A Amazônia que queremos e precisamos
Pacto de Letícia pretende ser instrumento para que países amazônicos colaborem mutuamente, mas não responde a várias perguntas fundamentais Por Claudio de Oliveira* A Amazônia não é brasileira. Nem colombiana, nem peruana, nem equatoriana… a Amazônia atravessa fronteiras como os rios que não pedem permissão para seguir com sua trajetória rumo ao mar. Nós, brasileiros, temos sim a maior fatia desse inigualável patrimônio da biodiversidade; água, clima, saberes ancestrais, mas enxergar a Amazônia sob a ótica do desenvolvimento sustentável, por mais desgastado que pareça estar esse conceito, exige transpor fronteiras, pensar fora da caixa. Em setembro de 2019, sete países amazônicos aprovaram o Pacto de Letícia. Representantes de Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname se reuniram na cidade homônima, que fica na Colômbia, mas faz uma fronteira tríplice que inclui Brasil e Peru, e assinaram um acordo que estabelece 16 pontos nos quais concordaram em colaborar mutuamente, entre eles: combate ao desmatamento, uso sustentável dos recursos, enfrentamento de desastres naturais, incentivo à bioeconomia, etc. Apesar de ter nascido como uma política de enfrentamento aos graves incêndios que assolaram a região, o Pacto pretendeu ir além, como uma iniciativa plurinacional para a abordagem dos desafios e o aproveitamento das oportunidades. Mas será que conseguiu? Quais pontos exigem nossa atenção? O Pacto foi celebrado de forma genérica, apenas por governos, sem a participação das pessoas que vivem na Amazônia. Não há definições mais precisas do que é entendido como bioeconomia e como esta se relaciona com a população e a economia local; nem está claro quais são as metas assumidas para o desmatamento e para a restauração florestal e como enfrentar as atividades predatórias e a mudança do uso do solo pressionada por grandes vetores econômicos. Como melhorar a proteção dos defensores ambientais? Como garantir o respeito aos territórios indígenas? Como incorporar a visão de mundo amazônida, “o bem viver”, em detrimento da exploração capitalista sem medida? O Pacto de Letícia foi pensado de cima para baixo, ou seja, sem a participação das comunidades tradicionais, dos indígenas, das organizações socioambientais que atuam na região há anos. Como se um arquiteto lhe apresentasse um projeto para a sua casa sem conversar com você. Não há um processo transparente de participação no âmbito do planejamento e tampouco no monitoramento dos recursos e ações. O contexto de violação de direitos humanos e de crimes ambientais e fundiários pode ser agravado ainda mais se não houver monitoramento e governança adequados. Somente em 2020, a Amazônia perdeu quase 2,3 milhões de hectares de floresta primária nos nove países amazônicos, o que representa um aumento de 17% em relação ao ano anterior (2019), e o terceiro maior valor desde 2000. A insistência na implantação de mega infraestruturas como a UHE Belo Monte, por exemplo, também agrava as violações. No final de 2021, em torno de 70 organizações da sociedade dos países signatários do Pacto de Letícia e de outros países firmaram uma Carta de recomendações aos membros do Pacto. Entre as propostas prioritárias estão: – Estabelecer processo de diálogo multi-stakeholder para rever o Pacto e suas estratégias de implementação; – Tornar o planejamento do Pacto transparente a nível nacional e garantir mecanismos de monitoramento e avaliação participativos e independentes inclusive na implementação do mesmo; – Incluir instrumentos, estratégias e metas para garantir o reconhecimento e a regularização dos direitos territoriais dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais; – Incluir iniciativas dos povos indígenas para a proteção da Amazônia; – Proteger os defensores ambientais e indígenas. Nesse aspecto, o acordo de Escazú é um elemento chave para o desenvolvimento do Pacto; – Incorporar uma visão inclusiva da bioeconomia, bem como, eliminar créditos e incentivos fiscais ao desmatamento, com apoio para a recuperação de áreas degradadas; – Construir uma estratégia clara e inovadora de infraestrutura sustentável e inclusiva em nível local e regional, incorporando lições para evitar a repetição de erros históricos, com prioridade para as necessidades e iniciativas de subsistência das comunidades amazônicas no campo e nas cidades. -A Iniciativa Amazônica do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, que foi aprovada na Terceira Reunião de Cúpula do Pacto de Letícia prevê o investimento direto via Fundo Verde do Clima (GCF) de U$ 279 milhões em Bioeconomia que, segundo critérios apresentados vai favorecer a agrofloresta sustentável, o cultivo de palmeira nativas, espécies nativas para produção madeireira, produtos florestais naturais não-madeireiros, aquicultura e turismo de natureza focado em comunidades locais. A luta é para que as populações que moram na Amazônia, nas cidades, nas aldeias, nas vilas; sejam elas indígenas, quilombolas, ribeirinhos ou organizações que lhes dão suporte, possam ter acesso a esses recursos, participar do processo de planejamento desses investimentos, de modo a manter uma consonância com os anseios locais e não olhar, passivamente, enquanto o capital avança sobre a floresta, sobre os recursos naturais e sobre os direitos humanos atendendo a meia dúzia de pessoas e grupos econômicos que muitas vezes nem a Amazônia conhecem. Esperamos que a infraestrutura seja para a Amazônia e suas populações e não na Amazônia, que possa atender às cadeias de valor e aos empreendimentos locais. No início da reunião anual do BID, neste 28 de março de 2022, a sociedade civil organizada dos países amazônicos fez um pronunciamento de alerta. A transparência, a governança e as salvaguardas apregoadas pelo BID precisam ser colocadas em prática e não ficarem penduradas em quadro na parede do departamento de Sustentabilidade – pra inglês ou indígena ver. * Claudio de Oliveira é jornalista, consultor do Instituto Centro de Vida/ICV, membro do GT Infraestrutura, mestre em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT). Este artigo foi, originalmente, publicado no Um Só Planeta.
