Infraestrutura e justiça socioambiental: demanda pertinente e urgente

Aos 100 dias do novo governo, sociedade civil cobra mecanismo mais transparente e participativo para escolha de projetos de infraestrutura prioritários Andreia Fanzeres* Em aproximadamente três meses, com mais de 1800 pedidos de audiência (atualmente numa média de 50 por dia), a ministra do Meio Ambiente e das Mudanças do Clima (MMA), Marina Silva, abriu espaço na agenda para receber uma delegação do Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra) às vésperas da semana que marca o balanço dos 100 dias do novo governo federal.  Horas mais tarde, no Palácio do Planalto, o grupo apresentou à Secretária-Executiva da Secretaria Geral da Presidência da República (SG/PR), Maria Fernanda Coelho, e a assessores da Casa Civil propostas da Carta Aberta ao Novo Governo: Infraestrutura para o Desenvolvimento com Sustentabilidade Socioambiental, enviada semanas antes e assinada por mais de 90 entidades, entre elas redes e organizações de base, que atuam na área socioambiental no Brasil.  Os dois encontros pautaram a urgência de se definir critérios socioambientais, aprimorar a transparência e incorporar a posição da sociedade civil no processo de escolha dos projetos de infraestrutura que são considerados prioritários  para o governo. Ou seja, os que estarão no Plano Plurianual (PPA) e no Programa de Parcerias e Investimentos (PPI). E, de quebra, ainda resolver o que fazer com aqueles que já foram escolhidos em gestões passadas, que avançam rumo ao licenciamento ambiental e carregam consigo um altíssimo custo socioambiental, contradizendo os compromissos ambientais e climáticos anunciados por Lula desde antes da posse.  Uma das propostas apresentadas tanto ao MMA como à SG/PR é a constituição de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para a elaboração de diretrizes socioambientais na fase pré-planejamento. Na prática, o recado que a delegação quis dar é que antes da escolha dos projetos de interesse do governo, é preciso olhar para o território, para o direito das comunidades que estão lá, e para as suas reais necessidades de infraestrutura, o que inclui saneamento básico, acesso à energia, transporte de passageiros, conexão com a internet, entre outros. E, no caso de grandes obras, tornar concreta a tão sonhada transversalidade entre os ministérios.  “Acreditamos na capacidade persuasiva do Ministério do Meio Ambiente. A sociedade civil quer ajudar”, disse o professor Ricardo Abramovay, da Universidade de São Paulo (USP). Marina Silva respondeu citando “O Carteiro e o Poeta”, de Pablo Neruda. “Como a poesia, boas ideias não são de quem as tem, mas de quem precisa delas. E este ministério precisa muito”, concordou.  Para o GT Infra, não bastará restabelecer os conselhos extintos ou paralisados pela gestão Bolsonaro. “Já realizamos um mapeamento de mais de 200 projetos do PPA e do PPI para a Amazônia Legal em diferentes estágios e temos apontado a ausência de um marco institucional para analisar e discutir o risco socioambiental, viabilidade econômica e alternativas na fase pré-projeto. O Tribunal de Contas da União (TCU) chegou à mesma conclusão quanto ao Plano Nacional de Logística (PNL), que não trabalha com alternativas. Isso é uma preocupação enorme”, afirmou André Ferreira, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Adriana Portugal, do Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas (IBRAOP) colocou à disposição do MMA e da SGPR um estudo que propõe diretrizes para auditoria de riscos e impactos socioambientais de planos, projetos e execução de investimento em infraestrutura, muito úteis para orientar a decisão sobre o planejamento dos projetos estratégicos. “Podemos induzir melhorias no comportamento da administração pública em obras de infraestrutura sabendo o que é preciso cobrar antes do licenciamento, definindo exigências na fase de projetos e evitando problemas futuros, como paralisação das obras”, explicou.  Uma avaliação no mínimo mais criteriosa sobre o quão estratégicos devem ser as obras capitaneadas pelo governo federal poderia evitar o avanço de projetos como o da UHE Castanheira, no norte de Mato Grosso. Prevista no PPI, a usina promete entregar menos de 100 MW de energia firme e foi considerada inviável do ponto de vista econômico por um estudo liderado pela Conservação Estratégica Brasil (CSF), ou seja, trará prejuízo aos futuros investidores. E está prestes a ser licenciada sobre uma área de uso e ocupação de cinco povos indígenas, além de pescadores e agricultores familiares. A pergunta que não quer calar é: por que um projeto como este segue sendo prioridade para o PPI?  O uso do dinheiro público para obras que não levam nada a lugar nenhum está longe de ser o principal problema de projetos escolhidos a partir de processos pouco transparentes e com forte viés político. “Na minha região, não podemos mais plantar, as galinhas não botam mais ovo, os pássaros e abelhas sumiram, as crianças não brincam no terreiro e só dormem à base de remédio. A gente tem problema de estresse escutando esse barulho 24 horas por dia. É um avião que nunca pousa”, sentenciou Roselma Oliveira, da comunidade de Sobradinho, em Pernambuco, ao se referir a uma turbina eólica instalada a 160 metros de sua casa, pertencente ao Parque Eólico Santa Brígida (PE). Tanto no MMA como na SGPR, seu relato emocionou e exemplificou um problema urgente do licenciamento ambiental. “Temos que aprimorar a norma do Conama sobre eólicas. Essa quantidade de problemas não pode se enquadrar em baixo impacto ambiental”, avaliou André Lima, secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Territorial do MMA.  Segundo ele, mesmo que a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) ainda não seja um instrumento obrigatório, é preciso garantir análises de alternativas e antecipar a governança socioambiental no território antes da instalação dos empreendimentos de infraestrutura. Maria Fernanda Coelho, secretária-executiva da SGPR, reconheceu a defasagem na legislação sobre eólicas e assegurou que o tema será tratado como prioridade no governo. De forma mais ampla, sugeriu que a Comissão Nacional para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (CNODS), sendo reativada pelo atual governo, poderia ser um espaço para discussão das propostas apresentadas na Carta Aberta.  Ela explicou, ainda, que novos espaços para participação da sociedade civil estão sendo criados dentro de cada ministério e também uma mesa de diálogo específica sobre energia.

