Sinais trocados: a quem interessa novas grandes hidrelétricas na Amazônia?
Alessandra Mathyas, Sérgio Guimarães e Brent Millikan* Em meados de janeiro, duas notícias de certa forma antagônicas surpreenderam quem acompanha o setor energético brasileiro. A primeira foi a abertura de consulta pública do Plano Decenal de Energia – PDE 2031, desenvolvido por equipe multidisciplinar da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia. A outra, o anúncio da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) de prorrogação de estudos de viabilidade de três grandes hidrelétricas na Bacia do Tapajós. Por que esses dois fatos são antagônicos? Vamos discorrer. O PDE 2031 detalha em um capítulo inteiro sobre questões socioambientais, o impacto das mudanças climáticas no setor energético, fazendo alusão às “incertezas quanto à disponibilidade hídrica futura”. Segundo a análise apresentada no plano, “embora haja imprecisões e limitações dos modelos de projeção climática, há conclusões concretas de que ocorre uma mudança nos padrões de temperatura”, o que deverá acarretar “prováveis reflexos nas precipitações”. Soma-se aí a questão pluviométrica, a demanda pelo uso da água em outros setores e mudanças no uso e cobertura do solo (desmatamento), que afetam diretamente o regime de chuvas e as reservas subterrâneas que chegam aos rios. Ainda assim, o plano traz um cenário com oito novas usinas hidrelétricas previstas para entrarem em operação nos próximos dez anos. Os últimos dois anos já colocaram em xeque o parque gerador hídrico brasileiro. Não à toa foi necessário acionar mais térmicas, sobretudo desde julho de 2021, chegando a um montante de 26% do total de energia consumido no país (17 mil MWmed). As chuvas do fim do ano trouxeram um certo alívio na vazão e nos reservatórios, mas a população brasileira continua e continuará pagando a conta dessa geração termelétrica, em sua maioria fóssil — com fortes implicações para as emissões de gases de efeito estufa —, pelo menos nos próximos 5 anos. O que nos leva a concluir que fica muito difícil planejar à luz da disponibilidade dos reservatórios, sobretudo quando há excessiva dependência na hidroeletricidade, lembrando que estudos indicam que os efeitos do clima sobre o regime de chuvas e reservas hídricas serão cada vez maiores, com previsão de redução de vazões, inclusive na Amazônia. Anunciar agora estudos de mais três grandes hidrelétricas na Amazônia, além das três barragens mencionadas que já constam do PDE 2031, passa a impressão de que se trata de uma “medição da temperatura” de agentes do governo em ano eleitoral. Segundo notícias da ANEEL, as três usinas seriam localizadas no Rio Jamanxim, afluente do Rio Tapajós, sendo denominadas Jamanxim, Cachoeira do Caí e Cachoeira dos Patos, totalizando 2,2 MW de potência. Juntas as barragens alagariam mais de 60 mil hectares, inclusive áreas significativas do Território Indígena Sawre Muybu, do povo Munduruku, do Parque Nacional de Jamanxim e das Florestas Nacionais Jamanxim, Itaituba 1 e Itaituba 2. Na realidade, a ANEEL está tirando do baú projetos antigos, previstos há mais de dez anos como parte do chamado “Complexo Tapajós”, que incluiria grandes barragens polêmicas no eixo principal do rio Tapajós: São Luiz do Tapajós, Jatobá e Chacorão. Em 2016, o IBAMA suspendeu o licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, por graves falhas nos estudos de impacto ambiental, inclusive quanto a seus efeitos cumulativos com outros projetos. Somou-se à justificativa pela suspensão o fato de que alagaria parte do Território Indígena Sawre Muybu, resultando no deslocamento forçado de comunidades indígenas, o que seria inconstitucional. Nos últimos anos houve um esvaziamento de empresas internacionais, como a Engie (ex-GDF Suez) e a EDF do consórcio de empresas “Grupo de Estudos Tapajós” liderado pela Eletrobras, que estava conduzindo os estudos de impacto ambiental e viabilidade de grandes barragens. Agora, com a privatização da Eletrobras e ameaças de graves retrocessos na legislação sobre o licenciamento ambiental e direitos indígenas, há ainda mais dúvidas sobre a governança de tais projetos, gerando mais insegurança sobre riscos jurídicos, financeiros e de reputação, com fortes implicações para a atratividade desses projetos para investidores internacionais. Há ainda outros fatores que temperam esse caldeirão de contradições que tenta ressuscitar hidrelétricas já rejeitadas no passado. O Brasil cada vez mais quer entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas para isso precisa seguir critérios socioambientais bastante rígidos. As questões jurídicas e judiciais que envolvem até hoje as últimas grandes usinas hidrelétricas na Amazônia (Santo Antônio, Jirau, Belo Monte, e Teles Pires, entre outras), somadas aos danos ambientais e à violação de direitos de povos originários são pontos negativos para o país. O Brasil estaria mesmo disposto a ampliar a negatividade no ambiente internacional ao continuar defendendo grandes hidrelétricas, num contexto de mudança climática acelerada e sobretudo num bioma já tão ameaçado? Bioma este que, por outro lado, dispõe de um potencial energético bastante grande para energia solar e as mais variadas fontes de biomassa? Estaria disposto a pôr em risco o bioma e seus habitantes, em disputas jurídicas intermináveis que atrasam e inviabilizam economicamente um empreendimento do porte de uma grande hidrelétrica e das linhas de transmissão necessárias? Lembremos que o custo inicial de Belo Monte foi de R$ 16 bilhões mas até a inauguração da última turbina, em 2019, já passava de R$ 40 bilhões, sem contar o valor do dano ambiental, orçado timidamente em mais de R$ 1 bilhão. Voltando ao PDE 2031, onde prevê-se para o decênio a insistência na construção das hidreletricas de Bem Querer, Tabajara e Castanheira na Amazônia, e tendo como supostos argumentos os custos da mudança do clima sobre o setor energético, não faz sentido, num ano eleitoral tão importante, que volte à baila a ameaça de grandes barragens em bacias hidrográficas já tão sensíveis a outros danos como o garimpo ilegal, o desmatamento, a perseguição a lideranças indígenas e comunitárias. As justificativas de que tais usinas também levariam desenvolvimento sustentável para a região, empregos, infraestrutura além de serem mais baratas que outras fontes, não se sustentam inclusive pelo histórico desse tipo de empreendimento na região. Os municípios sede dos empreendimentos têm IDHs mais baixos na região. E os empregos
Como o agro se beneficia do desmatamento?
