Tutãra, a joia do Arinos
Ao levar adiante o projeto da UHE Castanheira, governo assume o risco de acabar com uma preciosidade da cultura Rikbaktsa e da ecologia na bacia do Juruena Até o dia 13 de outubro os brasileiros estão sendo convidados a enviar contribuições pela internet ao Plano Nacional de Energia 2050. O documento traça o horizonte da expansão energética no país que, do ponto de vista da geração de energia hidráulica, encontrou um potencial de 108 GW em operação e construção até 2019, e apontou outros 68 GW ainda inventariados em projetos localizados, em sua maioria, na Amazônia. O governo reconheceu que 77% do potencial hidrelétrico situam-se em áreas de alta sensibilidade socioambiental, interferindo em unidades de conservação e terras indígenas. E estimou que 23% (12 GW) não interferem. A UHE Castanheira, projetada para gerar pífios 0,098 GW de energia firme na bacia do rio Juruena, no norte de Mato Grosso, é um desses casos em que o perímetro do reservatório não toca terras indígenas. Esta tem sido a explicação oficial para que tal projeto, ineficiente e altamente impactante ao meio ambiente e aos povos indígenas, garanta sua sobrevida nos planos do governo como obra prioritária do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). Evitar as terras indígenas significa, na prática, menos problemas e processos mais céleres. O risco, entretanto, é minimizar os efeitos dos empreendimentos sobre elas, ainda mais quando as comunidades dependem do rio que vai ser barrado. A manobra reduz a importância dos povos indígenas sobre os rumos do planejamento energético e do licenciamento ambiental, contabilizando atropelos que só estudos independentes vêm conseguindo desvelar. Nesse sentido, a existência de uma joia diretamente ameaçada pela UHE Castanheira foi reportada ao Ministério Público Federal (MPF) pelo povo indígena Rikbaktsa na expectativa de dar mais concretude a essa subestimação. Ela, a joia, é o Tutãra – nome do colar de casamento, uma das mais sofisticadas peças da arte plumária produzida e plenamente utilizada por um povo ameríndio. É como se chama também o pequeno molusco usado em sua confecção, que por sua vez só pode ser coletado pelos indígenas no rio Arinos e, por causa dele, é conhecido como “água de concha”. Dois relatórios técnicos, um produzido pela bióloga Claudia Callil, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e outro pela antropóloga Adriana Athila, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), a pedido da Operação Amazônia Nativa (OPAN), demonstram de forma cabal a gravidade e a irreversibilidade dos impactos da UHE Castanheira sobre o tutãra. Ele é ao mesmo tempo patrimônio ecológico, histórico, paisagístico, artístico e arqueológico. Apesar disso, foi sumariamente ignorado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), que é o empreendedor desta usina. Os povos Munduruku, Apiaká e Kayabi do rio Teles Pires estão aí para confirmar que simplesmente deixar a hidrelétrica do lado de fora da terra indígena é subestimar não só os danos, mas o conhecimento de quem mais entende da região. É isso que os Rikbaktsa lutam para evitar. “O rio Arinos para nós é muito importante e a usina de Castanheira coloca em risco o futuro das novas gerações”, falou Adílio Peta Rikbaktsa, da Aldeia São Vicente, na Terra Indígena Japuíra. Egídio Matsiu, de outra aldeia no Arinos, reforçou diante dos procuradores do MPF que “para o povo Rikbaktsa, só é possível fazer colar de casamento porque tem tutãra no rio Arinos. A usina vai com certeza acabar com essa tradição. Além disso, o rio é rico em peixes como o bagre, que também pode sumir”, avisa. O tutãra Tutãra é o nome na língua Rikbaktsa para uma espécie de “molusco bivalve de água doce, grande, de nácar perolado em intensos tons de rosa”, descreve Callil. O P. syrmatophorus é encontrado exclusivamente no baixo curso do rio Arinos, já em condição de vulnerabilidade. De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) bivalves como ele ocupam o primeiro lugar no ranking entre os organismos aquáticos continentais como sendo o grupo em maior declínio no planeta. É um organismo filtrador, indicador de boa qualidade ambiental, sobre o qual se sabe pouquíssimo. “O ciclo de vida dos bivalves é complexo com requisitos ecológicos específicos, nada se conhece sobre esta relação para os bivalves da América do Sul”, relata a pesquisadora, que aponta para o desaparecimento da espécie se a UHE Castanheira for construída. Para os Rikbaktsa, isso seria trágico. “O Tutãra é um belo artefato essencialmente composto sob a maestria das mulheres Rikbaktsa e a única peça da extensa coleção da plumária exclusivamente usada por elas. Ele é feito da artesanal junção de diferentes partes que são, elas mesmas, extensivamente trabalhadas por várias pessoas, de diversos gêneros, aldeias e Terras Indígenas ocupadas pelos Rikbaktsa”, detalha a antropóloga Adriana Athila, autora do relatório técnico entregue ao MPF. Segundo ela, os processos de aquisição da tutãra incluem e ultrapassam o que