A água nossa de cada dia e as violações de direitos

Vários projetos os ameaçam no Norte do país, o que também prejudica o direito à água de quem vive na região. Saiba em que tipo de projetos deveríamos estar pensando Iremar Antonio Ferreira* Hoje, dia 22 de março, é o Dia Mundial da Água, um recurso que perpassa várias infraestruturas fundamentais para as comunidades de qualquer localidade. A data comemorativa é também um lembrete de que não temos muito a comemorar, especialmente na região da Amazônia. Além de boa parte da população ainda não ter acesso a serviços básicos, como água e esgoto, os rios da região estão ameaçados. Como explicar que viver cercado de água nem sempre significa ter água para beber? No primeiro episódio de 2022 do podcast Infraestrutura Sustentável, produção do GT Infraestrutura, eu conversei com o secretário executivo da rede, Sérgio Guimarães, sobre alguns desses motivos. Seja nas bacias dos rios Madeira ou do Xingu, nos rios Teles Pires, Tapajós ou Juruena, um conjunto de obras do governo federal tem provocado consequências irreparáveis nos direitos dos povos e populações que habitam esses territórios. Essas ameaças nos remetem a um processo de colonização desenfreada, desencadeada a partir da década de 1970, com motivações de ocupar para não integrar — lemas do regime militar —, numa tônica que prevalece até hoje. São grandes projetos, que “favorecem a nação”, sem pensar nas comunidades tradicionais, povos indígenas e migrantes que foram chegando à região. Desde então, a bacia do Rio Madeira vem sofrendo, desenfreadamente, ofensivas. Dentro de uma perspectiva desenvolvimentista e para atender a uma demanda energética sob o fantasma do “apagão”, no início dos anos 2000, começaram estudos para o chamado Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, que é uma dessas grandes ameaças, com licenciamento vicioso, que não considerou participação popular, para começar a citar os problemas. Essa obra também está associada à expansão de uma uma hidrovia, que, aos poucos, está se consolidando, para viabilizar o escoamento de soja, outro ponto que merece destaque, pois coloca veneno dentro dos rios. Os impactos já podem ser vistos. Há pouco tempo, o Rio Jamari transbordou, ocupando a BR 364 por três dias, resultado do desmatamento desenfreado, que acelera o processo de assoreamento. Esse conjunto de obras se somam gerando impactos e violações de direitos aos nossos povos e comunidades e afetam o direito à água. A água na Bacia do Rio Madeira está poluída e contaminada por essas intervenções mal feitas em nome desse “desenvolvimento”, que arranca as pessoas de seus lugares e se ocupa de um processo mercantilista de escoamento de riquezas, que deixa suas populações, literalmente, à margem. A cidade de Porto Velho, capital de Rondônia, não tem 2% de água tratada. Até lençol freático já está contaminado, o que nos leva também ao tema do saneamento básico, que afeta o direito à saúde da nossa população. Quem tem dinheiro compra água mineral, quem não tem usa a água que tem, muitas vezes contaminada. A insegurança alimentar e nutricional gerada a partir da implementação desses projetos é um outro problema pouco falado, mas grave. Toda a produção de várzea que as populações tinham, se perdeu, pois não temos mais o tempo das cheias naturais. As áreas ou estão extremamente secas ou alagadas antes da hora, porque quem domina o percurso dessas águas são as empresas. Temos hoje comunidades que vivem na beira do Rio Madeira e precisam comprar farinha na cidade porque não conseguem mais ter produção de mandioca. Nem peixe tem mais, pois o barramento do rio proibiu a migração natural das espécies que lá viviam. É importante lembrar que, na Amazônia, os rios também são estradas. E a implementação de hidrovias está afetando o direito de ir e vir das populações, principalmente para as pequenas embarcações, já que as grandes balsas, carregadas de petróleo e soja, estão destruindo o rio. Isso sem falar em um dos assuntos do momento: os garimpos ilegais. É muito mercúrio sendo jogado no Rio Madeira, que virou um depósito de contaminantes para alimentar uma cadeia produtiva. O problema aumenta porque, lamentavelmente, esta é uma atividade motivada por quem deveria fiscalizá-la, como nos mostra claramente este projeto que quer legalizar a extração de minérios em territórios indígenas. Tão grave, que diversos setores da economia que até poderiam se beneficiar disso, se manifestaram contra. O GT Infraestrutura trabalha com a “infraestrutura que queremos”, que diz respeito a projetos que atendam as pessoas da Amazônia e não que sejam apenas na Amazônia. Pensando nessa lógica, acredito que precisamos mudar a lógica atual, que é de saque. Temos que olhar para a floresta, com toda a sua diversidade, como um sujeito de direito. E, principalmente, a água. Nesse sentido, temos muito a aprender com os povos indígenas, que vêm demonstrando resistência há mais de 520 anos, junto com as populações tradicionais, que foram aprendendo a conviver com a natureza, respeitando-a. Sem esquecer que cuidar da floresta é também garantir chuva e água nos rios. Muito mais que um serviço ambiental, estamos falando de um serviço ecossistêmico que está ameaçado porque a Amazônia de hoje está perdendo milhares de hectares ano a ano e não é mais a mesma. Precisamos considerar a Amazônia como um todo, com seus povos e culturas e sua etnobiodiversidade, entendendo que ela é formada por ecossistemas diferentes e cada um tem o seu potencial. É preciso que as políticas públicas olhem para isso, garantindo os territórios, fundamentais para o equilíbrio do Brasil e do planeta como um todo, que precisa de uma floresta em pé, não deitada. As soluções já existem. Embarcações, por exemplo, podem funcionar com energia solar e não com combustível poluente. Nossas comunidades da beira do rio precisam de potabilizador de água para não continuarem tomando água contaminada. Ao invés de hidrelétricas, podemos investir em fontes de energia renováveis. Nós temos caminhos, mas é preciso ter esse carinho de olhar e ver que a Amazônia não é um balcão de negócio, mas é um grande negócio sim. Para o futuro, para a vida, não para alimentar lucro. Temos
Sinais trocados: a quem interessa novas grandes hidrelétricas na Amazônia?