ARTIGO: As quatro dimensões da infraestrutura na Amazônia

Natureza, cuidado, serviços e organização coletiva precisam ser considerados para um desenvolvimento que seja bom para o meio ambiente e para as pessoas Alexandre Mansur Quando pensamos em infraestrutura, nos vem à cabeça grandes obras de tijolo, concreto e aço, como pontes, estradas, redes de transmissão de energia elétrica, aeroportos, usinas e assim por diante. Grandes obras de engenharia civil, que gastam muito dinheiro e são muito visíveis. Mas, infraestrutura é muito mais que isso. Os projetos que as pessoas precisam, especialmente, vão muito além desses que causam grandes transtornos e, na maioria das vezes, deixam poucos benefícios para as populações locais. Pensando em mudar essa lógica, o economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Abramovay, defende, em seu livro “Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia”, um novo conceito de infraestrutura para a região. Numa abordagem contemporânea, ele apresenta quatro dimensões estratégicas para as mudanças necessárias no bioma, mas que podem ser aplicadas ao desenvolvimento do Brasil como um todo: natureza, cuidado, serviços e organização coletiva. Falaremos mais sobre cada uma delas nos próximos parágrafos. O trabalho responde a uma solicitação do GT Infraestrutura em torno da pergunta: “Quais as infraestruturas necessárias à melhoria da qualidade de vida das pessoas na Amazônia e a suas atividades produtivas vinculadas ao uso sustentável da biodiversidade?” O GT é uma rede de mais de 50 organizações focada no estudo e debate da infraestrutura com justiça socioambiental. Atuando há mais de dez anos, o grupo tem se dedicado a apontar alternativas que eles chamam de infraestrutura que queremos, que é justamente o caminho para o qual essas novas dimensões apontam. Para começo de conversa, Abramovay defende a ideia de que a natureza é infraestrutura, conceito alinhado com o de soluções baseadas na natureza. “A floresta precisa ser encarada como a mais importante e promissora infraestrutura para o desenvolvimento sustentável”, afirma o pesquisador. Já existem bons projetos que levam isso em conta, mas, eles ainda são vistos pelos mercados financeiros como de maior risco que os convencionais, consequência do argumento ainda muito difundido de que a floresta é um obstáculo a atividades econômicas geradoras de renda, especialmente na Amazônia. É urgente combatermos essa lógica. Entre as soluções apontadas pelo pesquisador estão ações como delimitar e respeitar as áreas protegidas — que, atualmente, se encontram sob agressão permanente. Também precisamos fortalecer iniciativas para o uso sustentável da biodiversidade, como o Selo Origens Brasil, que organiza a oferta de produtos vindos do trabalho de comunidades para novos mercados. Além disso, não podemos nos esquecer que as soluções baseadas na natureza devem estar também nas cidades, onde vive a maioria das pessoas. A segunda dimensão é o cuidado, que ganhou repercussão global quando o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, lançou um plano de investimentos alinhado a essa ideia, que considera como infraestrutura atividades que não se ligam a megaprojetos, mas que têm efeitos duradouros sobre a organização social. No Brasil, as dificuldades de conexão e precariedades no sistema de ensino público e dos sistemas de saúde ainda são barreiras importantes para se sair do básico, especialmente em regiões fora do eixo Sul-Sudeste, como é o caso da Amazônia. Nesses lugares, as ONGs, institutos de pesquisa e universidades são hoje responsáveis por parte importante da infraestrutura para a economia do cuidado, procurando métodos e técnicas adequadas às particularidades da região. Reconhecê-las e fortalecê-las é um excelente começo. Os dispositivos básicos da vida contemporânea, como internet de qualidade, mobilidade, saúde, educação e saneamento são o que Abramovay chama de serviços, a terceira dimensão. Especialmente na Amazônia, até a garantia de energia elétrica, dispositivo básico para a conservação de processamento de produtos, ainda é um desafio. Mas, já existem várias iniciativas, especialmente de organizações locais, que nos mostram soluções criativas e adaptadas à realidade das regiões. O Projeto Saúde & Alegria é uma referência, reconhecida pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas), com seu modelo de atendimento com base em embarcações providas de profissionais de saúde, laboratórios e equipamentos, que visitam regularmente comunidades no Pará. Felizmente, não faltam outros e temos muito o que aprender olhando para eles. A última dimensão, que Abramovay chama de organização coletiva, diz que devemos considerar como infraestrutura imaterial “o conjunto de organizações e instituições capazes de estimular a formalização dos negócios e a atuação política de associações e cooperativas, bem como a inserção de seus produtos nos mercados a partir de marcas de qualidade que valorizem seus atributos”. Como um dos desafios, o professor destaca que a criação de marcas de qualidade ainda é um processo que envolve profunda transformação social nas relações das comunidades com os mercados, incluindo a capacidade local de gerir os inevitáveis conflitos internos. No entanto, se considerarmos a cultura material e imaterial dos povos da floresta como uma infraestrutura prioritária, fortalecemos as instituições que atuam localmente e treinarmos quem assessora essas comunidades, temos tudo para fazer dar certo. Além dos caminhos que apresentei aqui, o livro traz uma série de outras recomendações para que as novas dimensões sejam, de fato, incorporadas ao planejamento de obras de infraestrutura na Amazônia. Não faltam caminhos, mas precisamos começar o quanto antes para, de fato, mudarmos a lógica e começarmos a pensar obras que, não apenas parem de acelerar a destruição de nossos biomas mas, principalmente, deixem a vida das pessoas melhor. Esse é o tipo de “progresso” que precisamos e queremos. Para a Amazônia e para o Brasil todo. Este artigo foi publicado, originalmente, no Um Só Planeta. Foto: depositphotos