equivocadamente se considera ser sua simples “coleta”, remetendo a uma complexa tecnologia de negociação sociológica e mesmo cosmológica. “Ele é fruto dos saberes singulares Rikbaktsa, do modo como se organizam, casam-se, articulam-se e desempenham seus ritos anuais; de como vêm existindo ao longo do tempo”, diz Athila. Por isso, nenhum outro povo indígena é capaz de produzi-lo nem de usá-lo e seu extermínio jamais será passível de restituição ou mitigação. Algo tão relevante do ponto de vista cultural e ambiental não foi devidamente observado nos estudos entregues pela EPE no curso do licenciamento ambiental da UHE Castanheira, conduzido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA). A ausência de estudos qualificados do impacto da hidrelétrica sobre peixes, regimes hidrológicos e qualidade da água e equívocos socioambientais motivaram a abertura de inquéritos tanto no MPF como no Ministério Público Estadual. Desde então, organizações da sociedade civil e comunidades locais apressam-se para tentar entender o que faz o governo querer tanto uma usina que, segundo estudo da Conservação Estratégica (CSF-Brasil), gerará prejuízos que podem atingir 129 milhões de dólares. De acordo com levantamento da OPAN atualizado em 2020, dos mais de cem
A retomada sobre os trilhos
Dado o crescimento acentuado da produção de grãos no Centro-Oeste, novas alternativas de escoamento por meio ferroviário vêm sendo aventadas, em especial aquelas pela bacia amazônica. Grandes empresas do agrobusiness associadas a traders internacionais reuniram-se em um grupo denominado Pirarara, tendo elaborado proposta de uma ferrovia com um itinerário similar ao projeto original da Ferronorte, hoje operacional no trecho do porto de Santos a Rondonópolis, no sul de Mato Grosso: a EF-170, conhecida como Ferrogrão. A origem da Ferrogrão seria em Sinop, situada ao norte do estado de Mato Grosso, tendo como destino Miritituba, no Pará, à beira do Rio Tapajós, nos arredores de Itaituba. A partir daí é possível navegar até que se alcance o Rio Amazonas, na região de Santarém. Desde o anúncio da Ferrogão, vários estudos técnicos e de viabilidade econômico-financeira foram elaborados, exceto o estudo de impacto ambiental, que seria feito a posteriore, ou seja, ficaria para depois da outorga da concessão. Reconhecendo o risco dessa postergação, em setembro de 2019, publicou-se no Diário Oficial da União o resultado do julgamento de um edital de contratação da Empresa de Planejamento e Logística (EPL) “para elaboração de estudos ambientais e dos programas ambientais de mitigação dos impactos das obras de implantação da infraestrutura ferroviária EF-170 Ferrogrão”. Pelo cronograma oficial, o estudo tomaria 2 anos, ou seja, estaria pronto no final de 2021. Nas condições atuais e reconhecendo a sensibilidade socioambiental do seu traçado amazônico, a licença ambiental demanda estudos e consultas aprofundadas. Portanto, o mais provável é que a implantação dessa ferrovia, caso venha ocorrer, se daria a partir de 2023. Mas o que chama mais atenção no edital da contratação do estudo de impacto ambiental da Ferrogrão é a mudança no seu ponto de partida, que passou a ser Lucas do Rio Verde, 177 km ao sul de Sinop. Além de principal centro regional, Lucas do Rio Verde se tornará, segundo o Plano Nacional de Logística, elaborado pela mesma EPL, o entroncamento de 2 sistemas ferroviários de importância nacional: o sistema Oeste-Leste, representado pela Ferrovia de Integração Centro- Oeste (FICO), que se conecta com a Ferrovia Norte-Sul (FNS) e a Ferrovia de integração Oeste- Leste (FIOL), que partindo da FNS, segue rumo à costa da Bahia. E, ainda, ao sistema Norte representado pela Ferronorte (FN) e a Ferrogrão (FG). Depois de tanta sigla, todas as alternativas para o escoamento dos grãos de áreas de cultivo do Centro-Oeste e Nordeste do país, abrangendo Mato Grosso e a região conhecida como Matopiba (MA, TO, PI, BA), estão colocadas. Imagine, agora, uma carga de grãos em Lucas do Rio Verde, epicentro dos 2 sistemas mencionados anteriormente, avaliando suas rotas para ser exportada. Nesse sentido, várias alternativas lhe serviriam: – Rumo ao Norte, pela BR-163 até alcançar Sinop (MT) para embarcar na FG até Miritituba, navegando, então, em um comboio de barcaças pelos rios Tapajós e Amazonas abaixo, até alcançar o porto de Santarém (PA), ou o porto de Santana (AP) ou, ainda, um terminal fluvial de uso privativo no canal sul da foz do Amazonas, o Rio Pará; – Rumo a Leste pela FICO até alcançar o grande eixo ferroviário Norte-Sul do país e daí optar entre descer para o porto de Santos, subir para o porto de Itaqui (MA) ou seguir para a costa da Bahia pela FIOL; ou – Rumo a Santos, pelo modo ferroviário, caso a FN fosse estendida de Rondonópolis (MT) a Lucas do Rio Verde (MT). As novas obras ferroviárias que viabilizariam todas essas alternativas seriam a FG, FICO, FIOL e a extensão da FN até Lucas. Do lado portuário, seria preciso construir um terminal graneleiro nas proximidades de Ilhéus (BA). Obviamente, cada