Alessandra Mathyas, Sérgio Guimarães e Brent Millikan* Em meados de janeiro, duas notícias de certa forma antagônicas surpreenderam quem acompanha o setor energético brasileiro. A primeira foi a abertura de consulta pública do Plano Decenal de Energia – PDE 2031, desenvolvido por equipe multidisciplinar da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia. A outra, o anúncio da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) de prorrogação de estudos de viabilidade de três grandes hidrelétricas na Bacia do Tapajós. Por que esses dois fatos são antagônicos? Vamos discorrer. O PDE 2031 detalha em um capítulo inteiro sobre questões socioambientais, o impacto das mudanças climáticas no setor energético, fazendo alusão às “incertezas quanto à disponibilidade hídrica futura”. Segundo a análise apresentada no plano, “embora haja imprecisões e limitações dos modelos de projeção climática, há conclusões concretas de que ocorre uma mudança nos padrões de temperatura”, o que deverá acarretar “prováveis reflexos nas precipitações”. Soma-se aí a questão pluviométrica, a demanda pelo uso da água em outros setores e mudanças no uso e cobertura do solo (desmatamento), que afetam diretamente o regime de chuvas e as reservas subterrâneas que chegam aos rios. Ainda assim, o plano traz um cenário com oito novas usinas hidrelétricas previstas para entrarem em operação nos próximos dez anos. Os últimos dois anos já colocaram em xeque o parque gerador hídrico brasileiro. Não à toa foi necessário acionar mais térmicas, sobretudo desde julho de 2021, chegando a um montante de 26% do total de energia consumido no país (17 mil MWmed). As chuvas do fim do ano trouxeram um certo alívio na vazão e nos reservatórios, mas a população brasileira continua e continuará pagando a conta dessa geração termelétrica, em sua maioria fóssil — com fortes implicações para as emissões de gases de efeito estufa —, pelo menos nos próximos 5 anos. O que nos leva a concluir que fica muito difícil planejar à luz da disponibilidade dos reservatórios, sobretudo quando há excessiva dependência na hidroeletricidade, lembrando que estudos indicam que os efeitos do clima sobre o regime de chuvas e reservas hídricas serão cada vez maiores, com previsão de redução de vazões, inclusive na Amazônia. Anunciar agora estudos de mais três grandes hidrelétricas na Amazônia, além das três barragens mencionadas que já constam do PDE 2031, passa a impressão de que se trata de uma “medição da temperatura” de agentes do governo em ano eleitoral. Segundo notícias da ANEEL, as três usinas seriam localizadas no Rio Jamanxim, afluente do Rio Tapajós, sendo denominadas Jamanxim, Cachoeira do Caí e Cachoeira dos Patos, totalizando 2,2 MW de potência. Juntas as barragens alagariam mais de 60 mil hectares, inclusive áreas significativas do Território Indígena Sawre Muybu, do povo Munduruku, do Parque Nacional de Jamanxim e das Florestas Nacionais Jamanxim, Itaituba 1 e Itaituba 2. Na realidade, a ANEEL está tirando do baú projetos antigos, previstos há mais de dez anos como parte do chamado “Complexo Tapajós”, que incluiria grandes barragens polêmicas no eixo principal do rio Tapajós: São Luiz do Tapajós, Jatobá e Chacorão. Em 2016, o IBAMA suspendeu o licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, por graves falhas nos estudos de impacto ambiental, inclusive quanto a seus efeitos cumulativos com outros projetos. Somou-se à justificativa pela suspensão o fato de que alagaria parte do Território Indígena Sawre Muybu, resultando no deslocamento forçado de comunidades indígenas, o que seria inconstitucional. Nos últimos anos houve um esvaziamento de empresas internacionais, como a Engie (ex-GDF Suez) e a EDF do consórcio de empresas “Grupo de Estudos Tapajós” liderado pela Eletrobras, que estava conduzindo os estudos de impacto ambiental e viabilidade de grandes barragens. Agora, com a privatização da Eletrobras e ameaças de graves retrocessos na legislação sobre o licenciamento ambiental e direitos indígenas, há ainda mais dúvidas sobre a governança de tais projetos, gerando mais insegurança sobre riscos jurídicos, financeiros e de reputação, com fortes implicações para a atratividade desses projetos para investidores internacionais. Há ainda outros fatores que temperam esse caldeirão de contradições que tenta ressuscitar hidrelétricas já rejeitadas no passado. O Brasil cada vez mais quer entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas para isso precisa seguir critérios socioambientais bastante rígidos. As questões jurídicas e judiciais que envolvem até hoje as últimas grandes usinas hidrelétricas na Amazônia (Santo Antônio, Jirau, Belo Monte, e Teles Pires, entre outras), somadas aos danos ambientais e à violação de direitos de povos originários são pontos negativos para o país. O Brasil estaria mesmo disposto a ampliar a negatividade no ambiente internacional ao continuar defendendo grandes hidrelétricas, num contexto de mudança climática acelerada e sobretudo num bioma já tão ameaçado? Bioma este que, por outro lado, dispõe de um potencial energético bastante grande para energia solar e as mais variadas fontes de biomassa? Estaria disposto a pôr em risco o bioma e seus habitantes, em disputas jurídicas intermináveis que atrasam e inviabilizam economicamente um empreendimento do porte de uma grande hidrelétrica e das linhas de transmissão necessárias? Lembremos que o custo inicial de Belo Monte foi de R$ 16 bilhões mas até a inauguração da última turbina, em 2019, já passava de R$ 40 bilhões, sem contar o valor do dano ambiental, orçado timidamente em mais de R$ 1 bilhão. Voltando ao PDE 2031, onde prevê-se para o decênio a insistência na construção das hidreletricas de Bem Querer, Tabajara e Castanheira na Amazônia, e tendo como supostos argumentos os custos da mudança do clima sobre o setor energético, não faz sentido, num ano eleitoral tão importante, que volte à baila a ameaça de grandes barragens em bacias hidrográficas já tão sensíveis a outros danos como o garimpo ilegal, o desmatamento, a perseguição a lideranças indígenas e comunitárias. As justificativas de que tais usinas também levariam desenvolvimento sustentável para a região, empregos, infraestrutura além de serem mais baratas que outras fontes, não se sustentam inclusive pelo histórico desse tipo de empreendimento na região. Os municípios sede dos empreendimentos têm IDHs mais baixos na região. E os empregos
Como o agro se beneficia do desmatamento?

