ouvidos pela Justiça desde a chegada das usinas hidrelétricas na região, há dez anos.
A audiência é um desdobramento de uma Ação Civil Pública (ACP) proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2014, um ano antes do início das atividades da usina.
A ACP pede a responsabilização da Companhia Hidrelétrica Teles Pires (CHTP) e do Governo Federal para o efetivo abastecimento de água potável aos povos da região.
Nos próximos dias, o juiz deve decidir o pedido de tutela de urgência para fornecimento emergencial de água potável feito pelo procurador da República, titular do Ofício de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais em Mato Grosso, Ricardo Pael.
Além disso, também foi autorizado o ingresso da Associação Indígena Munduruku Dace no processo caso todos os documentos necessários sejam providenciados e apresentados para o magistrado na próxima semana.
Com isso, os indígenas poderão ser representados de forma independente, direito garantido pelo artigo 232 da Constituição Brasileira. “Vai fortalecer nossas comunidades e lideranças”, afirma o presidente da entidade, Laureci Munduruku.
O procurador aponta que estamos em um momento importante para a participação dos indígenas nos processos judiciais e cita a ADPF 709, ajuizada no STF, para medidas de combate à covid-19, pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib).
“Os indígenas tem reconhecida pela Constituição sua capacidade de pedirem em juízo diretamente e isso não tem sido feito. O que tem acontecido nesses movimentos, como a ADPF e a Associação Dace pedindo o ingresso, é um movimento importante dos indígenas assumindo sua própria representação”, avalia Pael.
A defesa da CHTP tentou adiar o evento, mas teve o pedido negado pelo juiz federal Ciro Arapiraca. Para garantir o testemunho dos indígenas, os representantes se reuniram na sede do Ministério Público do Trabalho de Alta Floresta, município mais próximo das aldeias.
Impactos
São centenas de famílias de três povos – Apiakás, Kaiabi e Munduruku – impactadas diretamente pela usina, alvo da ação, e de mais três usinas hidrelétricas: UHE São Manuel, UHE Colíder e UHE Sinop.
No caso da UHE Teles Pires, os impactos diretos sobre o rio começaram a ser sentidos a partir de agosto de 2011, quando o Ibama concedeu a Licença de Instalação da obra.
Em 2019, os quatro empreendimentos passaram a impactar simultaneamente os povos indígenas e comunidades tradicionais na área e tornou o Teles Pires o rio mais impactado por grandes hidrelétricas na Amazônia.
“A água está morta, não é a mesma. Tudo pegávamos no rio, agora se não for do poço não bebemos água”, afirma o indígena Eroti Kaiabi, morador da aldeia São Benedito, localizada a cerca de 35 km da UHE Teles Pires. Ele foi uma das testemunhas ouvidas durante a sessão que demorou cerca de cinco horas.
“É sujo, tem um barro e dá gosto diferente, não dá pra tomar”, diz.
O acesso à água de qualidade para beber e tomar banho é apenas um dos efeitos das mudanças na água.
Valdir Munduruku afirma que a pesca foi severamente afetada. Além da poluição da água, os efeitos da barragem no pulso de inundação do rio, com agravamento das secas e cheias, alteram a reprodução dos peixes e limitam a navegação.
“Na época da seca, é uma seca mesma, não temos condições de navegar de barco nem de canoa. E quando ela enche, o peixe entra no igapó e aí à noite o rio seca e o peixe fica para desovar e morre.
Também quando a gente vai pescar, a gente joga a linha e passa alguns minutos a gente tira a isca e só vê a isca toda suja”, comenta.
“O peixe vai acabar. Não vai demorar muito não. Porque o peixe já tá diminuindo e eu dou uns cinco anos pra não ter mais”, complementa Eroti.
Locais sagrados aos indígenas ficaram sob risco, como as corredeiras de Sete Quedas, que sofreu inundação pela barragem da UHE. “Como colocar um valor nisso?”, questiona o indígena.
Para a audiência, eram previstos os testemunhos de dois representantes de cada povo. Os dois representantes dos Apiakás, entretanto, não puderam comparecer e foram substituídos, mas os depoimentos não foram colhidos.
“Das três etnias afetadas pela UHE Teles Pires, apenas os Munduruku e Kayabi foram ouvidos, pois, das seis testemunhas indicadas, as duas Apiakás não puderam comparecer por razões de saúde. Insistimos no depoimento para que todas as etnias sejam ouvidas pelo juiz. Ele deve decidir em breve se vai marcar outra audiência, bem como sobre o pedido de tutela de urgência para o fornecimento de água potável aos indígenas”, afirma o procurador Pael.
Morador da aldeia Mairowi, o indígena Leonardo Apiacá relata as mudanças sentidas pelo povo. “As crianças gostam de tomar banho no rio. E quando a gente toma água no rio, tem problema, dá diarreia. Antes nós bebíamos água do rio, antes da barragem, sem problemas porque era limpa”, diz.
As atividades da hidrelétrica impactam a Terra Indígena Apiaká e Isolados, área protegida de cerca de 982 mil hectares e onde há a presença de populações indígenas isoladas. A legislação brasileira prevê a proteção especial aos povos indígenas isolados, proibindo a construção de empreendimentos que coloquem suas áreas e modos de vida sob qualquer tipo de risco.
A área também faz sobreposição com a Reserva Ecológica Apiakás, unidade de conservação de proteção integral.
Sistemas de abastecimento insuficientes
De acordo com as testemunhas, os sistemas de abastecimento de água instalados em algumas das aldeias após a chegada das UHEs são precários e faltam recursos para manutenção.
Na aldeia São Benedito, por exemplo, o poço artesiano precisa de óleo para funcionar, o que não foi fornecido aos moradores.
Eiroti também afirma que os kaiabi não foram consultados sobre a construção do empreendimento e que a elaboração do o Plano Básico Ambiental (PBAI) da UHE Teles Pires não contou com participação dos indígenas, sendo apresentado apenas depois de pronto e sem contemplar questões importantes aos moradores.
Leonardo Apiaká afirma que os apiakás também não foram consultados sobre a construção da usina.
“Por isso não vamos parar de lutar pelos nossos direitos”, conclui e acrescenta que nem todas as aldeias indígenas possuem poços artesianos, permanecendo dependentes de idas às localidades vizinhas para ter acesso à água.
“O sistema é adequado para atender a demanda da nossa comunidade. Falta água encanada para as nossas comunidades e a gente busca solução para isso e melhorias desses equipamentos. Dá problema no funcionamento da bomba de água, falta combustível, não temos como manter”, afirma Laureci Munduruku.
A empresa alega a realização de uma perícia na água do rio após o início das atividades da usina em que é atestado o bom nível de qualidade.
Os indígenas, entretanto, afirmam que o teste nunca foi apresentado às comunidades e que a mudança no recurso é clara.
“A nossa luta é pelos nossos filhos, não é por nós”, finaliza Laureci.
Foto e texto: Assessoria de Comunicação do ICV