uma dessas obras ou conjunto de obras representa diversos interesses, públicos e privados. Embora a EPL tenha produzido em 2017 um trabalho específico sobre os corredores logísticos estratégicos para o complexo milho e soja, com avaliação de custo para diversas rotas, tal estudo, de curto e médio-prazo, se limita à malha existente à época e não inclui o custo portuário e o elo marítimo, que variam de porto a porto. Dessa forma, não é possível responder a um quesito básico para a tomada de decisão: qual seria a alternativa do PNL mais competitiva para se chegar ao porto de Shanghai na China, principal porta do maior mercado importador de grãos do país? Além disso, para uma decisão ponderada das dimensões econômica e socioambiental, há também que se elaborar análises comparativas dos riscos socioambientais das diferentes alternativas logísticas. A despeito disso, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) aprovou recentemente o edital para a concessão da FG a partir de Sinop (MT). A possível extensão até Lucas do Rio Verde (MT) ficou condicionada “a um reequilíbrio financeiro do contrato”. Considerando que o seu período de concessão é de 69 anos, a Ferrogrão deve permanecer isolada do sistema ferroviário nacional por um bom tempo. Há uma ampla convergência política de que a retomada do desenvolvimento deve passar por investimentos na infraestrutura econômica e social do país. O crescimento da participação do modal ferroviário na matriz de transportes é uma prioridade para o país incrementar sua produtividade econômica e a sustentabilidade socioambiental do sistema nacional de transportes. O complexo de soja e milho representa uma grande oportunidade para alavancar essa transformação. Mas isso requer a elaboração de cenários econômicos e a análise de riscos socioambientais das alternativas que se colocam para o escoamento de grãos, que vão muito além da análise individual de um projeto, isolado do sistema nacional que se planeja para o futuro do país. Nelson Siffert, doutor em economia pela Universidade de São Paulo e Pedro Bara, mestre em engenharia pela Universidade de Stanford.
Para uma infraestrutura sustentável na Amazônia é preciso planejamento participativo
Por que a participação pública e a análise de alternativas são essenciais para o desenvolvimento socioeconômico e a conservação ambiental A pandemia do coronavírus nos traz à tona a consciência de como o ser humano é, a despeito de toda sua pretensão de controle sobre o mundo natural e seus recursos, apenas mais uma peça de um sistema ecológico indescritivelmente interconectado. Tomado como bastião da consciência planetária, o homo sapiens continua vulnerável ao impacto imprevisível das menores formas de vida ou nem isso. O ano de 2020 tem provocado grandes reflexões e pode se transformar em um marco de transformações da sociedade, inclusive na maneira com que ela se relaciona com o meio ambiente. Inúmeros eventos virtuais, webinários e lives, acontecem diariamente no Brasil e em vários outros países e debatem sobre como o mundo pode e deve se desenrolar no pós-pandemia. Uma série de reflexões já estão ocorrendo no âmbito internacional, a exemplo do Green New Deal, nos Estados Unidos, e da Recuperação Verde e Justa discutida na Europa. Na arena da sustentabilidade global, o Brasil junto com países vizinhos carrega a grande responsabilidade sobre um uma região chave: a Amazônia. Não deveria ser preciso aqui argumentar sobre a importância da maior floresta tropical úmida da Terra. Isso deveria ser tão claro como descrever o seu clima: chover no molhado. No entanto, o contexto de enormes índices de desmatamento, conflitos por terra, invasões de territórios indígenas, garimpos ilegais e outros problemas socioambientais na região mostra que o Brasil precisa concentrar seus esforços em proteger essa floresta e as pessoas que nela vivem. É recorrente na história do território brasileiro que comunidades amazônicas travem embates com arranjos de poder estatais e privados resistindo à implantação de obras de infraestrutura (como rodovias, ferrovias, usinas hidrelétricas e termelétricas) que carrega consigo ameaças ao modo de vida local diretamente ligado à natureza. Na maior parte das vezes, as comunidades tomam conhecimento da existência de propostas de projetos de infraestrutura nos lugares onde vivem quando esses já se encontram nos estágios finais do processo decisório de sua implantação, durante o licenciamento ambiental da obra. Nesse momento, há pouco espaço para avaliar possíveis alternativas aos projetos propostos. Se há razão e direito em vozes contrárias à implantação de certas infraestruturas em determinados locais, é papel do Estado buscar e considerar previamente outras alternativas que satisfaçam aos mesmos objetivos de um projeto de infraestrutura. Enquanto essa discussão e avaliação de alternativas não ocorrer de forma sistemática, os conflitos continuarão se manifestando nos estágios mais avançados do processo decisório da instalação de infraestruturas. Durante o licenciamento