O desmate foi um elemento estruturante de consolidação da nossa economia agroexportadora no século passado e continua sendo prática corrente para expansão da fronteira agrícola nos dias de hoje *Jaqueline Ferreira A ministra Tereza Cristina já afirmou que não é mais necessário desmatar para produzir, assim como fizeram outros que ocuparam a pasta. Muitas lideranças do setor agropecuário dizem não ter nenhuma relação com o desmatamento e a expansão da fronteira agrícola porque não estão com a motosserra na mão. “É preciso prender quem desmata”, “é preciso coibir a grilagem de terras”, “nós seguimos o Código Florestal”, “se 90% do desmatamento é ilegal, bastaria aplicar a lei que tudo estaria resolvido”, afirmam. O que se omite nessa narrativa é que o destino da terra desmatada, legal ou ilegalmente, é o mercado de terras. Terra é um insumo fundamental para a produção agropecuária. E no caso do Brasil, a disponibilidade desse insumo parece não ter fim. Entre 1985 e 2020, desde o início do monitoramento sistemático do uso da terra no país, 82 milhões de hectares de vegetação nativa foram ao chão. No mesmo período, a área ocupada pela agropecuária teve um incremento total de 81 milhões de hectares. Não faltam evidências sobre o que vem acontecendo com as áreas desmatadas: viram pasto e área de cultivo agrícola. O desmatamento foi um elemento estruturante de consolidação da nossa economia agroexportadora no século passado e continua sendo prática corrente para expansão da fronteira agrícola nos dias de hoje. Mesmo em 2012, ano que registrou menores taxas de desmatamento, nós perdemos 4,6 mil km² de florestas nativas na Amazônia. Não é pouco. A expansão de área cultivada é uma estratégia do agronegócio brasileiro para aumentar sua produção e competitividade. Os cultivos mais modernos, que usam de alta tecnologia para produzir mais por hectare, como é o caso da soja, também apresentam tendência crescente de aumento da área cultivada. O estudo do Instituto Escolhas, Como o Agro se beneficia do desmatamento?, lançado na quinta-feira (17/02), traz dados relevantes para entendermos melhor esse imbricamento do setor com o desmatamento. Ao analisar o efeito econômico dessa prática sobre o preço da terra e dos produtos agropecuários, o estudo revela que o desmatamento ocorrido entre 2011 e 2014 desvalorizou o estoque de terra de 93,5% dos municípios brasileiros. Se ele não tivesse ocorrido, elas valeriam R$ 136,7 bilhões a mais em 2017. A depreciação foi maior nos municípios onde a fronteira agrícola expandiu, localizados em sua maioria na Amazônia Legal e na região conhecida como Matopiba – fronteiriça entre o Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Bahia –, onde a depreciação do valor do estoque de terra chegou a 25%, o que soma mais de R$ 83 bilhões. 50% de toda a desvalorização da terra observada no país está concentrada em 61 municípios com esse perfil. O valor do hectare de terra em São Félix do Xingu, no Pará, município com maior depreciação verificada, foi de R$ 2.476 em 2017. Sem o desmatamento dos anos anteriores, o preço teria chegado a R$ 6.606 por hectare. O desconto significativo de R$ 4.130 por hectare beneficiou o produtor desse município que expandiu sua área de cultivo, mesmo que ele não tenha derrubado uma só árvore. O efeito também é sentido no preço das commodities, cujo principal produto afetado é a soja. O desmatamento provocou redução de R$ 3,10 no preço médio da saca de 60kg, o que se percebe de maneira mais intensa, mais uma vez, nos municípios em expansão da fronteira agrícola. Preços mais baixos de terra e de commodities trazem maior competitividade para o setor. O que o estudo mostra é que o desmatamento torna mais barato para o Brasil cumprir sua grande vocação na visão do agronegócio: fornecer soja e carne para o mundo. Entretanto, fica mais barato para uns produtores do que para outros, prejudica aqueles que não podem expandir sua área de cultivo e deprecia o ativo terra do país como um todo. A conta desastrosa nem leva em consideração a perda da biodiversidade e o agravamento da crise climática, que já prejudica a própria produção agropecuária. Também não considera que fatores de produtividade, como acesso a orientação técnica e infraestrutura, trazem ganhos muito maiores de competitividade do que o desmatamento pode trazer, conforme mostrou o estudo. Será mesmo que, para acabar com o desmatamento, basta aplicar a legislação existente? Enquanto o setor mais promissor do país, com grande representação nos poderes executivo e legislativo, não abandonar a lógica de operação que consiste em expansão de área, o problema vai continuar. Atos oficiais de regulação fundiária que premiam quem desmata e disponibilizam a entrada de novas áreas no mercado de terra precisam cessar. E se é o bolso que fala mais alto na hora de expandir a área cultivada, é pelo bolso que vamos conseguir constranger o setor a mudar. Já passou da hora de clientes e financiadores exigirem o fim do desmatamento nas cadeias produtivas do agronegócio brasileiro. Assim como, os inúmeros instrumentos de financiamento público – crédito, anistia de dívida, isenção fiscal, entre outros – precisam parar de beneficiar o produtor que desmata e seus compradores. *Jaqueline Ferreira é gerente de Portfólio do Instituto Escolhas Este artigo foi originalmente publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.