O desmate foi um elemento estruturante de consolidação da nossa economia agroexportadora no século passado e continua sendo prática corrente para expansão da fronteira agrícola nos dias de hoje *Jaqueline Ferreira A ministra Tereza Cristina já afirmou que não é mais necessário desmatar para produzir, assim como fizeram outros que ocuparam a pasta. Muitas lideranças do setor agropecuário dizem não ter nenhuma relação com o desmatamento e a expansão da fronteira agrícola porque não estão com a motosserra na mão. “É preciso prender quem desmata”, “é preciso coibir a grilagem de terras”, “nós seguimos o Código Florestal”, “se 90% do desmatamento é ilegal, bastaria aplicar a lei que tudo estaria resolvido”, afirmam. O que se omite nessa narrativa é que o destino da terra desmatada, legal ou ilegalmente, é o mercado de terras. Terra é um insumo fundamental para a produção agropecuária. E no caso do Brasil, a disponibilidade desse insumo parece não ter fim. Entre 1985 e 2020, desde o início do monitoramento sistemático do uso da terra no país, 82 milhões de hectares de vegetação nativa foram ao chão. No mesmo período, a área ocupada pela agropecuária teve um incremento total de 81 milhões de hectares. Não faltam evidências sobre o que vem acontecendo com as áreas desmatadas: viram pasto e área de cultivo agrícola. O desmatamento foi um elemento estruturante de consolidação da nossa economia agroexportadora no século passado e continua sendo prática corrente para expansão da fronteira agrícola nos dias de hoje. Mesmo em 2012, ano que registrou menores taxas de desmatamento, nós perdemos 4,6 mil km² de florestas nativas na Amazônia. Não é pouco. A expansão de área cultivada é uma estratégia do agronegócio brasileiro para aumentar sua produção e competitividade. Os cultivos mais modernos, que usam de alta tecnologia para produzir mais por hectare, como é o caso da soja, também apresentam tendência crescente de aumento da área cultivada. O estudo do Instituto Escolhas, Como o Agro se beneficia do desmatamento?, lançado na quinta-feira (17/02), traz dados relevantes para entendermos melhor esse imbricamento do setor com o desmatamento. Ao analisar o efeito econômico dessa prática sobre o preço da terra e dos produtos agropecuários, o estudo revela que o desmatamento ocorrido entre 2011 e 2014 desvalorizou o estoque de terra de 93,5% dos municípios brasileiros. Se ele não tivesse ocorrido, elas valeriam R$ 136,7 bilhões a mais em 2017. A depreciação foi maior nos municípios onde a fronteira agrícola expandiu, localizados em sua maioria na Amazônia Legal e na região conhecida como Matopiba – fronteiriça entre o Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia –, onde a depreciação do valor do estoque de terra chegou a 25%, o que soma mais de R$ 83 bilhões. 50% de toda a desvalorização da terra observada no país está concentrada em 61 municípios com esse perfil. O valor do hectare de terra em São Félix do Xingu, no Pará, município com maior depreciação verificada, foi de R$ 2.476 em 2017. Sem o desmatamento dos anos anteriores, o preço teria chegado a R$ 6.606 por hectare. O desconto significativo de R$ 4.130 por hectare beneficiou o produtor desse município que expandiu sua área de cultivo, mesmo que ele não tenha derrubado uma só árvore. O efeito também é sentido no preço das commodities, cujo principal produto afetado é a soja. O desmatamento provocou redução de R$ 3,10 no preço médio da saca de 60kg, o que se percebe de maneira mais intensa, mais uma vez, nos municípios em expansão da fronteira agrícola. Preços mais baixos de terra e de commodities trazem maior competitividade para o setor. O que o estudo mostra é que o desmatamento torna mais barato para o Brasil cumprir sua grande vocação na visão do agronegócio: fornecer soja e carne para o mundo. Entretanto, fica mais barato para uns produtores do que para outros, prejudica aqueles que não podem expandir sua área de cultivo e deprecia o ativo terra do país como um todo. A conta desastrosa nem leva em consideração a perda da biodiversidade e o agravamento da crise climática, que já prejudica a própria produção agropecuária. Também não considera que fatores de produtividade, como acesso a orientação técnica e infraestrutura, trazem ganhos muito maiores de competitividade do que o desmatamento pode trazer, conforme mostrou o estudo. Será mesmo que, para acabar com o desmatamento, basta aplicar a legislação existente? Enquanto o setor mais promissor do país, com grande representação nos poderes executivo e legislativo, não abandonar a lógica de operação que consiste em expansão de área, o problema vai continuar. Atos oficiais de regulação fundiária que premiam quem desmata e disponibilizam a entrada de novas áreas no mercado de terra precisam cessar. E se é o bolso que fala mais alto na hora de expandir a área cultivada, é pelo bolso que vamos conseguir constranger o setor a mudar. Já passou da hora de clientes e financiadores exigirem o fim do desmatamento nas cadeias produtivas do agronegócio brasileiro. Assim como, os inúmeros instrumentos de financiamento público – crédito, anistia de dívida, isenção fiscal, entre outros – precisam parar de beneficiar o produtor que desmata e seus compradores. *Jaqueline Ferreira é gerente de Portfólio do Instituto Escolhas Este artigo foi originalmente publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.