ambiental da obra há pouco espaço para algo além de conflitos acerca da análise dos riscos e das propostas de medidas compensatórias. Por isso, a atuação da sociedade civil acaba se restringindo a movimentos de resistência e de denúncia de compromissos assumidos e não cumpridos nos programas de compensação e mitigação com um número crescente de conflitos e judicializações. Análises de riscos e de impactos devem ser realizadas para avaliar diferentes alternativas e não apenas para estimar a segurança de um único projeto. Uma análise de alternativas explora os prós e os contras potenciais de diversas opções colocadas para resolver o problema. Como enfatizou Mary O’Brien, cientista norte-americana que trabalhou com organizações e movimentos ambientais de base por mais de 20 anos, em seu livro Making Better Environmental Decisions: “As decisões baseadas apenas em análises de riscos envolvem uma dimensão moral quando sujeitam terceiros a riscos com que eles não consentiram, sem ter sido levadas em conta um amplo leque de alternativas”. A partir dessa passagem, é possível embasar a defesa da efetiva participação democrática nos processos de tomada de decisão. Ao planejar, por exemplo, uma rodovia que possa acarretar determinados riscos socioambientais, deve-se pesar o que significariam a escolha por outras rotas, a adoção de outros modos de transporte ou ainda o cenário de total não intervenção (e a relevância das oportunidades perdidas). Considerando antecipadamente, assim, a totalidade de sujeitos e regiões que sofreriam os seus impactos. Historicamente, a expansão da infraestrutura de energia e de transportes na Amazônia pouco tem considerado as necessidades econômicas e sociais dos habitantes locais, prevalecendo as demandas de setores empresariais. A Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) nº 1/1986 instituiu a Avaliação de Impacto Ambiental, onde o escopo de avaliação se restringe ao de projetos individualizados. Por outro lado, Estudos de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) de escopo mais amplo ainda não têm seu uso regulamentado no Brasil. A AAE consiste na avaliação da qualidade do meio ambiente, por meio de um procedimento sistemático e contínuo de alternativas de desenvolvimento com a elaboração de diagnósticos de referência, cenários tendenciais e propositivos. Tudo isso com análises e considerações estratégicas das alternativas para atingir os objetivos propostos, proposição de diretrizes de planejamento, monitoramento, gestão e avaliação concretizados de políticas, planos e programas (PPP) prevendo a integração efetiva de considerações biofísicas, econômicas, sociais e políticas nos processos públicos e institucionais. Os contornos de interesse público para a expansão da infraestrutura, ditando a que fins deverão atender os planejamentos setoriais, a preparação e a seleção de projetos são definidos durante a formulação de políticas públicas. Nos estágios iniciais do estabelecimento de políticas, planos e programas deveria haver maior espaço para que algumas questões fossem esclarecidas. A que finalidade serve cada grande projeto de infraestrutura proposto nos planos? Quais são os benefícios esperados com a infraestrutura implantada? Quem são os beneficiários? Que interesses públicos ou privados são atendidos? Populações podem ser prejudicadas? Há outras alternativas vislumbradas àquela infraestrutura? Um mais amplo e mais transparente cardápio de cenários alternativos, democraticamente discutido e ponderado por diferentes atores envolvidos aumentaria as chances de se evitar impactos indesejados e os conflitos daí decorrentes. O debate antecipado no planejamento da infraestrutura é necessário para evitar efeitos irreversíveis, erros dispendiosos ou mesmo injustiças socioambientais que intensifiquem as desigualdades já existentes. O desenvolvimento social e econômico de todo o país, incluindo das vulneráveis e ameaçadas comunidades amazônicas, alicerça-se no fortalecimento da democracia. Dada a sensível
A recuperação econômica depende da construção de mais infraestrutura?
Ouvir vozes de povos e comunidades tradicionais e encontrar caminhos para tornar suas demandas efetivas é fundamental para repensar o nosso modelo de desenvolvimento A política e a economia brasileira têm se transformado numa velocidade vertiginosa e em poucas ocasiões a voz dos territórios foi incorporadas às análises sobre esses fenômenos. No GT Infraestrutura, a pergunta sobre qual infraestrutura queremos tem animado as discussões. Por isso, acreditamos que a perspectiva dos sujeitos políticos nos territórios precisa fazer parte das discussões sobre infraestrutura e recuperação econômica do Brasil. Esse foi o foco do debate no webinar “Renovação Verde da Economia e Infraestrutura na Pós-Pandemia: oportunidades, riscos e desafios”, realizado pelo GT Infraestrutura, no último dia 19 de agosto. Um redirecionamento será fundamental para que o país saia da crise no pós-pandemia e pensar caminhos para isso foi o desafio de Ailton Krenak, Ricardo Abramovay e Diana Aguiar, convidados para esse primeiro debate do Ciclo WebGTInfra.