Meio ambiente fora dos planos de infraestrutura

Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura é bem-vindo, mas não considera questões socioambientais relevantes Por Joana Chiavari e Luiza Antonaccio* Apesar da demanda crescente de investimentos em infraestrutura no país, permanecem falhas estruturais na governança dos investimentos públicos e privados pelo governo. A ausência de um planejamento abrangente de longo prazo para o setor tem sido a face mais visível de uma governança frágil que acarreta muitas vezes em decisões sendo tomadas seguindo a lógica do ciclo político e a seleção de projetos que carecem de suficiente racionalidade e integridade. Neste sentido, é muito bem-vinda a publicação do Plano Integrado de Longo Prazo da Infraestrutura: 2021 – 2050 (PILPI), no final de 2021, pelo Comitê Interministerial de Planejamento da Infraestrutura. Esse documento supre uma lacuna importante ao adotar o primeiro plano intersetorial de longo prazo do setor de infraestrutura na história democrática recente do país. O PILPI representa um passo significativo para alavancar a infraestrutura como um poderoso instrumento capaz de alcançar os objetivos nacionais de desenvolvimento, mas o imperativo da sustentabilidade precisa fazer parte integral desta estratégia. Ocorre que o PILPI perde a oportunidade de considerar, desde o planejamento, questões socioambientais relevantes que podem definir a viabilidade de projetos e atrair investimentos para o setor. Considerar questões socioambientais desde a fase de planejamento permite aprimorar o processo de seleção dos projetos, fazendo com que essas questões sejam analisadas e aprofundadas de forma progressiva. Essa medida aumentaria a segurança no ambiente de negócios e atrairia potenciais investidores, ao permitir que apenas projetos robustos e de qualidade chegassem à fase de implementação. Atualmente, a avaliação dos impactos socioambientais acontece tardiamente e é concentrada na fase do licenciamento ambiental, fazendo com que esse instrumento acabe se tornando um gargalo. No entanto, não há impeditivos para antecipar a análise socioambiental já a partir da fase de planejamento, e uma das formas de fazê-lo seria, justamente, incluir esta análise nos instrumentos de planejamento, em especial no PILPI. Isso já ocorre no setor de energia elétrica, por exemplo, que demonstra mais maturidade ao tratar desse tema, ao prever que todos os estudos do plano de longo prazo do setor – o Plano Nacional de Energia (PNE) – devem levar em consideração aspectos socioambientais, além de incorporar esses aspectos nas projeções de cenários. O PILPI prevê que as projeções de sustentabilidade ambiental se baseiem na Estratégia Federal de Desenvolvimento (EFD), um instrumento de planejamento de médio prazo, uma vez que nela são estabelecidos índices-chave e metas tangíveis para o eixo ambiental. No entanto, estes parâmetros podem não ser suficientes, uma vez que não incluem, por exemplo, desmatamento e a proteção de biomas, fatores essenciais para avaliar a viabilidade de projetos de infraestrutura, especialmente na região Amazônica. O PILPI faz referência, ainda, ao Guia Geral de Análise Socioeconômica de Custo-Benefício de Projetos de Investimento em Infraestrutura (Guia ACB) e, no caso do setor de transportes, também ao Plano Nacional de Logística (PNL) 2035. Ambos documentos, todavia, incorrem em limitações semelhantes à EFD. A importância de um novo planejamento é clara para viabilizar novos projetos, não só para a retomada da economia no pós-pandemia, mas, principalmente, para melhorar o bem-estar da população e a competitividade das empresas. Entretanto, o processo de planejamento precisa refletir um modelo sustentável de desenvolvimento para, a partir deste modelo, determinar quais demandas de serviços de infraestrutura e ativos subjacentes podem ser projetados no médio e longo prazos. Existe uma oportunidade clara para que o PILPI passe a incorporar componentes socioambientais na seleção de projetos que não deve ser desperdiçada. *Joana Chiavari é Diretora Associada do Climate Policy Initiative (CPI/PUC-Rio) e Luiza Antonaccio é Analista Legal Sênior, Direito e Governança do Clima do CPI/PUC-Rio. Este artigo foi, originalmente, publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta. Imagem: Pixabay
As empresas devem entrar no debate sobre cidades sustentáveis na Amazônia

Para viabilizar as adaptações necessárias, setor precisa ouvir quem vive nos locais mais vulneráveis, como é o caso das cidades amazônicas Não dá mais para negar. As mudanças climáticas deixaram de ser um alerta que parecia distante e estão aí. Mudanças nos padrões de chuva, seca e temperatura já fazem parte do nosso dia a dia e estamos sofrendo os impactos delas em todas as regiões. São Paulo passou por uma crise hídrica violenta em 2013 e agora está passando por outra. As chuvas de verão da última temporada provocaram inundações, desabamento, interdição de estradas, destruição de prédios históricos e mortes em Minas Gerais e na Bahia. Uma onda de calor fora do normal na região Sul já está perturbando a vida das pessoas gerando problemas de saúde ou, no mínimo, dependência de ar condicionado. A elevação do nível do mar também está causando problemas de salinização no maior rio do mundo, o Amazonas, deixando comunidades ribeirinhas do Amapá sem água potável. Esses são só alguns exemplos, temos tantos que esse artigo poderia ser inteiro uma lista deles. Mas vamos tentar falar do que podemos fazer, além de mudar de adotar hábitos mais sustentáveis no nosso dia a dia e exigir políticas que mitiguem esses efeitos num futuro próximo. Vai ser preciso e urgente adaptar as cidades ao novo clima e também mudar suas dinâmicas para que elas também emitam menos, ou seja, para que a gente não fique enxugando gelo enquanto o calor aumenta cada vez mais. E essa adaptação vai gerar negócios. Teremos muito trabalho pela frente. Vamos precisar melhorar os canais, criar parques, áreas verdes e outras soluções para reduzir a impermeabilização do solo, como telhados verdes ou jardins de inundação. Também vamos precisar investir em sistemas de uso mais eficiente de água e energia e em cidades mais preparadas para conviver com o calor, com mais arborização, prédios que esquentam menos e aproveitem, por exemplo, ventilação e luz natural, o que também ajuda a reduzir as emissões das cidades. Mesmo soluções mais simples, como reciclar o lixo e investir em ciclovias e transporte público, ainda não são realidade em muitas das nossas cidades, especialmente as fora do eixo sul-sudeste, mas precisam passar a ser. Isso sem falar no potencial criativo para novas soluções, que são muito bem-vindas. Tudo