Meio ambiente fora dos planos de infraestrutura
Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura é bem-vindo, mas não considera questões socioambientais relevantes Por Joana Chiavari e Luiza Antonaccio* Apesar da demanda crescente de investimentos em infraestrutura no país, permanecem falhas estruturais na governança dos investimentos públicos e privados pelo governo. A ausência de um planejamento abrangente de longo prazo para o setor tem sido a face mais visível de uma governança frágil que acarreta muitas vezes em decisões sendo tomadas seguindo a lógica do ciclo político e a seleção de projetos que carecem de suficiente racionalidade e integridade. Neste sentido, é muito bem-vinda a publicação do Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura: 2021 – 2050 (PILPI), no final de 2021, pelo Comitê Interministerial de Planejamento da Infraestrutura. Esse documento supre uma lacuna importante ao adotar o primeiro plano intersetorial de longo prazo do setor de infraestrutura na história democrática recente do país. O PILPI representa um passo significativo para alavancar a infraestrutura como um poderoso instrumento capaz de alcançar os objetivos nacionais de desenvolvimento, mas o imperativo da sustentabilidade precisa fazer parte integral desta estratégia. Ocorre que o PILPI perde a oportunidade de considerar, desde o planejamento, questões socioambientais relevantes que podem definir a viabilidade de projetos e atrair investimentos para o setor. Considerar questões socioambientais desde a fase de planejamento permite aprimorar o processo de seleção dos projetos, fazendo com que essas questões sejam analisadas e aprofundadas de forma progressiva. Essa medida aumentaria a segurança no ambiente de negócios e atrairia potenciais investidores, ao permitir que apenas projetos robustos e de qualidade chegassem à fase de implementação. Atualmente, a avaliação dos impactos socioambientais acontece tardiamente e é concentrada na fase do licenciamento ambiental, fazendo com que esse instrumento acabe se tornando um gargalo. No entanto, não há impeditivos para antecipar a análise socioambiental já a partir da fase de planejamento, e uma das formas de fazê-lo seria, justamente, incluir esta análise nos instrumentos de planejamento, em especial no PILPI. Isso já ocorre no setor de energia elétrica, por exemplo, que demonstra mais maturidade ao tratar desse tema, ao prever que todos os estudos do plano de longo prazo do setor – o Plano Nacional de Energia (PNE) – devem levar em consideração aspectos socioambientais, além de incorporar esses aspectos nas projeções de cenários. O PILPI prevê que as projeções de sustentabilidade ambiental se baseiem na Estratégia Federal de Desenvolvimento (EFD), um instrumento de planejamento de médio prazo, uma vez que nela são estabelecidos índices-chave e metas tangíveis para o eixo ambiental. No entanto, estes parâmetros podem não ser suficientes, uma vez que não incluem, por exemplo, desmatamento e a proteção de biomas, fatores essenciais para avaliar a viabilidade de projetos de infraestrutura, especialmente na região Amazônica. O PILPI faz referência, ainda, ao Guia Geral de Análise Socioeconômica de Custo-Benefício de Projetos de Investimento em Infraestrutura (Guia ACB) e, no caso do setor de transportes, também ao Plano Nacional de Logística (PNL) 2035. Ambos documentos, todavia, incorrem em limitações semelhantes à EFD. A importância de um novo planejamento é clara para viabilizar novos projetos, não só para a retomada da economia no pós-pandemia, mas, principalmente, para melhorar o bem-estar da população e a competitividade das empresas. Entretanto, o processo de planejamento precisa refletir um modelo sustentável de desenvolvimento para, a partir deste modelo, determinar quais demandas de serviços de infraestrutura e ativos subjacentes podem ser projetados no médio e longo prazos. Existe uma oportunidade clara para que o PILPI passe a incorporar componentes socioambientais na seleção de projetos que não deve ser desperdiçada. *Joana Chiavari é Diretora Associada do Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio) e Luiza Antonaccio é Analista Legal Sênior, Direito e Governança do Clima do CPI/PUC-Rio. Este artigo foi, originalmente, publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta. Imagem: Pixabay
As empresas devem entrar no debate sobre cidades sustentáveis na Amazônia
Para viabilizar as adaptações necessárias, setor precisa ouvir quem vive nos locais mais vulneráveis, como é o caso das cidades amazônicas Não dá mais para negar. As mudanças climáticas deixaram de ser um alerta que parecia distante e estão aí. Mudanças nos padrões de chuva, seca e temperatura já fazem parte do nosso dia a dia e estamos sofrendo os impactos delas em todas as regiões. São Paulo passou por uma crise hídrica violenta em 2013 e agora está passando por outra. As chuvas de verão da última temporada provocaram inundações, desabamento, interdição de estradas, destruição de prédios históricos e mortes em Minas Gerais e na Bahia. Uma onda de calor fora do normal na região Sul já está perturbando a vida das pessoas gerando problemas de saúde ou, no mínimo, dependência de ar condicionado. A elevação do nível do mar também está causando problemas de salinização no maior rio do mundo, o Amazonas, deixando comunidades ribeirinhas do Amapá sem água potável. Esses são só alguns exemplos, temos tantos que esse artigo poderia ser inteiro uma lista deles. Mas vamos tentar falar do que podemos fazer, além de mudar de adotar hábitos mais sustentáveis no nosso dia a dia e exigir políticas que mitiguem esses efeitos num futuro próximo. Vai ser preciso e urgente adaptar as cidades ao novo clima e também mudar suas dinâmicas para que elas também emitam menos, ou seja, para que a gente não fique enxugando gelo enquanto o calor aumenta cada vez mais. E essa adaptação vai gerar negócios. Teremos muito trabalho pela frente. Vamos precisar melhorar os canais, criar parques, áreas verdes e outras soluções para reduzir a impermeabilização do solo, como telhados verdes ou jardins de inundação. Também vamos precisar investir em sistemas de uso mais eficiente de água e energia e em cidades mais preparadas para conviver com o calor, com mais arborização, prédios que esquentam menos e aproveitem, por exemplo, ventilação e luz natural, o que também ajuda a reduzir as emissões das cidades. Mesmo soluções mais simples, como reciclar o lixo e investir em ciclovias e transporte público, ainda não são realidade em muitas das nossas cidades, especialmente as fora do eixo sul-sudeste, mas precisam passar a ser. Isso sem falar no potencial criativo para novas soluções, que