“Tanto o Inesc quanto o GT Infraestrutura e as organizações que o compõem se comprometem publicamente com a divulgação e valorização da cosmovisão de povos e comunidades tradicionais que, nós acreditamos, devem sim ter voz nas discussões e debates sobre o futuro da economia e da comunidade mais ampla em que todos nós nos encontramos, vivemos e compartilhamos”, iniciou a assessora política do Instituto de Estudos Socioeconomicos (Inesc), Tatiana Oliveira, que moderou o encontro. “Cada vez mais a infraestrutura na Amazônia serve à todo o processo de devastação no Cerrado”, pontuou a Assessora da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Diana Aguiar. Ela explicou que o escoamento da soja produzida pelo agronegócio passa pelos portos da região Norte e que a infraestrutura construída para essa logística não atende nem respeita a população da região. “Infraestrutura é frequentemente associada a desenvolvimento, mas uma coisa que nunca se fala é pra que e pra quem”, destacou, lembrando que, historicamente, esses projetos servem apenas para viabilizar atividades econômicas que colaboram para destruir o meio ambiente. Que sustentabilidade é essa? O escritor e professor do Programa de Ciência Ambiental Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, Ricardo Abramovay, acredita que o crescimento econômico é necessário, mas ele não pode mais continuar sendo incentivado à qualquer custo. Ele lembrou que infraestrutura não é apenas o que é construído, mas também os recursos naturais, que as empresas usam sem pagar. “Só que esses custos não fazem parte do sistema de preços. E a gente paga por eles constatando a destruição.” Ele destacou que o tipo de moldagem de infraestrutura tradicionalmente instalada é equivocado porque cria uma dependência desse caminho e, além disso, trata pequenas reduções de emissão de gases do efeito estufa como sustentabilidade. “Essa é uma visão errada. Sustentabilidade é um valor, é a maneira como se processa a relação entre sociedade e natureza.” Para o líder indígena, ambientalista e escritor, Ailton Krenak, a infraestrutura tal qual vemos hoje precisa ser repensada. “A voz dos territórios nunca foi ouvida dentro de um contexto vasto colonial e colonizante. Nós não temos uma infraestrutura cogitada para esse continente”, afirmou. Segundo ele, a América do Sul apenas recepcionou projetos que vêem os povos como uma plataforma extrativista. Ele destacou que a Amazônia precisa ser pensada dentro do contexto do planeta e levando em conta tudo o que acontece no organismo inteiro. Segundo o escritor, mudar a nossa relação com a natureza, com os países vizinhos e, consequentemente, com a infraestrutura é fundamental e urgente. Porque a verdadeira infraestrutura de que necessitam os povos é a própria natureza e a floresta em pé. Para Krenak, se ouvíssemos os territórios já saberíamos disso há muito tempo. O debate completo pode ser acessado no canal do GT Infraestrutura no Youtube. Ciclo WebGTInfra O debate inaugura para o público o Ciclo WebGTInfra, promovido pelo GT Infraestrutura e parceiros, pensado para promover reflexões sobre sustentabilidade tendo sempre a infraestrutura como norte. A intenção é que os encontros sempre tratem do assunto priorizando a visão inclusiva das comunidades e populações da Amazônia. Serão 12 encontros e o próximo, com o tema “Sem social não tem ambiental: Saúde, Saneamento e as Políticas Sociais para o Desenvolvimento Regional”, já está marcado para o dia 2 de setembro, às 16h.
Muito além do jardim: respostas aos desafios do tempo atual
Caminhos para superar as crises sanitária, social, econômica e política no Brasil. Foto: Caio Mota/Proteja Amazônia Sérgio Guimarães* A pandemia de covid-19 que tem atingido milhões de brasileiros que moram nas grandes cidades, causando milhares de mortes, tem atacado até mesmo os guardiões da floresta, que também correm perigo. Um manifesto dos Munduruku, da Amazônia brasileira, lançado no dia 2 de junho, comunicando e lamentando a morte recente de cinco lideranças, guardiões do conhecimento da etnia, simboliza em grande medida o que vive o Brasil nesta semana do meio ambiente. “Essas perdas não têm como reparar, esses senhores, que partiram pela doença Covid-19, são guardadores do conhecimento… É como perder uma biblioteca que ensinava a todos” diz o manifesto, que ainda informa, “são mais cinco Munduruku internados em estado grave em Jacareacanga, hospital sem UTI”. A grave crise de saúde pública devido ao novo coronavírus, que assola os Munduruku e também o Brasil, com mais de 500 mil infectados e de 30 mil mortes, além da tragédia em si, tem o dom de expor de modo dramático nossa chaga mais profunda: a abissal desigualdade social existente no país; desnudando a imensa precariedade do sistema de saúde, a pobreza extrema, o contingente de 40 milhões de trabalhadores informais, desassistidos de quaisquer políticas sociais e econômicas e as péssimas condições sanitárias das populações das periferias, em