isso gera negócios que, além de emergenciais e de extrema importância, serão bem pagos, justamente por isso. As empresas, que vão oferecer esses serviços e soluções precisam, além de boas ideias, participar das discussões sobre o assunto. Isso porque está cada vez mais claro que ideias pensadas em um escritório podem não ser as melhores saídas para quem, de fato, vive nas regiões onde elas serão aplicadas. É o caso dos municípios amazônicos, que possuem muitas especificidades que as tornam, inclusive, mais vulneráveis às mudanças climáticas, como o fato de serem banhadas por rios e a grande distância entre as cidades. E essa é uma região chave, na qual o planeta todo está de olho. Já sabemos que para cuidar das florestas, precisamos cuidar das cidades, mas, para isso, precisamos conversar com quem vive nelas. As organizações da sociedade civil e lideranças locais são peça-chave nesse processo, pois sabem do que estão falando e conhecem mais do que ninguém soluções para os problemas que enfrentam. Isso quer dizer que o conhecimento das populações locais e comunidades tradicionais é fundamental para o planejamento de cidades sustentáveis. O que as empresas devem fazer então? Ouvir e, sem seguida, colocar a mão na massa. Para Fábio Ferraz, economista e pesquisador da urbeOmnis, o debate sobre sustentabilidade urbana ou cidades sustentáveis tem de se dar de modo interinstitucional, o que inclui a participação ativa das empresas e da iniciativa privada em geral. “Se, por um lado, os cidadãos e consumidores tendem cada vez mais a optar por produtos e serviços que agreguem a responsabilidade socioambiental, por outro, os órgãos públicos também tendem a criar novas regulamentações que implicam em maior controle sobre os impactos das atividades econômicas, assim como priorizar fornecedores ‘mais sustentáveis’. Some a isso uma multiplicidade de oportunidade de negócios e lucros que estão surgindo com a economia circular, de baixo-carbono e tantas outras novas economias”, afirma. Fábio é coordenador do projeto “Nós Fazemos a Cidade”, desenvolvido pelo GT Infraestrutura em parceria com Fundo Casa Socioambiental e Fundação Vitória Amazônica, que lançou um guia, um estudo técnico e uma série de vídeos sobre a adaptação das cidades amazônicas às mudanças climáticas. O material está disponível, gratuitamente, no site do GT Infraestrutura, e deixa claro que precisamos pensar em projetos que tenham o foco nas pessoas, pois a infraestrutura do concreto já provou que deve fazer parte do nosso passado, como bem ilustram os exemplos do início desse texto. A Amazônia 2030, iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano de desenvolvimento sustentável para a Amazônia brasileira, também tem as cidades no centro do debate. “Elas são o espaço onde tudo acontece, onde o trabalho se realiza, onde as pessoas se educam, se divertem. Para que haja sucesso no desenvolvimento da Amazônia Legal é preciso não apenas capital físico, recursos naturais que se transformam em matéria-prima, mas também capital humano, ou seja, pessoas qualificadas, e essas pessoas buscam associar ao trabalho, qualidade de vida”, explica Flavia Chein, pesquisadora do projeto e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A especialista destaca que uma cidade sustentável também precisa ter bons indicadores de habitabilidade urbana, ou seja, a habitação tem que ser avaliada em seu sentido mais amplo, englobando o direito à cidade, ou seja, de estar inserida na malha urbana. “Nesse conceito a habitação tem relação com a rede de infraestrutura, possibilidade de acesso aos equipamentos públicos, pertencimento ao território urbano e inclusão, fatores que têm relação direta com a qualidade de vida encontrada nas cidades”, detalha. Ela também deixa claro que pensar a habitabilidade urbana não deve ser apenas um compromisso dos gestores públicos, mas também, inevitavelmente, um compromisso das empresas. “Uma cidade sustentável é capaz de atrair mais
O que esperar das cidades no século XXI

Vivemos o século das cidades habitáveis, inclusivas, resilientes, circulares, sustentáveis e, por consequência, inteligentes Fábio Ferraz* Dizer que o século XXI é o século das cidades significa dizer que as cidades podem atuar como espaços e como protagonistas do processo de substituição dos atuais modelos de produção e consumo que degradam o meio ambiente e perpetuam as desigualdades sociais por modelos mais sustentáveis. Significa também que cada vez mais a população mundial será predominantemente urbana. Em 2020, 4,4 bilhões de habitantes – 56,2% da população do planeta – vivia em cidades com a previsão, segundo a ONU, desse número atingir 6,7 bilhões de habitantes (68,4% da população) em 2050. Ou seja, a população urbana cresce de modo absoluto e relativo. Muito mais em países da Ásia e África que na América e Europa. E se crescem as necessidades de energia e recursos naturais para proporcionar “qualidade de vida” urbana também crescem os níveis de geração de gases de efeito estufa e de resíduos uma vez que se mantêm os padrões de produção e consumo. Em certo sentido, essa é a história do aquecimento global e das consequentes mudanças climáticas. Com a revolução industrial e o início da produção em massa em fins do século XVIII – e mais aceleradamente com o uso de motores a combustão e queima de combustíveis fósseis em fins do século XIX – a humanidade passou a atuar decisivamente para desregular os processos climáticos e ecológicos em níveis locais e globais. Tanto é assim que as variações de temperatura e os estudos sobre aquecimento global realizados pelo IPCC tomam como base os níveis pré-industriais. Importa frisar que urbanização, industrialização e modernização sempre estiveram articuladas e é sobre essa articulação que as cidades se impõem como solução de seus problemas em nível local, regional e global conquanto novas condições sejam estabelecidas. Se por um lado, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável sustentam que as cidades sejam transformadas em ambientes mais inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis, por outro, os meios técnico-científico e negocial sugerem que as mesmas se tornem mais inteligentes e conectadas pelo uso das tecnologias de informação e comunicação. Para não cairmos no discurso fácil, temos de considerar as diferentes realidades das cidades ao redor do mundo sejam por características geopolíticas e econômicas, seja por escala e capacidades administrativas e institucionais. As cidades brasileiras, por exemplo, convivem desde sempre com déficits de saneamento e habitação, transportes e mobilidade, áreas verdes e espaços públicos, mas também déficits de negócios e empregos, saúde