ARTIGO: Precisamos olhar para as cidades médias da Amazônia

É mais do que hora de repensar o papel urbano na organização do imenso território amazônico Por Fabio Ferraz e Claudio de Oliveira* Os modelos de produção e consumo próprios da economia moderna – ao longo dos últimos 250 anos – se, por um lado, melhoraram o padrão de vida dos seres humanos, por outro, geraram um mapa de desigualdades socioespaciais e impactaram significativamente o meio ambiente em diversos níveis, degradando ecossistemas e causando um aumento na temperatura global com mudanças climáticas imprevisíveis. As chamadas novas economias, que recebem tantos nomes – circular, de baixo carbono, verde, azul, bioeconomia, compartilhada e colaborativa, de negócios e impacto sociais, digital e do conhecimento –, se orientam por competitividade, inovação e empreendedorismo, mas também por princípios de sustentabilidade, governança e responsabilidade social e nos oferecem novas perspectivas para equilibrar conservação ambiental, geração de valor e qualidade de vida às populações. No entanto, para mudar o rumo da história do planeta que nos anuncia uma sucessão de tragédias precisamos, urgentemente, modificar estruturas e mecanismos sociais e econômicos que reproduzem os atuais modelos insustentáveis (business as usual). Mas mudar abruptamente ou por meio de ajustes? Por uma ampla, geral e irrestrita revolução ou por reformas homeopáticas? São diversas as dimensões dessas mudanças: socioculturais, econômico-produtivas, político-institucionais, científico-tecnológicas, educacionais e simbólico-ideológicas. Isso implica em mudanças de currículos e projetos pedagógicos, mas também em regulações. Implica em esforços de governança multinível, tanto quanto em compromissos pessoais e locais. Quando falamos em multinível queremos dizer que há estruturas governamentais e privadas que devem atuar sinergicamente. A Amazônia e seu modelo de desenvolvimento estão no centro desses dilemas: como equilibrar conservação ambiental, geração de trabalho e renda e bem-estar social no seu imenso território? É importante considerar que grande parte da população da Amazônia Legal vive em cidades e que as cidades são instrumentos de ordenamento e de gestão do território – de recursos econômicos, de unidades de conservação, de apoio a populações ribeirinhas e povos originários, de toda a infraestrutura para o desenvolvimento sustentável. Um novo modelo de desenvolvimento para Amazônia – com justiça socioambiental – deve necessariamente dar à rede urbana e, mais especificamente, às cidades médias, um papel de destaque na medida em que são essas que podem servir de apoio às políticas públicas e aos fluxos econômicos, de ligação entre as metrópoles (regionais e/ou nacionais) e as áreas isoladas ou de mais difícil acesso. Para isso, obviamente, tais cidades e municípios precisam ter suas capacidades institucionais, administrativas e financeiras fortalecidas para que possam desempenhar um papel de liderança na governança multinível sobre o território. Nesse processo, a participação da sociedade civil organizada de base local é condição sine qua non como forma de democratizar as políticas públicas urbanas e ambientais e de assegurar os interesses de suas populações. No momento em que o Governo Federal se abre à proposição de novas políticas públicas – em especial os Ministérios do Meio Ambiente, das Cidades, do Desenvolvimento Regional e dos Povos Originários – é mister que coloquemos em discussão uma nova perspectiva de convívio harmônico das populações da Amazônia com seu bioma, em que as atividades econômicas e culturais e os serviços ambientais beneficiem aos amazônidas, ao país e a todo o Planeta Terra. *Fábio Ferraz e Claudio de Oliveira são membros do GT Infraestrutura, uma rede de mais de 50 organizações engajadas em prol de um Brasil com mais justiça socioambiental Este artigo foi publicado, originalmente, no Um Só Planeta. foto: depositphotos

ARTIGO: Você sabe o que é bom pra mim? E eu, não!?

