O Grupo de Trabalho BR-319 do Ministério dos Transportes (Portaria 1.109 de 16/11/2023) lançou em 11 de junho um relatório sobre a viabilidade técnica e ambiental da rodovia com erros de avaliação, informações distorcidas e inverdades, que conduzem à conclusão final de que existem elementos suficientes para garantir a reconstrução e pavimentação do trecho do meio da rodovia BR-319. O documento também ignora a gama de informações desenvolvidas e compiladas ao longo dos anos pela academia e pela sociedade civil, onde se apontam uma série de preocupações ambientais, sociais e econômicas que necessitam ser consideradas.
A primeira questão é que a licença prévia (LP) concedida para o trecho do meio da BR-319 está judicializada (Ação Civil Pública nº 1001856- 77.2024.4.01.3200, que corre na 7ª Vara Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Amazonas) e é nula. Nos inúmeros pareceres e notas técnicas que compuseram o processo de licenciamento o próprio Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) alertou diversas vezes para a gravidade e a irreversibilidade das consequências ao meio ambiente representadas pelo asfaltamento. O Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) foi expressamente informado no processo de que não há governança ambiental capaz de fazer frente à magnitude do desmatamento que advirá do empreendimento.
Ao expedir a licença prévia, em 28 de julho de 2022, o então presidente do Ibama afrontou posicionamentos anteriores de técnicos do órgão que presidia, sem base legal ou científica. Como toda licença prévia, a LP para reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR-319, por princípio, é um atestado da viabilidade ambiental do empreendimento (art. 8º, inciso I, da Resolução Conama nº 237/1997). Se o histórico dos documentos constantes no processo de licenciamento – que deveriam ter subsidiado essa decisão — mostram claramente o contrário, logo, a LP é nula.
Um dos objetivos do GT BR-319 seria levantar informações a respeito da situação atual do empreendimento, assim como considerar a análise de estudos, projetos e relatórios de outros grupos que já tinham tratado do tema. De fato, o relatório cita estudos e levantamentos para a criação de Unidades de Conservação ao longo da rodovia, o Plano Básico Ambiental (PBA), elaborado recentemente, e o estudo do componente indígena (PBAi), entre outros documentos. Porém, ele não alcançou o propósito de consultar as partes interessadas para discutir e avaliar as propostas, visto que não houve estabelecimento de diálogo horizontal sobre o tema.
Na página 34, o relatório indica que um representante dos Parintintin, que vivem em territórios destacados para o Componente Indígena do Estudo de Impacto Ambiental (CI-EIA) da BR-319, relatou que seu povo seria favorável à rodovia e que houve aprovação dos estudos que foram apresentados em audiências públicas como requisito para emissão da licença prévia. No entanto, a informação foi negada pela liderança Raimundo Parintintin, que participou, sim, da audiência pública, mas na condição de coordenador-regional da Coordenação Regional Madeira, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Na página 37, o relatório também diz que “ao primar pela participação social, o Ministério dos Transportes mapeou e convidou 33 organizações da sociedade civil, representando os povos originários, comunidades da região amazônica e ativistas climáticos para discutir a viabilização da BR-319. Entre elas, o Greenpeace, o Observatório do Clima e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab). Os órgãos participaram das audiências públicas de forma presencial ou online. Contudo, não houve contribuições ou apontamentos sobre as questões envolvendo o empreendimento.”
O fato de um membro do Greenpeace Brasil ter participado de uma “audiência pública” como ouvinte de maneira alguma representa o endosso ou aprovação ao processo de “viabilização da BR 319” , mas apenas uma escuta ativa para entender como o processo estava sendo conduzido, fato esse corroborado pela não manifestação da organização durante a dita consulta.
O Observatório do Clima, por sua vez, optou por não fazer parte de um processo que visava a assegurar a continuidade do processo de concessão de licença de instalação para um empreendimento em relação ao qual a rede questiona judicialmente a validade da licença prévia.