são muito bem-vindas. Tudo isso gera negócios que, além de emergenciais e de extrema importância, serão bem pagos, justamente por isso. As empresas, que vão oferecer esses serviços e soluções precisam, além de boas ideias, participar das discussões sobre o assunto. Isso porque está cada vez mais claro que ideias pensadas em um escritório podem não ser as melhores saídas para quem, de fato, vive nas regiões onde elas serão aplicadas. É o caso dos municípios amazônicos, que possuem muitas especificidades que as tornam, inclusive, mais vulneráveis às mudanças climáticas, como o fato de serem banhadas por rios e a grande distância entre as cidades. E essa é uma região chave, na qual o planeta todo está de olho. Já sabemos que para cuidar das florestas, precisamos cuidar das cidades, mas, para isso, precisamos conversar com quem vive nelas. As organizações da sociedade civil e lideranças locais são peça-chave nesse processo, pois sabem do que estão falando e conhecem mais do que ninguém soluções para os problemas que enfrentam. Isso quer dizer que o conhecimento das populações locais e comunidades tradicionais é fundamental para o planejamento de cidades sustentáveis. O que as empresas devem fazer então? Ouvir e, sem seguida, colocar a mão na massa. Para Fábio Ferraz, economista e pesquisador da urbeOmnis, o debate sobre sustentabilidade urbana ou cidades sustentáveis tem de se dar de modo interinstitucional, o que inclui a participação ativa das empresas e da iniciativa privada em geral. “Se, por um lado, os cidadãos e consumidores tendem cada vez mais a optar por produtos e serviços que agreguem a responsabilidade socioambiental, por outro, os órgãos públicos também tendem a criar novas regulamentações que implicam em maior controle sobre os impactos das atividades econômicas, assim como priorizar fornecedores ‘mais sustentáveis’. Some a isso uma multiplicidade de oportunidade de negócios e lucros que estão surgindo com a economia circular, de baixo-carbono e tantas outras novas economias”, afirma. Fábio é coordenador do projeto “Nós Fazemos a Cidade”, desenvolvido pelo GT Infraestrutura em parceria com Fundo Casa Socioambiental e Fundação Vitória Amazônica, que lançou um guia, um estudo técnico e uma série de vídeos sobre a adaptação das cidades amazônicas às mudanças climáticas. O material está disponível, gratuitamente, no site do GT Infraestrutura, e deixa claro que precisamos pensar em projetos que tenham o foco nas pessoas, pois a infraestrutura do concreto já provou que deve fazer parte do nosso passado, como bem ilustram os exemplos do início desse texto. A Amazônia 2030, iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano de desenvolvimento sustentável para a Amazônia brasileira, também tem as cidades no centro do debate. “Elas são o espaço onde tudo acontece, onde o trabalho se realiza, onde as pessoas se educam, se divertem. Para que haja sucesso no desenvolvimento da Amazônia Legal é preciso não apenas capital físico, recursos naturais que se transformam em matéria-prima, mas também capital humano, ou seja, pessoas qualificadas, e essas pessoas buscam associar ao trabalho, qualidade de vida”, explica Flavia Chein, pesquisadora do projeto e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A especialista destaca que uma cidade sustentável também precisa ter bons indicadores de habitabilidade urbana, ou seja, a habitação tem que ser avaliada em seu sentido mais amplo, englobando o direito à cidade, ou seja, de estar inserida na malha urbana. “Nesse conceito a habitação tem relação com a rede de infraestrutura, possibilidade de acesso aos equipamentos públicos, pertencimento ao território urbano e inclusão, fatores que têm relação direta com a qualidade de vida encontrada nas cidades”, detalha. Ela também deixa claro que pensar a habitabilidade urbana não deve ser apenas um compromisso dos gestores públicos, mas também, inevitavelmente, um compromisso das empresas. “Uma cidade sustentável é capaz de atrair mais
O que esperar das cidades no século XXI
Vivemos o século das cidades habitáveis, inclusivas, resilientes, circulares, sustentáveis e, por consequência, inteligentes Fábio Ferraz* Dizer que o século XXI é o século das cidades significa dizer que as cidades podem atuar como espaços e como protagonistas do processo de substituição dos atuais modelos de produção e consumo que degradam o meio ambiente e perpetuam as desigualdades sociais por modelos mais sustentáveis. Significa também que cada vez mais a população mundial será predominantemente urbana. Em 2020, 4,4 bilhões de habitantes – 56,2% da população do planeta – vivia em cidades com a previsão, segundo a ONU, desse número atingir 6,7 bilhões de habitantes (68,4% da população) em 2050. Ou seja, a população urbana cresce de modo absoluto e relativo. Muito mais em países da Ásia e África que na América e Europa. E se crescem as necessidades de energia e recursos naturais para proporcionar “qualidade de vida” urbana também crescem os níveis de geração de gases de efeito estufa e de resíduos uma vez que se mantêm os padrões de produção e consumo. Em certo sentido, essa é a história do aquecimento global e das consequentes mudanças climáticas. Com a revolução industrial e o início da produção em massa em fins do século XVIII – e mais aceleradamente com o uso de motores a combustão e queima de combustíveis fósseis em fins do século XIX – a humanidade passou a atuar decisivamente para desregular os processos climáticos e ecológicos em níveis locais e globais. Tanto é assim que as variações de temperatura e os estudos sobre aquecimento global realizados pelo IPCC tomam como base os níveis pré-industriais. Importa frisar que urbanização, industrialização e modernização sempre estiveram articuladas e é sobre essa articulação que as cidades se impõem como solução de seus problemas em nível local, regional e global conquanto novas condições sejam estabelecidas. Se por um lado, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável sustentam que as cidades sejam transformadas em ambientes mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis, por outro, os meios técnico-científico e negocial sugerem que as mesmas se tornem mais inteligentes e conectadas pelo uso das tecnologias de informação e comunicação. Para não cairmos no discurso fácil, temos de considerar as diferentes realidades das cidades ao redor do mundo sejam por características geopolíticas e econômicas, seja por escala e capacidades administrativas e institucionais. As cidades brasileiras, por exemplo, convivem desde sempre com déficits de saneamento e habitação, transportes e mobilidade, áreas verdes e espaços públicos, mas também déficits de