A democracia exige consulta, participação popular e comum acordo. É na tirania que se impõe a vontade de um ou de poucos a despeito da população, o amazônida deve falar por si Claudio de Oliveira* Você já pensou se uma pessoa ou empresa resolvesse fazer uma obra no quintal da sua casa e sequer lhe consultasse sobre o assunto? Se você, por acaso, já construiu uma casa, sabe bem a importância de um projeto arquitetônico. Nem todo mundo tem a possibilidade ou condição de contratar um arquiteto, mas nunca compraria tijolo, cimento e piso sem calcular a necessidade. Em uma casa familiar, os proprietários conversam antes de decidir quais são suas necessidades e prioridades. O arquiteto, quando contratado, vai conversar com eles para entender as demandas, quantos filhos têm, se recebem hóspedes, quanto tempo passam no quarto, como querem o banheiro, se a cozinha vai ser integrada à sala e se a casa terá quintal. São tantas as variáveis que é inconcebível construir antes de planejar, mas, antes disso, vem a decisão, que precede o planejamento. Quando se trata de uma obra de infraestrutura não é muito diferente. Primeiro, precisamos definir o que vamos fazer, o que de fato precisamos. Na sequência, iniciamos o planejamento. O problema é que as obras na Amazônia, há décadas, são decididas e planejadas por Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Muitas vezes são executadas sem a devida consulta livre, prévia e informada (CLPI), exigência da Organização Internacional do Trabalho, em sua convenção 169, assinada e incorporada ao ordenamento brasileiro. Quando falamos em “consulta livre”, entendemos que as populações indígenas ou tradicionais podem ser contra ou a favor da obra. “Prévia” quer dizer que essa consulta deve ocorrer antes de tomada a decisão. E “informada” é para garantir que a população consultada saiba exatamente o que está em jogo, numa linguagem acessível a ela. Quando olhamos para o protocolo padrão no governo, vemos decisões sendo legitimadas depois de já terem sido tomadas internamente. Não há CLPI realmente. Isso sem falar que ainda deveríamos acrescentar, nas consultas, a realidade das cidades. Ou construir uma dúzia de portos em Miritituba não impacta a vida da população urbana? O GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental atua há dez anos capacitando organizações da sociedade, movimentos de base e comunidades para entender melhor o que está em jogo no cenário da energia e do transporte. Há alguns anos, passamos a estudar e promover um entendimento no âmbito das cidades amazônicas, em temas como mudanças climáticas, adaptação, saneamento básico, desenvolvimento sustentável. A pergunta norteadora dos estudos é um mantra dentro da rede: qual é a infraestrutura que queremos? E a resposta tem guiado nossas ações: uma infraestrutura PARA a Amazônia e não NA Amazônia. No ano passado, reunimos quase cem pessoas de 40 organizações, movimentos sociais e indígenas, em Alter do Chão, no Pará, ocasião em que ficou clara a importância da floresta na vida das pessoas. Presente no encontro, Maura Arapiuns, secretária do Conselho Indígena de Tapajós Arapiuns, foi enfática ao dizer: a maior infraestrutura da Amazônia é a floresta em pé. Pensando nisso e em consonância com a demanda local, o GT Infra apresentou à equipe de transição o que espera do novo governo no quesito infraestrutura. Não se trata de dizer o que não queremos, mas daquilo que queremos. Queremos um desenvolvimento sustentável que valorize os arranjos produtivos locais e os produtos da sociobiodiversidade. Queremos que as pessoas que moram na Amazônia tenham saneamento básico, hospitais e condições de escoar os seus produtos. Queremos que as inúmeras instituições de ensino da região tenham verba para estudar a realidade local e sejam consultadas antes das tomadas de decisão, para a construção do planejamento. Queremos que as populações locais tenham voz e vez. Queremos que as pessoas e movimentos sociais de base sejam capacitados para atuarem em cooperativas (se quiserem), que alcancem o mercado brasileiro e o mercado externo, que tenham acesso a crédito. Queremos uma infraestrutura do cuidado com as pessoas. Queremos incentivar a mini e microgeração distribuída que melhor atende à realidade amazônica. Queremos água potável e tratamento de esgoto que contemple as cidades amazônicas, mas também as comunidades isoladas, que dão exemplo de maneiras sustentáveis de garantir esses direitos. Queremos os rios limpos e livres, como fonte de vida. Queremos a substituição de toda a geração de energia a base de óleo diesel na Amazônia. Queremos o BNDES valorizando a sociobiodiversidade. Queremos as instituições financeiras sendo cobradas por investimentos em projetos que geram impacto negativo na vida das pessoas, que as salvaguardas não sejam apenas uma maquiagem verde ou formas de fazer greenwashing. Trabalhamos para que a população conheça os caminhos para pleitear os seus direitos, seja na prefeitura, no governo, na União, seja com auxílio do Ministério Público Estadual e Federal, da Defensoria Pública, dos Tribunais de Contas. A participação popular, a governança e a transparência fazem parte do regime democrático e o processo de capacitação para incidência deve ser permanente, trata-se do “I” da CLPI. Uma boa referência para pensar o desenvolvimento sustentável são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Eles trazem parâmetros, metas e indicadores. Mas essas diretrizes precisam ser adaptadas à realidade amazônica por sua população, pois foram pensadas fora do país. Ainda que tenham envolvido um grupo maior de pessoas e organizações em relação aos seus antecessores, os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), não são infalíveis ou passíveis de implantação automática. O GT Infraestrutura vê com bons olhos o espaço para diálogo, a abertura de departamentos e secretarias, na estrutura federal e se coloca à disposição para construir o diálogo necessário antes das tomadas de decisão e planejamento. *Claudio de Oliveira é membro da secretaria executiva do GT Infraestrutura, uma rede de mais de 50 organizações engajadas em prol de um Brasil com mais justiça socioambiental Este artigo foi publicado, originalmente, no Um Só Planeta (25/1/23) imagem: depositphotos

“Grande casa do bem comum”: floresta é a principal infraestrutura da Amazônia

 Carta de lideranças reunidas em Alter do Chão defende um desenvolvimento para as pessoas e com o meio ambiente íntegro para a construção de um novo Brasil a partir de 2023 Sérgio Guimarães* A Amazônia é a maior fábrica de vida do planeta e que zerar o desmatamento é fundamental para a sobrevivência de suas sociedades humanas. Essa é a percepção de povos indígenas que habitam a Amazônia há milhares de anos e que vem sendo confirmada pela ciência moderna. O que está acontecendo, no entanto, é o contrário. No ano passado, pela primeira vez desde o início das medições do INPE, em 1988, a Amazônia teve o quarto ano seguido de aumento na devastação. Somente no mês de junho deste ano, a área derrubada chegou a 1.120 km², um recorde histórico. Os dados mostram que essa é a terceira alta consecutiva sob Bolsonaro, evidenciando um projeto de governo que incentiva a ilegalidade na maior floresta tropical do mundo, ignorando alertas de cientistas, povos indígenas e comunidades tradicionais, que sabem melhor do que ninguém como preservá-la. Os conhecimentos desses guardiões da floresta precisam ser valorizados e o primeiro passo é ouvir os que eles têm a dizer. Nesse sentido, na primeira semana de julho, organizações vinculadas ao GT Infraestrutura e redes aliadas estiveram reunidas com movimentos sociais, em Alter do Chão, no Pará, buscando respostas e delineando ações concretas frente a velhos e novos desafios da região. A infraestrutura, uma das áreas que mais impulsionou o desmatamento e conflitos socioambientais nas últimas décadas, esteve no centro do debate, que deixou claro que a floresta é a principal infraestrutura da Amazônia.  Construímos conjuntamente a Carta de Alter, um documento com propostas para a Amazônia que visa contribuir com os debates do processo eleitoral, bem como com o planejamento e a implementação de políticas públicas a partir de 2023. Nossas propostas têm como base, além da contribuição direta de diversas organizações e movimentos sociais da região presentes, um novo estudo, conduzido pelo professor Ricardo Abramovay da USP, lançado durante o evento. O trabalho, que contou com uma escuta a lideranças da região, é uma reflexão sobre as infraestruturas necessárias à melhoria da qualidade de vida das pessoas e de suas atividades produtivas vinculadas a uma economia sustentável na região. Numa visão contemporânea, o professor apresenta novas dimensões essenciais para repensar o assunto: o cuidado com a natureza, com as pessoas, uma nova economia e a valorização da organização social da região. Em lugar das grandes obras, que contribuem para a destruição da floresta e costumam deixar deixar transtornos para os povos que vivem na região, sem deixar  benefícios, é urgente desenvolver outros projetos. Baseados em uma infraestrutura que considere, prioritariamente, o respeito e a promoção de arranjos socioprodutivos capazes de conviver com a floresta e garantir a quem vive nela o acesso a direitos básicos como saúde, educação, energia e saneamento. O conjunto de propostas começa deixando claro que é preciso retomar as ações de comando e controle, acabando com a cultura onde o “ilegal” é “legal” e garantir a proteção de quem luta para defender a floresta (há centenas de pessoas ameacadas de morte na região). As recentes mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips estão longe de serem casos isolados e fazem parte de uma política de silenciamento de lideranças sociais.  Esse é um momento especial, onde a sociedade brasileira, através do processo eleitoral, está debatendo propostas que possam mudar a realidade dramática que vive a população da região, que hoje convive com a violência, a devastação ambiental e os piores índices sociais do Brasil. A carta  traz propostas nas áreas de energia, cidades e transporte, passando também por temas, como o garimpo, uma das atividades mais destruidoras da atualidade, que precisa ser substituída em benefício de outras cadeias produtivas, capazes de conviver com a floresta. A natureza é a extensão do nosso viver, afirmaram os povos tradicionais e comunidades presentes. Só vivenciando esse vital ensinamento, teremos condições de avançar na construção de políticas e projetos que promovam uma agenda de desenvolvimento sustentável, justo e participativo. *secretário executivo do GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental, rede focada no estudo e debate da infraestrutura com justiça socioambiental em busca de uma economia da sociobiodiversidade na região amazônica. Este artigo foi publicado, originalmente, no Um Só Planeta. Foto: deposiphotos