A Coiab recebeu convite para participação em audiência pública por e-mail apenas um dia antes do evento, que ocorreu em Porto Velho (RO), sendo que a sede da organização fica em Manaus (AM). Em resposta ao convite, foi informada a impossibilidade de participar devido ao escasso tempo entre a data do convite e a realização da audiência, além da dificuldade em conseguir vaga em transporte aéreo naquele momento. De forma fantasiosa e leviana, o relatório menciona que não houve contribuições ou apontamentos envolvendo o empreendimento, mas sequer foi disponibilizado o link para participação on-line da Coiab.
O patente distanciamento do GT BR-319 da sociedade, público-alvo mais afetado pelo empreendimento, configura uma afronta ao princípio da participação, que garante o envolvimento da sociedade civil em todas as etapas das tomadas de decisões governamentais.
Cabe destacar que os vários povos que vivem no sul do Amazonas e que serão afetados pelo empreendimento têm seus próprios protocolos de consulta. É necessário que tais protocolos sejam respeitados e que as consultas sejam realizadas antes de qualquer medida concreta relacionada à reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da BR-319. O direito à consulta é irrenunciável. Caso ele não seja assegurado, inúmeras comunidades tradicionais serão colocadas em risco de desterritorialização, desmobilização e até mesmo de desaparecimento.
O relatório também atenta contra os princípios previstos no art. 37 da Constituição Federal, que exige que os atos da administração pública sejam transparentes e acessíveis à sociedade. A falta de divulgação adequada dos estudos, relatórios e contribuições recebidas pelo grupo de trabalho, bem como a ausência de participação pública efetiva ferem esses princípios. O site indicado como base de dados, estudos e registros não apresenta todas as memórias e listas de presença das reuniões do GT, o que demonstra insegurança sobre as conclusões que foram trazidas e sobre quem realmente participou.
É necessário destacar que um relatório técnico elaborado em 90 dias sobre uma questão tão complexa e duradoura quanto a pavimentação da BR-319 levanta sérias questões sobre sua validade e abrangência. A rapidez na elaboração de um
documento sobre um tema com tantas implicações ambientais, sociais e econômicas e a carência de legitimidade representativa da sociedade civil organizada, de representantes comunitários, indígenas e de comunidades tradicionais evidencia uma análise superficial e incompleta, comprometendo a aplicação do princípio da proporcionalidade e dos princípios da prevenção e da precaução, que exigem análise detalhada e cuidadosa para evitar danos socioambientais irreparáveis.
Pleitos e considerações
As organizações integrantes das redes supracitadas ressaltam que não são contra a reconstrução e pavimentação do trecho do meio da BR-319 quando houver governança ambiental na região suficiente para a prevenção e o controle eficaz do desmatamento, principal efeito do asfaltamento dessa estrada, apontado há anos pelos especialistas no tema e pelo próprio Ibama no processo de licenciamento do empreendimento.
Reconstruir e pavimentar uma rodovia como a BR-319, sabendo que o Estado não tem a presença necessária na região, impactará negativamente, de forma intensa, o conjunto de ações relacionadas ao combate ao desmatamento e às queimadas, à proteção de Unidades de Conservação e ao enfrentamento das mudanças climáticas. Isso sem falar nos impactos em outras políticas públicas, como a proteção dos povos indígenas isolados, sistematicamente ignorados nas decisões a respeito da rodovia e em medidas que possam garantir segurança de seus direitos, como a demarcação de suas terras, bem como no que diz respeito ao uso e ocupação do solo, no que tange principalmente à sua transformação.