negócios e empregos, saúde e educação. Por outro lado, tais cidades trazem consigo diversas capacidades e oportunidades representadas pelos capitais físico-financeiro, social, humano e institucional. Do mesmo modo, não é possível relegar o papel do governo federal e estados bem como das condições que o pacto federativo – que organiza as leis, arrecadação de recursos, obrigações financeiras e os campos de atuação dos entes federativos – impõe às cidades. Com a constituição de 1988, os municípios (e suas cidades) adquiriram status de ente federativo, mas também receberam diversas responsabilidades as quais têm tido dificuldades em cumprir. Uma vez que as cidades são os lugares de centralidade dos territórios, é das cidades que devem irradiar as políticas ambientais, de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, por exemplo. Não há como a Política Nacional sobre a Mudança do Clima e o Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas serem aplicados devidamente se não por meio dos municípios e, mais especificamente, das cidades sendo o mesmo raciocínio válido para praticamente todas as políticas nacionais de saneamento, habitação, mobilidade etc. Mais do que repetir que o século XXI é o século das cidades, devemos frisar que o mesmo deve ser o século das cidades habitáveis, inclusivas, resilientes, circulares, sustentáveis e, por consequência, inteligentes. Muitas cidades têm avançado nessa articulação e estão transformando suas respostas buscando integrar questões ambientais aos déficits nos sistemas urbanos e à burocracia municipal. Mais ainda, e muito importante, têm buscado envolver a sociedade civil e atores privados nos processos de planejamento e gestão. Um projeto recente, desenvolvido pelo GT Infraestrutura com o apoio do Fundo Casa Socioambiental e da Fundação Vitória Amazônica, ressaltou o papel da sociedade civil organizada na construção de ações de adaptação de cidades amazônicas às mudanças climáticas articuladas às políticas públicas urbanas e ao fortalecimento das capacidades administrativas e financeiras. Na mesma direção, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e, mais recentemente, os Objetivos de Desenvolvimento Urbano Sustentável propostos pela Política Nacional de Desenvolvimento Urbano são grandes oportunidades que se colocam às cidades para buscar resolver seus problemas estruturais e proporcionar melhor qualidade de vida às suas populações mas exigem que parcerias intersetoriais e intergovernamentais sejam consolidadas sob pena de vivenciarmos o século das cidades caóticas. *Especialista em planejamento e gestão de políticas públicas para cidades inteligentes e sustentáveis. Economista, fundador e diretor-executivo da urbeOmnis. Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta. Imagem: Fábio J. Ferraz/urbeOmnis
Por que ter cidades melhores na Amazônia é bom também para preservar a floresta?
Fundamental para a estabilidade do clima do planeta, a região precisa ser olhada como um todo. Organizações da sociedade civil têm papel fundamental nesse processo Por Sérgio Guimarães* As mudanças climáticas afetam a Amazônia e a Amazônia afetada contribui para o avanço das mudanças climáticas. As cidades da região, cada vez mais sujeitas a eventos extremos, como secas, inundações e queimadas, precisam se adaptar para reduzir esses impactos. Como? Podemos começar lembrando que quando falamos das cidades da Amazônia, precisamos ter em mente que elas têm algumas particularidades que tornam essas adaptação às mudanças climáticas um desafio maior que para as outras, cujos desafios já são enormes. As grandes distâncias que separam as cidades, a forte urbanização concentrada nas capitais, estado de pobreza e péssimas condições sanitárias de grande parte da população, além da carência de recursos são alguns exemplos. A ação local é essencial para fazer acontecer as ações de mitigação e adaptação urgentes e necessárias e as organizações da sociedade são fundamentais nesse processo. No último episódio de 2021 do podcast do GT Infra, Infraestrutura Sustentável, eu recebo o professor, economista, doutor em urbanismo, Fábio Ferraz, que está conduzindo um estudo sobre esse assunto. Junto com ele e em parceria com o Fundo Casa Socioambiental e Fundação Vitória Amazônica, o GT Infraestrutura lançará, ainda este mês, uma cartilha com diretrizes para orientar as populações urbanas mais vulneráveis. Nos dias 18, 19 e 20 de janeiro, também realizaremos os webinários “Nós fazemos a cidade”, que têm o mesmo nome da cartilha e são uma extensão desse trabalho. Nesse material, traçamos um roteiro de um passo a passo, de ações, necessárias e urgentes, que as cidades amazônicas precisam realizar para mitigar e se adaptarem às mudanças climáticas. “Nosso objetivo é fortalecer a participação da sociedade civil organizada na construção de políticas públicas e nas atividades de planejamento e gestão”, explica Fábio Ferraz. São alguns passos simples, mas que funcionam: 1. unir as pessoas interessadas e com disposição para atuar, formando um grupo gestor, que deve receber capacitação para realizar esse trabalho; 2. identificar e avaliar os problemas, riscos e vulnerabilidades, pensando em ações e medidas de adaptação possíveis para lidar com eles; 3. em conjunto com o poder público, definir um plano de adaptação às mudanças climáticas com priorização de ações, responsabilidades e governança, indicadores de monitoramento e controle e instrumentos financiamento; 4. propor políticas públicas locais de adaptação às mudanças climáticas; 5. garantir que esse plano converse com as demais áreas e políticas públicas e interagir com o poder público e com atores estratégicos das cidades para implementar o plano. Resiliência é uma das palavras chaves nesse processo de adaptação, pois diz respeito à nossa capacidade de aguentar e superar as adversidades. “Resiliência ambiental é a capacidade de aguentar uma tempestade, uma inundação ou uma seca e continuar vivo. Esse conceito vem da biologia, do fato, por exemplo, de que depois de uma queimada, as sementes continuam germinando e ressurgem na estação seguinte”, pontua Fábio Ferraz. Aprender com os erros do passado e organizar estudos e protocolos de alerta para lidar com os problemas que virão é uma forma de resiliência. Plantar árvores em cidades que têm pouca arborização urbana é outro exemplo disso, pois ajuda tanto a lidar com o calor extremo, quanto a evitar inundações. O pesquisador Foster Brown, da Universidade Federal do Acre, também mostrou em um experimento que pintar o telhado das casas de branco é outra uma medida simples, mas eficiente. A cor reflete mais a luz e diminui a temperatura interna, aumentando o conforto