Como construir uma economia capaz de conviver com a floresta

Precisamos conter a economia da destruição e iniciar a devida transição ecológica Danicley de Aguiar* Basta uma passada rápida pelo noticiário para que qualquer um perceba que a Amazônia passa por um momento difícil e está gravemente ameaçada. Mas, mais que falar de todos os problemas, precisamos começar a apontar caminhos de para onde a gente quer ir. Como vamos construir uma economia capaz de conviver com a floresta? A resposta é complexa mas, ao mesmo tempo, simples: substituir esse modelo de desenvolvimento econômico que temos na Amazônia hoje. Um modelo que impõe à Amazônia a condição de província, mineral, energética ou agropecuária. É urgente rompermos com a lógica que há mais de quatro séculos condiciona o desenvolvimento regional a uma matriz extrativista que aprisiona a Amazônia aos interesses externos e condena sua população a conviver com os piores índices sociais do país, subjugando gerações a uma eterna espera pelo desenvolvimento. Entre os muitos desafios postos, um deles tem ganhado notória atenção da mídia recentemente e está intimamente ligado a todos os demais: a mineração. Em franco processo de expansão na Amazônia, a matriz mineral precisa ser superada e substituída por outros vetores econômicos capazes de promover o desenvolvimento de uma matriz econômica fundada no convívio com a floresta, no respeito aos direitos e na superação da pobreza. Não será com o aprofundamento da mineração que libertaremos a Amazônia da lógica que aprisiona ao eterno subdesenvolvimento que alimenta a destruição das florestas e dos muitos modos de vida que sustentam a convivência dos povos e comunidades tradicionais com seus territórios. Na bacia do Tapajós, já é perceptível que está em curso um processo de territorialização de uma matriz mineral que tende a substituir os garimpos por grandes empreendimentos de mineração, em grande medida financiado com capital internacional que transferem as riquezas minerais para fora da região sem entregar o tão esperado desenvolvimento da região. Para além da transferência da riqueza regional, esse processo ignora os milhares de garimpeiros que em pouco tempo devem se tornar a principal força a pressionar as dezenas de terras indígenas e unidades de conservação que contribuem para a manutenção do equilíbrio ecológico da região e do bioma amazônico. A questão energética na região da Amazônia como um todo é outro desafio que precisa ser devidamente entendido e equacionado sob a luz dos interesses regionais e da conservação do bioma; não havendo mais espaço para um modelo energético baseado na geração centralizada, que menospreza a diversificação e produz um conjunto amplo de impactos sobre os recursos naturais e viola direitos e garantias fundamentais da população local. Romper com a economia da destruição que se baseia no monocultivo de soja e na pecuária extensiva também está entre os desafios que demandam nossa atenção máxima, haja vista que a infraestrutura imposta para viabilizar tal economia, segue aprofundando as desigualdades e reproduzindo o subdesenvolvimento que se alimenta da concentração de renda e terra. Se ainda não carecemos de um debate regional para definir os passos para transição ecológica da atual ordem econômica que nos aprisiona nessa espiral de destruição, já passa da hora de exigirmos que o poder público assuma compromissos concretos com a contenção dessa matriz econômica extrativa, e inicie o caminho que rompa com o aprofundamento dessa matriz e de toda infraestrutura que a sustenta. Por último, é chegada a hora da sociedade brasileira exigir um debate nacional capaz de ressignificar o papel da Amazônia para o desenvolvimento nacional e exigir que o processo de construção de soluções para a Amazônia se dê em profundo diálogo com a sociedade regional e rompa com a lógica histórica de pensar a Amazônia de fora para dentro, sem respeito aos saberes e fazeres de quem aqui aprendeu a conviver com a floresta. Do contrário, seguiremos reproduzindo a lógica que nos aprisiona ao eterno subdesenvolvimento, que segue produzindo infraestrutura na e não para a Amazônia e seus povos. *Danicley de Aguiar é coordenador de campanhas no Greenpeace Brasil e membro do GT Infraestrutura, uma rede de mais de 40 organizações unidas para debater modelos sustentáveis de desenvolvimento. Este artigo foi, originalmente, publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta. Foto: deposiphotos