e educação. Por outro lado, tais cidades trazem consigo diversas capacidades e oportunidades representadas pelos capitais físico-financeiro, social, humano e institucional. Do mesmo modo, não é possível relegar o papel do governo federal e estados bem como das condições que o pacto federativo – que organiza as leis, arrecadação de recursos, obrigações financeiras e os campos de atuação dos entes federativos – impõe às cidades. Com a constituição de 1988, os municípios (e suas cidades) adquiriram status de ente federativo, mas também receberam diversas responsabilidades as quais têm tido dificuldades em cumprir. Uma vez que as cidades são os lugares de centralidade dos territórios, é das cidades que devem irradiar as políticas ambientais, de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, por exemplo. Não há como a Política Nacional sobre a Mudança do Clima e o Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas serem aplicados devidamente se não por meio dos municípios e, mais especificamente, das cidades sendo o mesmo raciocínio válido para praticamente todas as políticas nacionais de saneamento, habitação, mobilidade etc. Mais do que repetir que o século XXI é o século das cidades, devemos frisar que o mesmo deve ser o século das cidades habitáveis, inclusivas, resilientes, circulares, sustentáveis e, por consequência, inteligentes. Muitas cidades têm avançado nessa articulação e estão transformando suas respostas buscando integrar questões ambientais aos déficits nos sistemas urbanos e à burocracia municipal. Mais ainda, e muito importante, têm buscado envolver a sociedade civil e atores privados nos processos de planejamento e gestão. Um projeto recente, desenvolvido pelo GT Infraestrutura com o apoio do Fundo Casa Socioambiental e da Fundação Vitória Amazônica, ressaltou o papel da sociedade civil organizada na construção de ações de adaptação de cidades amazônicas às mudanças climáticas articuladas às políticas públicas urbanas e ao fortalecimento das capacidades administrativas e financeiras. Na mesma direção, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e, mais recentemente, os Objetivos de Desenvolvimento Urbano Sustentável propostos pela Política Nacional de Desenvolvimento Urbano são grandes oportunidades que se colocam às cidades para buscar resolver seus problemas estruturais e proporcionar melhor qualidade de vida às suas populações mas exigem que parcerias intersetoriais e intergovernamentais sejam consolidadas sob pena de vivenciarmos o século das cidades caóticas. *Especialista em planejamento e gestão de políticas públicas para cidades inteligentes e sustentáveis. Economista, fundador e diretor-executivo da urbeOmnis. Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta. Imagem: Fábio J. Ferraz/urbeOmnis
Por que ter cidades melhores na Amazônia é bom também para preservar a floresta?

Fundamental para a estabilidade do clima do planeta, a região precisa ser olhada como um todo. Organizações da sociedade civil têm papel fundamental nesse processo Por Sérgio Guimarães* As mudanças climáticas afetam a Amazônia e a Amazônia afetada contribui para o avanço das mudanças climáticas. As cidades da região, cada vez mais sujeitas a eventos extremos, como secas, inundações e queimadas, precisam se adaptar para reduzir esses impactos. Como? Podemos começar lembrando que quando falamos das cidades da Amazônia, precisamos ter em mente que elas têm algumas particularidades que tornam essas adaptação às mudanças climáticas um desafio maior que para as outras, cujos desafios já são enormes. As grandes distâncias que separam as cidades, a forte urbanização concentrada nas capitais, estado de pobreza e péssimas condições sanitárias de grande parte da população, além da carência de recursos são alguns exemplos. A ação local é essencial para fazer acontecer as ações de mitigação e adaptação urgentes e necessárias e as organizações da sociedade são fundamentais nesse processo. No último episódio de 2021 do podcast do GT Infra, Infraestrutura Sustentável, eu recebo o professor, economista, doutor em urbanismo, Fábio Ferraz, que está conduzindo um estudo sobre esse assunto. Junto com ele e em parceria com o Fundo Casa Socioambiental e Fundação Vitória Amazônica, o GT Infraestrutura lançará, ainda este mês, uma cartilha com diretrizes para orientar as populações urbanas mais vulneráveis. Nos dias 18, 19 e 20 de janeiro, também realizaremos os webinários “Nós fazemos a cidade”, que têm o mesmo nome da cartilha e são uma extensão desse trabalho. Nesse material, traçamos um roteiro de um passo a passo, de ações, necessárias e urgentes, que as cidades amazônicas precisam realizar para mitigar e se adaptarem às mudanças climáticas. “Nosso objetivo é fortalecer a participação da sociedade civil organizada na construção de políticas públicas e nas atividades de planejamento e gestão”, explica Fábio Ferraz. São alguns passos simples, mas que funcionam: 1. unir as pessoas interessadas e com disposição para atuar, formando um grupo gestor, que deve receber capacitação para realizar esse trabalho; 2. identificar e avaliar os problemas, riscos e vulnerabilidades, pensando em ações e medidas de adaptação possíveis para lidar com eles; 3. em conjunto com o poder público, definir um plano de adaptação às mudanças climáticas com priorização de ações, responsabilidades e governança, indicadores de monitoramento e controle e instrumentos financiamento; 4. propor políticas públicas locais de adaptação às mudanças climáticas; 5. garantir que esse plano converse com as demais áreas e políticas públicas e interagir com o poder público e com atores estratégicos das cidades para implementar o plano. Resiliência é uma das palavras chaves nesse processo de adaptação, pois diz respeito à nossa capacidade de aguentar e superar as adversidades. “Resiliência ambiental é a capacidade de aguentar uma tempestade, uma inundação ou uma seca e continuar vivo. Esse conceito vem da biologia, do fato, por exemplo, de que depois de uma queimada, as sementes continuam germinando e ressurgem na estação seguinte”, pontua Fábio Ferraz. Aprender com os erros do passado e organizar estudos e protocolos de alerta para lidar com os problemas que virão é uma forma de resiliência. Plantar árvores em cidades que têm pouca arborização urbana é outro exemplo disso, pois ajuda tanto a lidar com o calor extremo, quanto a evitar inundações. O pesquisador Foster Brown, da Universidade Federal do Acre, também mostrou em um experimento que pintar o telhado das casas de branco é outra uma medida simples, mas eficiente. A cor reflete mais a luz e diminui a temperatura interna, aumentando o conforto térmico das casas nas