térmico das casas nas cidades onde faz muito calor, como é o caso da região da floresta. Antes de responder à pergunta que dá início a esse artigo, é importante lembrar que a floresta amazônica, além de abrigar parte significativa da biodiversidade do planeta, desempenha papel fundamental na regulação do macroclima global. Mas, como território ocupado por uma população, ela vai muito além do seu bioma, que se espalha, inclusive, por outras vegetações e países vizinhos. “O território se estrutura sobre uma ampla rede de assentamentos urbanos e atividades econômicas. Nos preocupamos muito com a floresta e deixamos a cidade em segundo plano, mas são 28 milhões de habitantes, 70% concentrados nas cidades e mais da metade nas regiões metropolitanas”, lembra Fábio Ferraz. “Essas cidades são os espaços administrativos, é através delas que cuidamos do território, inclusive a zona rural e as áreas de floresta. Se nós não administramos bem as cidades, não administramos os territórios”, completa. Ao garantir cidades mais sustentáveis, também estimulamos a preservação da nossa floresta. Se por um lado o desmatamento e as queimadas contribuem para o aquecimento global, por outro o território acaba sofrendo com as mudanças climáticas, principalmente as cidades. Ou seja, cidades mais organizadas, estruturadas, com mais oportunidades econômicas e qualidade de vida, acabam nos dando mais condições de estabelecer melhores relações com a floresta, inclusive fomentando outras atividades econômicas que não sejam apenas baseadas no extrativismo, como a economia da floresta em pé de que tanto falamos. Tudo está interligado. *Sérgio Guimarães é secretário executivo do GT Infraestrutura, rede com 40 organizações da sociedade comprometidas com a construção de um mundo com mais justiça socioambiental. Este artigo foi, originalmente, publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, na Um Só Planeta. Imagem: Fábio J. Ferraz/urbeOmnis
COP26 escancara que Brasil precisa parar de andar na contramão do mundo
A floresta é a principal infraestrutura da Amazônia e presta relevantes serviços ao Brasil e a todo o planeta. Temos que valorizá-la por isso Por Sérgio Guimarães* A economia global precisou pisar no freio durante o período de mais restrições da pandemia e um dos resultados foi que as emissões de gases de efeito estufa caíram em cerca de 7% em 2020. Menos no Brasil. Na contramão do mundo, nossas emissões registraram um aumento de quase 10%, o maior desde 2006, segundo relatório do Observatório do Clima divulgado alguns dias antes do início do COP 26. O grande diferencial foi o desmatamento! Somente neste mês de setembro, derrubamos mais de mil quilômetros quadrados da maior floresta tropical da Terra. Por dia, a floresta perdeu uma área maior que 4 mil campos de futebol, segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Assim, o Brasil chegou à Glasgow como um dos países que mais contribuem para agravar o aquecimento global, o que é péssimo para a nossa economia. Segundo o mesmo relatório, se a Amazônia fosse um país, seria o nono maior emissor do mundo. Somando o Cerrado, os dois biomas seriam o oitavo maior, à frente de Irã e Alemanha. O processo crescente de derrubar árvores para fazer pasto é apontado como um dos grandes motivos para o nosso destaque negativo durante esse evento fundamental para o futuro do planeta e da humanidade. Toda a comunidade científica já fala disso há tempos, mas, apesar dos alertas, o processo ainda não parou. No entanto, se tem uma coisa que as discussões em curso na COP26 estão deixando claro é que, se o problema é grande, o potencial de solução em diferentes campos também é. A maior delegação de lideranças indígenas brasileiras da história do evento está lá contribuindo com ideias valiosas de outras formas de nos relacionarmos com a terra. E o mundo todo vai ganhar se levar essas ideias pra casa e colocá-las em prática. Antes de mais nada, precisamos parar de desmatar — para ontem! A Amazônia tem que ser enxergada como a infraestrutura que ela é, pois presta serviços diversos para todo o planeta, que dela depende para estabilidade do clima. Manter a floresta em pé é bom para o mundo todo e, portanto, esses serviços podem ser quantificados em escala global. Em dinheiro, inclusive. Há alguns anos, o estudo Changes in the Global Value of Ecosystem Services, liderado por pesquisadores da Austrália, estimou que os benefícios da manutenção da floresta podem chegar a trilhões de reais por ano. Se esse trabalho fosse atualizado hoje, certamente mostraria valores ainda maiores, porque agora as principais referências globais em economia já entenderam que lucrar a qualquer custo é, no longo prazo, prejuízo. Monetário e também para a nossa vida por aqui. Como o Um Só Planeta costuma enfatizar, não há planeta B. Nessa nova economia, cujos rumos vêm sendo delineados em Glasgow, a infraestrutura começa a ser pensada pelos serviços que presta para as pessoas. Assim, os megaprojetos devem perder espaço para os menores, não mais baseados na destruição e no concreto, mas em alternativas que não impactem o meio ambiente, respeitem as comunidades e favoreçam seus modos de vida. Essa é a infraestrutura que queremos, pauta com a qual o GT Infraestrutura trabalha há alguns anos. Ela é um meio para chegarmos a outros modos de produção, que precisamos adotar para continuar vivendo aqui no Planeta. “O que está acontecendo é uma transformação profunda que será mais promissora quanto mais ela obedecer às necessidades da luta contra a crise climática”, afirmou Ricardo Abramovay, economista, professor e especialista em economia verde em episódio do podcast Infraestrutura Sustentável, que é um espaço onde discutimos várias dessas alternativas que reconhecem que nossos biomas são também infraestruturas e que, portanto, não faz sentido destruí-los. Em Glasgow, pontos importantes têm sido reafirmados. Mas, para além da teoria e dos debates, é fundamental que o Brasil honre os compromissos historicamente assumidos, saia da contramão e se realinhe com os esforços mundiais para a redução das emissões de efeito estufa, que além de reduzirem os eventos extremos, que causam graves prejuízos ao país, contribuem com a economia e geram renda e emprego para a população. Sem isso ficaremos isolados e todos vamos arcar com as consequências. E, com certeza, o preço será alto. Aliás, já está sendo. As crises hídrica e energética são só um pequeno exemplo. *Sérgio Guimarães é secretário executivo do GT Infraestrutura, rede com 40 organizações da sociedade comprometidas com a construção de um mundo com mais justiça socioambiental. Imagem: Pixabay Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.