A Amazônia que queremos e precisamos

Pacto de Letícia pretende ser instrumento para que países amazônicos colaborem mutuamente, mas não responde a várias perguntas fundamentais Por Claudio de Oliveira* A Amazônia não é brasileira. Nem colombiana, nem peruana, nem equatoriana… a Amazônia atravessa fronteiras como os rios que não pedem permissão para seguir com sua trajetória rumo ao mar. Nós, brasileiros, temos sim a maior fatia desse inigualável patrimônio da biodiversidade; água, clima, saberes ancestrais, mas enxergar a Amazônia sob a ótica do desenvolvimento sustentável, por mais desgastado que pareça estar esse conceito, exige transpor fronteiras, pensar fora da caixa. Em setembro de 2019, sete países amazônicos aprovaram o Pacto de Letícia. Representantes de Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname se reuniram na cidade homônima, que fica na Colômbia, mas faz uma fronteira tríplice que inclui Brasil e Peru, e assinaram um acordo que estabelece 16 pontos nos quais concordaram em colaborar mutuamente, entre eles: combate ao desmatamento, uso sustentável dos recursos, enfrentamento de desastres naturais, incentivo à bioeconomia, etc. Apesar de ter nascido como uma política de enfrentamento aos graves incêndios que assolaram a região, o Pacto pretendeu ir além, como uma iniciativa plurinacional para a abordagem dos desafios e o aproveitamento das oportunidades. Mas será que conseguiu? Quais pontos exigem nossa atenção? O Pacto foi celebrado de forma genérica, apenas por governos, sem a participação das pessoas que vivem na Amazônia. Não há definições mais precisas do que é entendido como bioeconomia e como esta se relaciona com a população e a economia local; nem está claro quais são as metas assumidas para o desmatamento e para a restauração florestal e como enfrentar as atividades predatórias e a mudança do uso do solo pressionada por grandes vetores econômicos. Como melhorar a proteção dos defensores ambientais? Como garantir o respeito aos territórios indígenas? Como incorporar a visão de mundo amazônida, “o bem viver”, em detrimento da exploração capitalista sem medida? O Pacto de Letícia foi pensado de cima para baixo, ou seja, sem a participação das comunidades tradicionais, dos indígenas, das organizações socioambientais que atuam na região há anos. Como se um arquiteto lhe apresentasse um projeto para a sua casa sem conversar com você. Não há um processo transparente de participação no âmbito do planejamento e tampouco no monitoramento dos recursos e ações. O contexto de violação de direitos humanos e de crimes ambientais e fundiários pode ser agravado ainda mais se não houver monitoramento e governança adequados. Somente em 2020, a Amazônia perdeu quase 2,3 milhões de hectares de floresta primária nos nove países amazônicos, o que representa um aumento de 17% em relação ao ano anterior (2019), e o terceiro maior valor desde 2000. A insistência na implantação de mega infraestruturas como a UHE Belo Monte, por exemplo, também agrava as violações. No final de 2021, em torno de 70 organizações da sociedade dos países signatários do Pacto de Letícia e de outros países firmaram uma Carta de recomendações aos membros do Pacto. Entre as propostas prioritárias estão: – Estabelecer processo de diálogo multi-stakeholder para rever o Pacto e suas estratégias de implementação; – Tornar o planejamento do Pacto transparente a nível nacional e garantir mecanismos de monitoramento e avaliação participativos e independentes inclusive na implementação do mesmo; – Incluir instrumentos, estratégias e metas para garantir o reconhecimento e a regularização dos direitos territoriais dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais; – Incluir iniciativas dos povos indígenas para a proteção da Amazônia; – Proteger os defensores ambientais e indígenas. Nesse aspecto, o acordo de Escazú é um elemento chave para o desenvolvimento do Pacto; – Incorporar uma visão inclusiva da bioeconomia, bem como, eliminar créditos e incentivos fiscais ao desmatamento, com apoio para a recuperação de áreas degradadas; – Construir uma estratégia clara e inovadora de infraestrutura sustentável e inclusiva em nível local e regional, incorporando lições para evitar a repetição de erros históricos, com prioridade para as necessidades e iniciativas de subsistência das comunidades amazônicas no campo e nas cidades. -A Iniciativa Amazônica do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que foi aprovada na Terceira Reunião de Cúpula do Pacto de Letícia prevê o investimento direto via Fundo Verde do Clima (GCF) de U$ 279 milhões em Bioeconomia que, segundo critérios apresentados vai favorecer a agrofloresta sustentável, o cultivo de palmeira nativas, espécies nativas para produção madeireira, produtos florestais naturais não-madeireiros, aquicultura e turismo de natureza focado em comunidades locais. A luta é para que as populações que moram na Amazônia, nas cidades, nas aldeias, nas vilas; sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhos ou organizações que lhes dão suporte, possam ter acesso a esses recursos, participar do processo de planejamento desses investimentos, de modo a manter uma consonância com os anseios locais e não olhar, passivamente, enquanto o capital avança sobre a floresta, sobre os recursos naturais e sobre os direitos humanos atendendo a meia dúzia de pessoas e grupos econômicos que muitas vezes nem a Amazônia conhecem. Esperamos que a infraestrutura seja para a Amazônia e suas populações e não na Amazônia, que possa atender às cadeias de valor e aos empreendimentos locais. No início da reunião anual do BID, neste 28 de março de 2022, a sociedade civil organizada dos países amazônicos fez um pronunciamento de alerta. A transparência, a governança e as salvaguardas apregoadas pelo BID precisam ser colocadas em prática e não ficarem penduradas em quadro na parede do departamento de Sustentabilidade – pra inglês ou indígena ver. * Claudio de Oliveira é jornalista, consultor do Instituto Centro de Vida/ICV, membro do GT Infraestrutura, mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT). Este artigo foi, originalmente, publicado no Um Só Planeta.  