As organizações signatárias defendem um processo de tomada de decisão sobre o empreendimento que respeite a legislação ambiental brasileira e priorize um licenciamento ambiental inclusivo, em consonância com os direitos legais constituídos das populações impactadas pelo empreendimento, além de medidas que promovam a sustentabilidade socioambiental do Interflúvio Madeira-Purus. Para tanto, é necessário fomentar o protagonismo, a governança e a autonomia dos moradores de territórios locais, além do fortalecimento da presença dos órgãos públicos responsáveis pela gestão e proteção da região. O amplo envolvimento dos órgãos de Estado responsáveis pela fiscalização ambiental, pela gestão das Unidades de Conservação e pela regularização territorial e fundiária, de maneira a observar e respeitar a proteção ambiental e os direitos dos povos e comunidades tradicionais potencialmente afetados, também é de suma importância.
A “otimização” de uma estrutura viária, como uma rodovia, requer equilíbrio cuidadoso entre os benefícios econômicos, de mobilidade, e a proteção dos recursos naturais e dos povos e comunidades locais. A BR-319 exige um esforço multidisciplinar que envolve engenharia, meio ambiente, aspectos sociais e econômicos, além do cumprimento rigoroso das normas legais e regulamentares. Esse processo deve ser conduzido com a máxima transparência e participação pública para garantir que os benefícios do projeto sejam maximizados enquanto os impactos negativos são minimizados. A consideração desses princípios socioambientais assegura a conformidade legal e regulatória, promove um desenvolvimento mais sustentável e socialmente justo, o que beneficia a população da região, as futuras gerações, bem como a existência da floresta e de seus atributos associados – sejam serviços ecossistêmicos ou a vida em si de seus multibiodiversos habitantes.
Para tanto, é necessário que se assegurem ações concretas de consolidação da governança ambiental na região, antes de qualquer liberação de licença. Assim, poderá ser evitado na BR-319 o que aconteceu no eixo da rodovia BR-163 (Cuiabá Santarém), onde se avançou com as obras de pavimentação sem a implementação do Plano BR-163 Sustentável, levando ao agravamento de problemas como desmatamento, exploração de madeira ilegal, grilagem de terras públicas, violência no campo, garimpo, déficit de políticas públicas sociais nas áreas de saúde, segurança pública, entre outros reveses.
O governo federal necessita conduzir um planejamento regional – com recursos, cronograma e capacidades institucionais – incluindo ações efetivas para enfrentar os riscos e problemas existentes, bem como criar condições efetivas de governança e monitoramento territorial, antes de qualquer decisão relativa à emissão de licenças para a reconstrução e pavimentação do trecho do meio. O referido plano deve incluir ações a serem iniciadas antes das obras, com metas claras. Ademais, o planejamento deve mostrar como as ações propostas se alinham com o Plano Nacional sobre Mudança do Clima e o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), entre outras iniciativas estratégicas do Poder Público.
Não há por parte das organizações que assinam esta nota qualquer intenção de impedir o desenvolvimento da região. O que se pede é o respeito à legislação ambiental e aos mecanismos de consulta às populações atingidas e a garantia de que a obra seja realizada em contexto de fortalecimento prévio da governança e do monitoramento ambiental local.
Por fim, deve ser lembrado que, no âmbito federal, há planejamento específico voltado à segurança pública na Amazônia, haja vista o aumento da criminalidade, com a presença de facções e forte ligação dessas com os crimes ambientais, são eles: o Programa Estratégico de Segurança Pública da Amazônia (PESPAM); e os Planos Táticos Integrados de Segurança Pública para Amazônia (PTI Amazônia), no âmbito do Programa Amazônia: Segurança e Soberania – Programa Amas, com diretrizes definidas pela Portaria MJSP nº 503/2023. Em 2023, foi anunciado o investimento de R$ 2 bilhões para o programa Segurança e Soberania na Amazônia Legal (Amas). Segundo o artigo 2º do Decreto nº 11.614/2023, o Amas é destinado ao desenvolvimento de ações de segurança pública que observem as necessidades e as especificidades dos estados que compõem a Amazônia Legal com vistas à redução de crimes ambientais e conexos.
Manaus, 21 de junho de 2024.