Por que precisamos ouvir os indígenas na COP26
Os povos originários são nossa melhor aposta para conservar 80% da biodiversidade que o planeta ainda tem Quem esteve de olho no noticiário nos últimos meses viu que voltou à pauta do Supremo Tribunal Federal a discussão do Marco Temporal Indígena, julgamento que é central para o futuro dos povos originários no Brasil porque legisla sobre o direito mais fundamental: a terra. Mulheres indígenas de 150 etnias organizaram protestos em Brasília contra o projeto e a COP26, que acontece em Glasgow, está recebendo a maior delegação de lideranças brasileiras da história da conferência. Eles estão lá para pautar a demarcação de terras indígenas e a importância dos povos tradicionais para criar e promover soluções climáticas efetivas baseadas na natureza e nas comunidades que vivem em harmonia com ela há séculos. Precisamos reconhecer a contribuição desses povos para a preservação ambiental e para isso é fundamental demarcar seus territórios. “Nos colocamos contra falsas soluções baseadas em inovações tecnológicas elaboradas a partir da mesma lógica desenvolvimentista e produtivista que provoca as mudanças climáticas. Criticamos soluções que não reconheçam os povos indígenas e comunidades locais como o ponto central na defesa das florestas, da diminuição do desmatamento e das queimadas, e como essenciais para a garantir que a meta declarada de manter o aquecimento global abaixo de 1,5 graus Celsius”, destaca trecho da mensagem da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) aos líderes mundiais, empresários, gestores públicos e organizações da COP26. Sônia Guajajara, destacada líder indigena brasileira, conhecida no Brasil e em todo o mundo e coordenadora da APIB, está em Glasgow, numa delegação coordenada pelos assessores estratégicos internacionais, Marcus Vinicius Ribeiro & Zachary Kuipers, do 4H5H MEDIA. “Não há solução para a crise climática sem a demarcação dos nossos territórios”, destaca, lembrando que, comparados às demais terras públicas, os territórios indígenas são os que mais contribuem para o equilíbrio climático. “Então nós precisamos que o mundo inteiro escute o que os povos indígenas têm a dizer”, completa, em entrevista para o novo episódio do podcast Infraestrutura Sustentável. Os povos indígenas são um exemplo de convivência e de relação de respeito com a floresta e uma riqueza cultural maior que qualquer minério ou produto que podemos extrair das regiões onde vivem. “Preservar os seus direitos é mais importante que qualquer grande obra”, ressalta Sérgio Guimarães, secretário executivo do GT Infraestrutura, uma rede de 40 organizações unidas para debater modelos sustentáveis de desenvolvimento baseados na justiça socioambiental. Ele explica que a floresta é a principal infraestrutura da Amazônia: faz chover na maior parte do Brasil, estabiliza o clima, abriga enorme biodiversidade, garante a sobrevivência dos povos originários e é base para o desenvolvimento do Brasil. Demarcar os territórios indígenas é importante, mas não basta. “É preciso respeitar o modo de vida dos povos indígenas porque é exatamente ele que garante essa preservação que a gente tanto fala. Se hoje nós indígenas somos 5% da população mundial e conseguimos preservar 82% da biodiversidade que ainda resta no planeta é porque nós temos muito a ensinar. E a sociedade inteira precisa entender, respeitar e se reconectar com a Mãe Terra”. Se queremos continuar vivendo neste planeta, deveríamos aprender com quem faz isso desde sempre. Por sorte, essas pessoas estão dispostas a compartilhar esse conhecimento com o mundo. Se os líderes da COP26 derem a seus representantes o destaque que merecem, todo o planeta ganha. Este artigo foi escrito por Alexandre Mansur e Angélica Queiroz e publicado, originalmente, na Exame. Foto: Sonia Guajajara com Principe Charles (APIB/Divulgação)
Para dentro da sala
Governos, empresas, fundos privados e bancos anunciam bilhões em investimento em florestas na COP26. Indígenas pedem mudança de tratamento nas negociações sobre clima Andreia Fanzeres/Operação Amazônia Nativa (OPAN) Na manhã desta terça-feira, a presidência da COP26 promoveu um evento sobre florestas e uso do solo, um tema estratégico para enfrentar o aquecimento do planeta. Falaram muitos chefes de Estado, recepcionados pelo primeiro ministro britânico Boris Johnson, como o presidente da Colômbia, Iván Duque Márquez, o presidente da Indonésia, Joko Widodo, da República Democrática do Congo, Félix Tshisekedi, entre outros líderes de nações que detém importantes extensões de florestas tropicais e experiência em políticas ligadas à sua gestão e manejo. A ausência do Brasil, por todos os avanços que fez historicamente nessa área, foi gritante e incômoda. A participação do Brasil se restringiu à brevíssima aparição de Jair Bolsonaro em um vídeo exibido no intervalo com falas gravadas por alguns dos 105 líderes mundiais signatários da “Declaração de Glasgow sobre Florestas e Uso do Solo”, em que se disse comprometido com o fim do desmatamento ilegal até 2030. A mensagem do presidente brasileiro apareceu após outras, como a do russo Vladmir Putin, também curta e pouco empolgante. Pelo sofrível desempenho