A água nossa de cada dia e as violações de direitos

Vários projetos os ameaçam no Norte do país, o que também prejudica o direito à água de quem vive na região. Saiba em que tipo de projetos deveríamos estar pensando Iremar Antonio Ferreira* Hoje, dia 22 de março, é o Dia Mundial da Água, um recurso que perpassa várias infraestruturas fundamentais para as comunidades de qualquer localidade. A data comemorativa é também um lembrete de que não temos muito a comemorar, especialmente na região da Amazônia. Além de boa parte da população ainda não ter acesso a serviços básicos, como água e esgoto, os rios da região estão ameaçados. Como explicar que viver cercado de água nem sempre significa ter água para beber? No primeiro episódio de 2022 do podcast Infraestrutura Sustentável, produção do GT Infraestrutura, eu conversei com o secretário executivo da rede, Sérgio Guimarães, sobre alguns desses motivos. Seja nas bacias dos rios Madeira ou do Xingu, nos rios Teles Pires, Tapajós ou Juruena, um conjunto de obras do governo federal tem provocado consequências irreparáveis nos direitos dos povos e populações que habitam esses territórios. Essas ameaças nos remetem a um processo de colonização desenfreada, desencadeada a partir da década de 1970, com motivações de ocupar para não integrar — lemas do regime militar —, numa tônica que prevalece até hoje. São grandes projetos, que “favorecem a nação”, sem pensar nas comunidades tradicionais, povos indígenas e migrantes que foram chegando à região. Desde então, a bacia do Rio Madeira vem sofrendo, desenfreadamente, ofensivas. Dentro de uma perspectiva desenvolvimentista e para atender a uma demanda energética sob o fantasma do “apagão”, no início dos anos 2000, começaram estudos para o chamado Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, que é uma dessas grandes ameaças, com licenciamento vicioso, que não considerou participação popular, para começar a citar os problemas. Essa obra também está associada à expansão de uma uma hidrovia, que, aos poucos, está se consolidando, para viabilizar o escoamento de soja, outro ponto que merece destaque, pois coloca veneno dentro dos rios. Os impactos já podem ser vistos. Há pouco tempo, o Rio Jamari transbordou, ocupando a BR 364 por três dias, resultado do desmatamento desenfreado, que acelera o processo de assoreamento. Esse conjunto de obras se somam gerando impactos e violações de direitos aos nossos povos e comunidades e afetam o direito à água. A água na Bacia do Rio Madeira está poluída e contaminada por essas intervenções mal feitas em nome desse “desenvolvimento”, que arranca as pessoas de seus lugares e se ocupa de um processo mercantilista de escoamento de riquezas, que deixa suas populações, literalmente, à margem. A cidade de Porto Velho, capital de Rondônia, não tem 2% de água tratada. Até lençol freático já está contaminado, o que nos leva também ao tema do saneamento básico, que afeta o direito à saúde da nossa população. Quem tem dinheiro compra água mineral, quem não tem usa a água que tem, muitas vezes contaminada. A insegurança alimentar e nutricional gerada a partir da implementação desses projetos é um outro problema pouco falado, mas grave. Toda a produção de várzea que as populações tinham, se perdeu, pois não temos mais o tempo das cheias naturais. As áreas ou estão extremamente secas ou alagadas antes da hora, porque quem domina o percurso dessas águas são as empresas. Temos hoje comunidades que vivem na beira do Rio Madeira e precisam comprar farinha na cidade porque não conseguem mais ter produção de mandioca. Nem peixe tem mais, pois o barramento do rio proibiu a migração natural das espécies que lá viviam. É importante lembrar que, na Amazônia, os rios também são estradas. E a implementação de hidrovias está afetando o direito de ir e vir das populações, principalmente para as pequenas embarcações, já que as grandes balsas, carregadas de petróleo e soja, estão destruindo o rio. Isso sem falar em um dos assuntos do momento: os garimpos ilegais. É muito mercúrio sendo jogado no Rio Madeira, que virou um depósito de contaminantes para alimentar uma cadeia produtiva. O problema aumenta porque, lamentavelmente, esta é uma atividade motivada por quem deveria fiscalizá-la, como nos mostra claramente este projeto que quer legalizar a extração de minérios em territórios indígenas. Tão grave, que diversos setores da economia que até poderiam se beneficiar disso, se manifestaram contra. O GT Infraestrutura trabalha com a “infraestrutura que queremos”, que diz respeito a projetos que atendam as pessoas da Amazônia e não que sejam apenas na Amazônia. Pensando nessa lógica, acredito que precisamos mudar a lógica atual, que é de saque. Temos que olhar para a floresta, com toda a sua diversidade, como um sujeito de direito. E, principalmente, a água. Nesse sentido, temos muito a aprender com os povos indígenas, que vêm demonstrando resistência há mais de 520 anos, junto com as populações tradicionais, que foram aprendendo a conviver com a natureza, respeitando-a. Sem esquecer que cuidar da floresta é também garantir chuva e água nos rios. Muito mais que um serviço ambiental, estamos falando de um serviço ecossistêmico que está ameaçado porque a Amazônia de hoje está perdendo milhares de hectares ano a ano e não é mais a mesma. Precisamos considerar a Amazônia como um todo, com seus povos e culturas e sua etnobiodiversidade, entendendo que ela é formada por ecossistemas diferentes e cada um tem o seu potencial. É preciso que as políticas públicas olhem para isso, garantindo os territórios, fundamentais para o equilíbrio do Brasil e do planeta como um todo, que precisa de uma floresta em pé, não deitada. As soluções já existem. Embarcações, por exemplo, podem funcionar com energia solar e não com combustível poluente. Nossas comunidades da beira do rio precisam de potabilizador de água para não continuarem tomando água contaminada. Ao invés de hidrelétricas, podemos investir em fontes de energia renováveis. Nós temos caminhos, mas é preciso ter esse carinho de olhar e ver que a Amazônia não é um balcão de negócio, mas é um grande negócio sim. Para o futuro, para a vida, não para alimentar lucro. Temos

Sinais trocados: a quem interessa novas grandes hidrelétricas na Amazônia?