sua maioria sem acesso a água, ao saneamento, vivendo em precárias condições de higiene e habitação. Exibe a “olho nu” a inadequação da política econômica de auxílio à população necessitada, com enormes dificuldades para acessar o socorro emergencial, e de apoio às pequenas e médias empresas, cuja imensa maioria ainda não conseguiu acessar os empréstimos prometidos a quase dois meses. O que contribui ainda mais para aumentar o drama social e a crise econômica. Tudo isso agravado por uma atuação errática da presidência da república que em meio à pandemia demitiu dois ministros da saúde e tem sistematicamente se colocado contra as orientações das autoridades de saúde no Brasil e exterior, causando desorientação em parte da população. Criando tensões com outras esferas de poder, causando crises políticas sucessivas e incentivando manifestações que propõem ruptura institucional e afrontam a democracia. Provocando enorme dispersão de esforços que deveriam estar concentrados no combate à pandemia. Resultado: o Brasil vive uma perigosa conjunção de crises, sanitária, social, econômica e política que se alimentam mutuamente. Enquanto isso, o Ministro do Meio Ambiente quer aproveitar a situação da calamidade sanitária e uma pretensa desatenção dos veículos de comunicação e da sociedade para “passar a boiada” e acelerar o desmonte do setor ambiental que ele promove desde que assumiu a pasta. Onde já desmontou diversas estruturas, conselhos e até fundos, paralisando recursos, demitindo funcionários de carreira e nomeando “de baciada” policiais despreparados para as funções. A Amazônia vive uma crise talvez ainda mais dramática dentro do panorama já difícil do Brasil. Desmatadores ilegais, grileiros, madeireiros e garimpeiros intensificam sua atuação com a conivência e a certeza de impunidade, proporcionada pelo governo federal. O resultado não poderia ser pior, recentemente o desmatamento, a invasão de terras e a violência contra grupos indígenas e comunidades tradicionais explodiram. O desmatamento, que cresceu 30% no período de agosto de 2018 a julho de 2019, chegando à quase 10 mil km2, deverá crescer ainda mais este ano. Os alertas do INPE até abril indicam um crescimento de 94% em relação ao desmatamento verificado entre agosto de 2018 a abril de 2019. A nova taxa anual, segundo estimativas de especialistas, deverá ficar entre 14 e 16 mil km2, uma calamidade ambiental, social econômica para o Brasil. O novo recorde que se avizinha está junto com o crescimento das queimadas, cujo pico ocorre nos meses de julho, agosto e setembro, quando o já deficiente sistema de saúde na região fica sobrecarregado por causa do grande número de doenças respiratórias. Se somarmos isso ao avanço do covid-19 na região, que também demanda os mesmos equipamentos, a perspectiva é de um cenário de saúde caótico, com graves consequências. Há poucos dias o INPE fez um alerta nesse sentido, recomendando a necessidade urgente da intensificação do controle das queimadas e também da pandemia na região. Para enfrentar essa e outras situações semelhantes nas diferentes regiões do Brasil, os diversos segmentos da sociedade que atuam para reduzir a destruição ambiental e apontar soluções mais inclusivas e sustentáveis e que já vêm trabalhando para contribuir com respostas às crises sanitária e socioeconômica com propostas que indicam novos caminhos que nos desviem da crise das mudanças climáticas, terão que ir “muito além do jardim”, não podendo se furtar de atuar, junto com outros segmentos da sociedade, na defesa intransigente da democracia, nosso bem maior, atualmente ameaçada em nosso país. Sem a qual condenamos ao fracasso todas nossas construções coletivas, o que inclui a sustentabilidade e a redução das desigualdades. Pois a democracia é o espaço onde a sociedade se movimenta para resolver seus conflitos e problemas, que historicamente não são poucos, mas que no momento se tornam ainda mais emergenciais devido à conjunção de crises que vivenciamos. “Temos que resistir, tentar ser ainda mais fortes”, dizem os Munduruku, “mesmo quando paramos e observamos que tem muitas estradas ou rios para caminhar e que não devemos perder as esperanças”. Da mesma forma, todos nós brasileiros precisamos ser ainda mais fortes e manter nossas esperanças. Fortalecer em nós os sentimentos de paz e união para enfrentar e vencer os graves desafios que nos estão colocados. Sérgio Guimarães é secretário-executivo do Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura. Leia o manifesto Munduruku na íntegra: MANIFESTO MUNDURUKU Estamos de luto! “O rio é nosso tudinho. Vivemos da terra. Da cabeceira até a boca. Então, esse é nosso pensamento, dizer que está fora da área, não está. Está onde nós moramos, nós andamos em todo canto, não é só num lugar não. Então é muito bom vocês ouvirem a gente, nós temos o nosso pensamento, vocês tem o seu. Tem que mostrar também a nossa força, porque estamos no nosso direito, para
Em tempos de coronavírus, por que 35 milhões de pessoas ainda não podem lavar as mãos no Brasil?
Cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água, mesmo o país detendo 12% de toda água doce disponível no mundo Por Sérgio Guimarães, coordenador do Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura, com Angélica Queiroz. Desde o início dos registros de casos do novo coronavírus no Brasil, em fevereiro, protocolos e orientações das organizações nacionais e internacionais de saúde foram todos no sentido de alertar a população sobre a necessidade de lavar as mãos. Mas como pedir isso a 35 milhões de pessoas que sequer tem acesso à água, mesmo o território brasileiro detendo 12% da água doce disponível no mundo? Em 2015, a ONU, em acordo com mais de 150 países, olhou para realidades como esta em todo o mundo e definiu como meta para 2030 assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. Este é o 6º item da lista de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mas por que falar de água e saneamento ao mesmo tempo? Porque os dois assuntos são indissociáveis. A falta de sistema de esgoto leva necessariamente à contaminação do solo e de cursos d’água, prejudicando assim a disponibilidade de água potável. Na verdade, quando falamos em saneamento básico, estamos incluindo aí quatro serviços de tratamento: água, esgotos, resíduos e drenagem. Se pensarmos que quatro milhões de pessoas no Brasil ainda não têm acesso a banheiros começamos a entender a gravidade do problema. Segundo o Instituto Trata Brasil, Organização da Sociedade civil de Interesse Público que desde 2007 trabalha reivindicando a universalização do acesso a esses serviços, quase 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada. Só 22 entre as 100 maiores cidades do Brasil atendem 100% da população. Acontece que o total de água extraída em poços anualmente tem volume suficiente para abastecer todo o país. Por que então isso não acontece? Um dos motivos é que quase 40% desse total é perdido durante a distribuição. Ainda segundo o Trata Brasil, quase 100 milhões de brasileiros ainda não são atendidos pela coleta de esgoto, praticamente metade da população. Se formos falar em tratamento, esse número cai mais ainda: só 46% dos esgotos do país são tratados. De modo geral, desde o desenvolvimento das primeiras ações de infraestrutura com foco em saneamento no Brasil, no início do século XX, esse atendimento privilegiou algumas áreas, excluindo uma parcela da população, especialmente a de menor renda nos centros urbanos e a população rural. Mesmo assim, nas 100 maiores cidades do país, 36 municípios têm menos de 60% da população atendida pela coleta e somente 21 cidades brasileiras tratam mais de 80% de seus esgotos. Região Norte: o caos do caos Se no Brasil, como um todo, os números são preocupantes, na região Norte eles são ainda piores. A região Amazônica é um desafio, pois é a região mais carente e que menos avanços teve nos últimos dez anos, como bem pontua Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil. Lá, só pouco mais de 10% das pessoas têm acesso aos esgotos. E, com a água, a situação também não é boa. Enquanto no Sudeste mais de 90% da população tem água tratada, no Norte só 57% da população é atendida pelo abastecimento de água. Como pode faltar água justamente em uma das regiões mais banhadas por rios em todo o planeta? A água da maioria dos rios são impróprias para o consumo humano. E esse é um dos motivos, mas não o único, pelo qual o tratamento é tão importante: não basta estar perto da água. O tamanho da região e o fato de ela ter uma grande parcela da população em áreas rurais ou isoladas é outro agravante. É uma região que precisa de um olhar muito específico do governo federal, principalmente em áreas não viáveis do ponto de vista econômico. Os serviços de abastecimento de água e saneamento são de responsabilidade dos municípios, mas os mecanismos de arrecadação são padrões nacionais que não atendem a região, composta por municípios do tamanho de países. Nos últimos três anos, os maiores investimentos em saneamento básico foram nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Bahia. Neste mesmo período, Amazonas, Acre, Amapá, Alagoas e Rondônia são os que menos investiram. O estudo mais recente do Trata Brasil mostra que o custo para universalizar o acesso ao saneamento básico completo, entre 2014 e 2033, é de R$ 508 bilhões. O Governo Federal, através do PAC, já destinou recursos da ordem de R$ 70 bilhões a obras ligadas a esse setor. Quem pode pagar o resto desta conta? Segundo Édison, a discussão do marco regulatório de saneamento é um passo importante porque a redação atual dá mais possibilidades para que empresas privadas atuem junto com públicas. “É preciso incentivar a formação de consórcios e formação de blocos de municípios. É a única solução, porque são estados muito frágeis do ponto de vista financeiro, com pouca capacidade de endividamento para poder arcar com esses investimentos, que são altos. Mas as prefeituras precisam querer e incentivar essas parcerias”, sugere. No Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura, rede que reúne 40 organizações não governamentais brasileiras, entendemos que o cenário crítico observado no Brasil no campo da infraestrutura instiga ações urgentes. A crise na saúde causada pela Covid-19 e os dados apresentados desnudam uma situação de extrema desigualdade e atraso mas também representam uma grande oportunidade para que apresentemos novas ideias e projetos que sejam alternativas para levar qualidade de vida e saúde para quem mais precisa. O esforço deve ser coletivo. É fundamental que o governo direcione investimentos para essa área. Cada R$ 1 investido em saneamento gera economia de R$ 4 na saúde Enquanto a falta de água nos grandes centros econômicos pode impactar no desenvolvimento econômico, nos rincões do Brasil sua ausência pode afetar um bem muito mais precioso: a vida. Na Amazônia, vários estados ainda sofrem com epidemias de leptospirose e amebíase, doenças que também estão relacionadas à falta de saneamento básico. A Organização Mundial da Saúde
Floresta grande, projetos pequenos