cidades onde faz muito calor, como é o caso da região da floresta. Antes de responder à pergunta que dá início a esse artigo, é importante lembrar que a floresta amazônica, além de abrigar parte significativa da biodiversidade do planeta, desempenha papel fundamental na regulação do macroclima global. Mas, como território ocupado por uma população, ela vai muito além do seu bioma, que se espalha, inclusive, por outras vegetações e países vizinhos. “O território se estrutura sobre uma ampla rede de assentamentos urbanos e atividades econômicas. Nos preocupamos muito com a floresta e deixamos a cidade em segundo plano, mas são 28 milhões de habitantes, 70% concentrados nas cidades e mais da metade nas regiões metropolitanas”, lembra Fábio Ferraz. “Essas cidades são os espaços administrativos, é através delas que cuidamos do território, inclusive a zona rural e as áreas de floresta. Se nós não administramos bem as cidades, não administramos os territórios”, completa. Ao garantir cidades mais sustentáveis, também estimulamos a preservação da nossa floresta. Se por um lado o desmatamento e as queimadas contribuem para o aquecimento global, por outro o território acaba sofrendo com as mudanças climáticas, principalmente as cidades. Ou seja, cidades mais organizadas, estruturadas, com mais oportunidades econômicas e qualidade de vida, acabam nos dando mais condições de estabelecer melhores relações com a floresta, inclusive fomentando outras atividades econômicas que não sejam apenas baseadas no extrativismo, como a economia da floresta em pé de que tanto falamos. Tudo está interligado. *Sérgio Guimarães é secretário executivo do GT Infraestrutura, rede com 40 organizações da sociedade comprometidas com a construção de um mundo com mais justiça socioambiental. Este artigo foi, originalmente, publicado na coluna do O Mundo Que Queremos, na Um Só Planeta. Imagem: Fábio J. Ferraz/urbeOmnis
COP26 escancara que Brasil precisa parar de andar na contramão do mundo

A floresta é a principal infraestrutura da Amazônia e presta relevantes serviços ao Brasil e a todo o planeta. Temos que valorizá-la por isso Por Sérgio Guimarães* A economia global precisou pisar no freio durante o período de mais restrições da pandemia e um dos resultados foi que as emissões de gases de efeito estufa caíram em cerca de 7% em 2020. Menos no Brasil. Na contramão do mundo, nossas emissões registraram um aumento de quase 10%, o maior desde 2006, segundo relatório do Observatório do Clima divulgado alguns dias antes do início do COP 26. O grande diferencial foi o desmatamento! Somente neste mês de setembro, derrubamos mais de mil quilômetros quadrados da maior floresta tropical da Terra. Por dia, a floresta perdeu uma área maior que 4 mil campos de futebol, segundo dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Assim, o Brasil chegou à Glasgow como um dos países que mais contribuem para agravar o aquecimento global, o que é péssimo para a nossa economia. Segundo o mesmo relatório, se a Amazônia fosse um país, seria o nono maior emissor do mundo. Somando o Cerrado, os dois biomas seriam o oitavo maior, à frente de Irã e Alemanha. O processo crescente de derrubar árvores para fazer pasto é apontado como um dos grandes motivos para o nosso destaque negativo durante esse evento fundamental para o futuro do planeta e da humanidade. Toda a comunidade científica já fala disso há tempos, mas, apesar dos alertas, o processo ainda não parou. No entanto, se tem uma coisa que as discussões em curso na COP26 estão deixando claro é que, se o problema é grande, o potencial de solução em diferentes campos também é. A maior delegação de lideranças indígenas brasileiras da história do evento está lá contribuindo com ideias valiosas de outras formas de nos relacionarmos com a terra. E o mundo todo vai ganhar se levar essas ideias pra casa e colocá-las em prática. Antes de mais nada, precisamos parar de desmatar — para ontem! A Amazônia tem que ser enxergada como a infraestrutura que ela é, pois presta serviços diversos para todo o planeta, que dela depende para estabilidade do clima. Manter a floresta em pé é bom para o mundo todo e, portanto, esses serviços podem ser quantificados em escala global. Em dinheiro, inclusive. Há alguns anos, o estudo Changes in the Global Value of Ecosystem Services, liderado por pesquisadores da Austrália, estimou que os benefícios da manutenção da floresta podem chegar a trilhões de reais por ano. Se esse trabalho fosse atualizado hoje, certamente mostraria valores ainda maiores, porque agora as principais referências globais em economia já entenderam que lucrar a qualquer custo é, no longo prazo, prejuízo. Monetário e também para a nossa vida por aqui. Como o Um Só Planeta costuma enfatizar, não há planeta B. Nessa nova economia, cujos rumos vêm sendo delineados em Glasgow, a infraestrutura começa a ser pensada pelos serviços que presta para as pessoas. Assim, os megaprojetos devem perder espaço para os menores, não mais baseados na destruição e no concreto, mas em alternativas que não impactem o meio ambiente, respeitem as comunidades e favoreçam seus modos de vida. Essa é a infraestrutura que queremos, pauta com a qual o GT Infraestrutura trabalha há alguns anos. Ela é um meio para chegarmos a outros modos de produção, que precisamos adotar para continuar vivendo aqui no Planeta. “O que está acontecendo é uma transformação profunda que será mais promissora quanto mais ela obedecer às necessidades da luta contra a crise climática”, afirmou Ricardo Abramovay, economista, professor e especialista em economia verde em episódio do podcast Infraestrutura Sustentável, que é um espaço onde discutimos várias dessas alternativas que reconhecem que nossos biomas são também infraestruturas e que, portanto, não faz sentido destruí-los. Em Glasgow, pontos importantes têm sido reafirmados. Mas, para além da teoria e dos debates, é fundamental que o Brasil honre os compromissos historicamente assumidos, saia da contramão e se realinhe com os esforços mundiais para a redução das emissões de efeito estufa, que além de reduzirem os eventos extremos, que causam graves prejuízos ao país, contribuem com a economia e geram renda e emprego para a população. Sem isso ficaremos isolados e todos vamos arcar com as consequências. E, com certeza, o preço será alto. Aliás, já está sendo. As crises hídrica e energética são só um pequeno exemplo. *Sérgio Guimarães é secretário executivo do GT Infraestrutura, rede com 40 organizações da sociedade comprometidas com a construção de um mundo com mais justiça socioambiental. Imagem: Pixabay Este artigo foi publicado, originalmente, na coluna do O Mundo Que Queremos, no Um Só Planeta.