Alessandra Mathyas, Sérgio Guimarães e Brent Millikan* Em meados de janeiro, duas notícias de certa forma antagônicas surpreenderam quem acompanha o setor energético brasileiro. A primeira foi a abertura de consulta pública do Plano Decenal de Energia – PDE 2031, desenvolvido por equipe multidisciplinar da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia. A outra, o anúncio da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) de prorrogação de estudos de viabilidade de três grandes hidrelétricas na Bacia do Tapajós. Por que esses dois fatos são antagônicos? Vamos discorrer. O PDE 2031 detalha em um capítulo inteiro sobre questões socioambientais, o impacto das mudanças climáticas no setor energético, fazendo alusão às “incertezas quanto à disponibilidade hídrica futura”. Segundo a análise apresentada no plano, “embora haja imprecisões e limitações dos modelos de projeção climática, há conclusões concretas de que ocorre uma mudança nos padrões de temperatura”, o que deverá acarretar “prováveis reflexos nas precipitações”. Soma-se aí a questão pluviométrica, a demanda pelo uso da água em outros setores e mudanças no uso e cobertura do solo (desmatamento), que afetam diretamente o regime de chuvas e as reservas subterrâneas que chegam aos rios. Ainda assim, o plano traz um cenário com oito novas usinas hidrelétricas previstas para entrarem em operação nos próximos dez anos. Os últimos dois anos já colocaram em xeque o parque gerador hídrico brasileiro. Não à toa foi necessário acionar mais térmicas, sobretudo desde julho de 2021, chegando a um montante de 26% do total de energia consumido no país (17 mil MWmed). As chuvas do fim do ano trouxeram um certo alívio na vazão e nos reservatórios, mas a população brasileira continua e continuará pagando a conta dessa geração termelétrica, em sua maioria fóssil — com fortes implicações para as emissões de gases de efeito estufa —, pelo menos nos próximos 5 anos. O que nos leva a concluir que fica muito difícil planejar à luz da disponibilidade dos reservatórios, sobretudo quando há excessiva dependência na hidroeletricidade, lembrando que estudos indicam que os efeitos do clima sobre o regime de chuvas e reservas hídricas serão cada vez maiores, com previsão de redução de vazões, inclusive na Amazônia. Anunciar agora estudos de mais três grandes hidrelétricas na Amazônia, além das três barragens mencionadas que já constam do PDE 2031, passa a impressão de que se trata de uma “medição da temperatura” de agentes do governo em ano eleitoral. Segundo notícias da ANEEL, as três usinas seriam localizadas no Rio Jamanxim, afluente do Rio Tapajós, sendo denominadas Jamanxim, Cachoeira do Caí e Cachoeira dos Patos, totalizando 2,2 MW de potência. Juntas as barragens alagariam mais de 60 mil hectares, inclusive áreas significativas do Território Indígena Sawre Muybu, do povo Munduruku, do Parque Nacional de Jamanxim e das Florestas Nacionais Jamanxim, Itaituba 1 e Itaituba 2. Na realidade, a ANEEL está tirando do baú projetos antigos, previstos há mais de dez anos como parte do chamado “Complexo Tapajós”, que incluiria grandes barragens polêmicas no eixo principal do rio Tapajós: São Luiz do Tapajós, Jatobá e Chacorão. Em 2016, o IBAMA suspendeu o licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, por graves falhas nos estudos de impacto ambiental, inclusive quanto a seus efeitos cumulativos com outros projetos. Somou-se à justificativa pela suspensão o fato de que alagaria parte do Território Indígena Sawre Muybu, resultando no deslocamento forçado de comunidades indígenas, o que seria inconstitucional. Nos últimos anos houve um esvaziamento de empresas internacionais, como a Engie (ex-GDF Suez) e a EDF do consórcio de empresas “Grupo de Estudos Tapajós” liderado pela Eletrobras, que estava conduzindo os estudos de impacto ambiental e viabilidade de grandes barragens. Agora, com a privatização da Eletrobras e ameaças de graves retrocessos na legislação sobre o licenciamento ambiental e direitos indígenas, há ainda mais dúvidas sobre a governança de tais projetos, gerando mais insegurança sobre riscos jurídicos, financeiros e de reputação, com fortes implicações para a atratividade desses projetos para investidores internacionais. Há ainda outros fatores que temperam esse caldeirão de contradições que tenta ressuscitar hidrelétricas já rejeitadas no passado. O Brasil cada vez mais quer entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas para isso precisa seguir critérios socioambientais bastante rígidos. As questões jurídicas e judiciais que envolvem até hoje as últimas grandes usinas hidrelétricas na Amazônia (Santo Antônio, Jirau, Belo Monte, e Teles Pires, entre outras), somadas aos danos ambientais e à violação de direitos de povos originários são pontos negativos para o país. O Brasil estaria mesmo disposto a ampliar a negatividade no ambiente internacional ao continuar defendendo grandes hidrelétricas, num contexto de mudança climática acelerada e sobretudo num bioma já tão ameaçado? Bioma este que, por outro lado, dispõe de um potencial energético bastante grande para energia solar e as mais variadas fontes de biomassa? Estaria disposto a pôr em risco o bioma e seus habitantes, em disputas jurídicas intermináveis que atrasam e inviabilizam economicamente um empreendimento do porte de uma grande hidrelétrica e das linhas de transmissão necessárias? Lembremos que o custo inicial de Belo Monte foi de R$ 16 bilhões mas até a inauguração da última turbina, em 2019, já passava de R$ 40 bilhões, sem contar o valor do dano ambiental, orçado timidamente em mais de R$ 1 bilhão. Voltando ao PDE 2031, onde prevê-se para o decênio a insistência na construção das hidreletricas de Bem Querer, Tabajara e Castanheira na Amazônia, e tendo como supostos argumentos os custos da mudança do clima sobre o setor energético, não faz sentido, num ano eleitoral tão importante, que volte à baila a ameaça de grandes barragens em bacias hidrográficas já tão sensíveis a outros danos como o garimpo ilegal, o desmatamento, a perseguição a lideranças indígenas e comunitárias. As justificativas de que tais usinas também levariam desenvolvimento sustentável para a região, empregos, infraestrutura além de serem mais baratas que outras fontes, não se sustentam inclusive pelo histórico desse tipo de empreendimento na região. Os municípios sede dos empreendimentos têm IDHs mais baixos na região. E os empregos