Qual infraestrutura realmente ajudaria as 25 milhões de pessoas que vivem na Amazônia? Por Alexandre Mansur com Angélica Queiroz para o Blog Ideias Renováveis, Exame. Quando falamos em infraestrutura na Amazônia, pensamos imediatamente em projetos grandiosos, com custo altíssimo e grande impacto ambiental e humano. Será que que é disso mesmo que a região precisa? A quem esses empreendimentos atendem? Será que eles vão melhorar de alguma forma a vida das comunidades? Se alguém perguntasse, para quem vive lá, de que precisa, qual seria a resposta? Estamos falando de uma região onde vivem, só na parte brasileira, pelo menos 25 milhões de pessoas; e talvez esses empreendimentos sejam muito mais infraestruturas na Amazônia do que a para a Amazônia. A ferrovias Transoceânica (que ligaria o Brasil ao Peru), Paraense (de Santana do Araguaia a Barcarena) e Ferrogrão (de Sinop no MT a Itaituba no PA) preveem investimentos bilionários e suas obras gerariam imensos transtornos para a população da região, sem deixar quase nada em troca. Pouca gente sabe, mas a população do entorno da Usina Hidrelétrica de Tucuruí só recebeu energia elétrica cerca de 20 anos depois de sua construção. A maior parte dos impostos gerados a partir de Belo Monte não fica no Pará, onde está localizada – a hidrelétrica exporta pelo menos 80% da energia gerada, ou seja, quem vive nos arredores lida com os transtornos, mas é o Sudeste quem fica com o ICMS da energia que sai de lá, já que a arrecadação é feita no destino. Grande parte das cidades próximas à floresta tem problemas sérios de falta de serviços como saneamento básico, tratamento de lixo, energia e internet. Mesmo com várias cidades no meio do rio, a água é suja e imprópria para o consumo. Além disso, as estradas estão em péssimas condições, o que dificulta a entrega de serviços como saúde e educação e faz com que mesmo trajetos curtos entre cidades vizinhas sejam uma verdadeira saga. E os portos? Eles lá não servem só para atender às comunidades ribeirinhas, indígenas e agricultores, mas também aos interesses das grandes empresas que exploram a região. Essa reflexão foi o ponto de partida para uma linha de ação do GT Infra, uma coalizão das principais organizações não-governamentais que trabalham com desenvolvimento, infraestrutura e conservação ambiental, principalmente na Amazônia. “Precisamos levantar novas ideias e projetos que sejam alternativas para levar emprego, renda, saúde, educação e, claro, infraestrutura a todos os brasileiros. Ideias sustentáveis de empreendimentos e demais investimentos que levem em conta a urgência em cuidar do nosso patrimônio social e ambiental”, afirma Sérgio Guimarães, secretário-executivo do GT Infra. O plano é discutir com as organizações projetos de infraestrutura para a Amazônia que ajudem a atender os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Os ODS incluem objetivos como reduzir a pobreza, oferecer água e saneamento, reduzir a desigualdade de gêneros etc. Caetano Scannavino é coordenador da ONG Projeto Saúde e Alegria – que tem ampla atuação no Pará – e acredita que, para pensar em infraestrutura para a Amazônia, é preciso lembrar que sem o social não se resolve o ambiental. “A gente fala muito de preservar as florestas e essa coisa toda, mas a população de lá também quer água de qualidade, energia elétrica, facilidade de transportes, saneamento básico, internet e tratamento de lixo, como qualquer outra comunidade.” Ele destaca que o desenvolvimento da região está muito atrás do restante do Brasil, seja na cidade ou no campo. O ranking do Trata Brasil, que analisa o saneamento básico, mostra que grande parte dos municípios com maiores déficits nessa área ficam na região Norte. O tamanho da região e o fato de a população viver espalhada e em áreas de difícil acesso estão entre as raízes dos problemas, pois fazem com que mesmo as infraestruturas básicas tenham alto custo de instalação e manutenção. “O Luz Para Todos, por exemplo, já chegou a 98% da população brasileira, mas boa parte desses 2% restantes fica na Amazônia,” exemplifica Caetano. Por lá existem municípios do tamanho de países – Altamira (PA), por exemplo, é maior que a Inglaterra ou Portugal. “Os custos logísticos para levar itens como vacinas ou merenda escolar para esses municípios são muito mais altos que em qualquer outra região, mas suas prefeituras, que são as responsáveis por essas e outras políticas sociais básicas, não têm uma compensação financeira para que essa conta feche, pois os mecanismos de arrecadação seguem padrões nacionais.” Poucas vezes se pensou pequeno na Amazônia e, para Pedro Bara, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), esse modelo está errado. “Não é uma questão de escala, mas de diversidade.” Ele afirma que, sem acesso a serviços básicos, a única coisa viável economicamente é engordar boi, atividade que, não por acaso, é uma das que mais cresce na região. Ao contrário do que se prega, o especialista afirma que a Amazônia não tem uma economia local forte. “É uma região que vive de incentivos, como a Zona Franca de Manaus, ou de ilegalidade, com mineração e extração dos recursos naturais.” Além disso, a concentração das pessoas nas capitais é enorme, o que dificulta esse desenvolvimento. Quando se fala em gerar oportunidade econômica na Amazônia, parece que todo mundo depende de destruir a floresta. Na verdade, grande parte da população é urbana e a parte ambiental-urbana é desastrosa. Tratar também das cidades não necessariamente salva a floresta, mas essa pode ser uma base para também gerar outros tipos de economia na região, que não dependam tanto da extração e do agronegócio. Mas, para atrair pessoas e investimentos para esses novos negócios, essas localidades têm que oferecer uma boa qualidade de vida. O que, definitivamente, não é o caso da região. Para o coordenador da ONG Saúde e Alegria, há um desconhecimento de quem pensa em políticas públicas para a região Norte. “Independentemente do governo que está lá, a impressão que a gente tem é que os investimentos parecem ter sido projetados por uma pessoa que