Incêndio florestal na Amazônia — Foto: MICHAEL DANTAS / AFP/04-09-2024

Projeto abre caminho para devastação sem limite

Por Renata Utsunomiya | Artigo publicado em O Globo.

Retirar a exigência de licenciamento é abdicar de qualquer compromisso com o futuro da Amazônia e do país

O Brasil será sede da Conferência do Clima (COP30), que acontece pela primeira vez na Amazônia, bioma que sofre com extremos climáticos, ao mesmo tempo que a redução do desmatamento é estratégica para as metas assumidas pelo país. É nesse contexto que avança o Projeto de Lei 2159/2021, com legisladores alegando que “agilizará” o licenciamento ambiental. O texto, porém, mostra que o real interesse não é melhorar, mas sim esvaziar sua função essencial: verificar a viabilidade ambiental dos empreendimentos e garantir a execução de obras e atividades com menor potencial de destruição sobre o meio ambiente e as populações locais.

A proposta de autolicenciamento, com a Licença de Adesão e Compromisso (LAC), é exemplo da expressão popular “a raposa cuidando do galinheiro”. A experiência da autodeclaração do Cadastro Ambiental Rural, existente desde 2012, é um alerta: a fragilidade do processo acabou facilitando a grilagem e o desmatamento na Amazônia. Aplicar a LAC para obras com “médio potencial de impacto” pode multiplicar obras com potencial de desastres, como Mariana e Brumadinho, que não estarão sujeitas a nenhum tipo de avaliação por órgão ambiental. As propostas da licença de operação com renovação automática, das licenças com menos etapas e do autolicenciamento para aumentar a capacidade de estradas abrem brechas à destruição ambiental.

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A BR-319 no Amazonas é um exemplo. Seu asfaltamento abriria espaço ao avanço do desmatamento, levando a um ponto de não retorno e colapso climático. O licenciamento tem sido importante para conter o avanço do desmatamento na Amazônia, associado à pecuária extensiva e à agricultura mecanizada. Retirar a exigência de licenciamento para essas atividades, como propõe o PL, é abdicar de qualquer compromisso com o futuro da Amazônia e do país.

O discurso dos relatores é padronizar o processo, mas o PL, na prática, quer deixar livre ao órgão licenciador (federal, estadual ou municipal) decidir a lista de projetos que precisam de licença ambiental, o que criaria descompassos nas normas entre regiões. O texto mostra uma tentativa de ignorar as características locais onde o projeto é planejado, como se uma nova estrada tivesse as mesmas consequências se fosse construída em São Paulo ou no Amazonas.

O contexto local é essencial para pensar melhores alternativas de traçados e localização de obras. Ao reduzir a distância do alcance dos impactos e conferir a responsabilização apenas pelos impactos “diretos” relacionados ao empreendimento — como se isso fosse algo simples de definir em territórios amazônicos —, o texto desconsidera especificidades e impactos cumulativos de diversas ameaças, como desmatamento, mineração ou grilagem. Ainda mais perverso é considerar apenas como afetadas terras indígenas e quilombolas com demarcação finalizada. Quantos territórios originários e tradicionais serão ignorados? Quantos povos serão violados em seu direito a consulta?

Propostas reais para melhorar o licenciamento ambiental seriam a contratação de técnicos e a qualificação dos órgãos ambientais. Boa prática seria realizar análises de impactos também nas políticas públicas e nos planejamentos regionais, com mais transparência e participação social.

A trágica ironia é que, com o discurso de “destravar”, o PL facilita o avanço do desmatamento e de grandes projetos de infraestrutura na Amazônia cujo efeito, por fim, afeta o equilíbrio climático e os rios voadores. São eles que abastecem as chuvas da principal região do agronegócio brasileiro. No fim, trata-se de um tiro no pé da bancada ruralista que impulsiona o PL: ao desproteger a floresta, mina-se a base natural que garante a produtividade agrícola e o futuro do país.

*Renata Utsunomiya, analista de políticas públicas de transporte na Amazônia no Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra), é doutora em ciência ambiental e bacharel em engenharia ambiental pela Universidade de São Paulo

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