ambiental em seus países, os dois não inspiraram nenhuma credibilidade. Apesar de ter sido um encontro de líderes, com a participação anfitriã do Príncipe Charles, além de CEOs das empresas multinacionais mais ricas do mundo e de banqueiros com discurso e comprometido com a luta pelo equilíbrio climático, quem brilhou foram os povos indígenas. O reconhecimento de seu papel para o enfrentamento das mudanças climáticas por meio da preservação de seus territórios, sua cultura e respeito aos seus direitos se expressou pela menção inescapável nas falas de cada um dos líderes dos países. “Eu sou uma mulher indígena que vê as florestas como lar e não como commodity. Demoramos 25 COPs para os países entenderem que os povos indígenas têm um papel chave no enfrentamento das mudanças climáticas”, discursou Hindou Ibrahim, ativista ambiental feminina do Chad, e atual co-presidente indígena do Grupo de Trabalho Facilitador da Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas da UNFCCC. Ela subiu ao palco sozinha para dizer, de modo gracioso, verdades inconvenientes. “Alguns governos e empresas nesta sala são responsáveis pelo desmatamento que estamos prometendo acabar”, disse. “Hoje, neste evento, os povos indígenas trazem algo especial para a mesa. Nós temos PhD em manejo sustentável das florestas. Somos campeões do clima, vemos a natureza como medicina, como conhecimento. Temos o mapa, sabemos para onde estamos indo, sabemos como dirgir, então, girem a chave”, pediu Hindou. Ambição anunciada Como resposta à provocação de Hindou, durante o evento ocorreram diversos anúncios importantes de países, empresas, bancos e fundações. Política, a “Declaração de Glasgow sobre Florestas e Uso do Solo”, enfatiza o papel das florestas, da biodiversidade e do uso sustentável do solo para o alcance das metas climáticas firmadas no Acordo de Paris, reafirma o compromisso dos países, reconhece que tanto global como nacionalmente serão necessárias ações transformadoras ligadas à produção, consumo, infraestrutura, comércio, financiamento e o apoio a povos indígenas e comunidades tradicionais que têm um papel chave na defesa das florestas. Outras foram mais objetivas. O presidente colombiano afirmou que até o ano que vem vai assegurar como área protegida 30% de seu território, mesmo sendo responsável por bem menos de 1% das emissões mundiais. E anunciou, ainda, aumento da punição a crimes ambientais. Ali Bongo, presidente do Gabão, fez um apelo para a preservação da bacia do rio Congo. “Ela é o coração e os pulmões da África. Não podemos vencer as mudanças climáticas a menos que mantenhamos nossa região viva”, disse. Ursula Gertrud von der Leyen, atual presidente da Comissão Europeia, destacou o investimento de um bilhão de euros para proteção, restauração e manejo sustentável de florestas em cinco anos. Jeff Bezos, fundador da Amazon, prometeu 2 bilhões de dólares para apoiar sistemas alimentares e restauração florestal pelo mundo e, junto com Alan Jope, CEO da Unilever, representaram a LEAF Coalition (Lowering Emissions by Accelerating forest Finance – Diminuindo Emissões por meio da Aceleração de financiamento florestal – tradução livre), uma coalizão de companhias e governos que mobilizou um bilhão de dólares para apoiar países engajados na redução do desmatamento e na proteção de florestas tropicais e sub-tropicais. Segundo a coalizão, os governos do Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Amazonas e Tocantins já se inscreveram para acessar esses fundos. Além disso, diretores de mais de 30 instituições financeiras com ativos que somam mais de 8.7 trilhões de dólares se comprometeram a eliminar o investimento em atividades ligadas ao mercado de commodities agrícolas que provocam desmatamento. “Nós continuaremos a nos envolver de forma significativa com as comunidades tradicionais e indígenas como especialistas em proteção e gestão da biodiversidade e dos recursos naturais, ao mesmo tempo em que respeitamos seus direitos às suas terras, cultura e espiritualidade”, afirma o documento. Ainda, 10 das maiores empresas do agronegócio no mundo, incluindo AMaggi, Bunge, Cargil e JBS, anunciaram seu compromisso de evitar perda de biodiversidade em processos ligados às suas atividades. Outro anúncio importante foi o aporte de 1.7 bilhão de dólares para apoiar ações ligadas à adaptação e mitigação de comunidades locais e povos indígenas, proveniente dos governos do Reino Unido, Alemanha, Estados Unidos e Holanda, além de 17 fundos privados. Esta, sem dúvida, foi uma sinalização positiva dos países frente a anos de pleitos indígenas por financiamento. “Este é um dia histórico, mas não só por este anúncio dos USD 1.7 bilhão, mas porque os povos indígenas falaram nesta sala, sentaram na mesa junto com os líderes mundiais dos países”, lembrou Darren Walker, presidente da Fundação Ford, um dos doadores, referindo-se à participação do líder indígena equatoriano Tuntiak Katan, que, como Hindou, também discursou no evento junto com os chefes de Estado e empresários. “Temos que garantir que políticas sejam centradas na liderança, na capacitação e no poder dos líderes indígenas. Eles não vão ficar mais la fora da sala pedindo pra entrar”, comemorou Walker.