Por Caetano Scannavino*
– A Terra é plana! – chega o bebum.
– Que Terra plana que nada! A Terra é uma pirâmide! – retruca o comunista.
– Pirâmide? Você tá de porre! Qualquer um sabe que a Terra é redonda… – diz o bebum, já se afastando.
Não adianta subestimar, resistir ou argumentar com o bêbado chato na festa. A única forma de se livrar dele é se fazer ainda mais bebum. De dose dupla.
Em meio à terra arrasada ao longo do seu mandato, os que subestimam uma eventual reeleição de Bolsonaro só fazem bem a ele. Tampouco pode-se dizer que apenas uma frente ampla das oposições – os tais comunistas – bastaria para evitar uma recondução ao cargo por mais quatro anos.
É preciso deixar o rei nu.
Bolsonaro soube como ninguém se apropriar e manter o popularíssimo avatar antissistema, se aproveitando de uma sociedade com ojeriza do “mais do mesmo” da política e dos muitos que prometeram mudar o sistema e acabaram mudados por ele.
Vestido para matar, Bolsonaro veio para destruir, deixando para terceiros a tarefa do que colocar no lugar. Enquanto esgarça as instituições, lança como isca suas pérolas sem compromisso com a verdade ou o bom senso. As oposições mordem, sem que consigam ir além de resistir e reduzir danos.
E assim vai levando, com aquele ora mais ora menos terço de apoiadores – o suficiente tanto para desencorajar movimentos por impeachment, como para deixá-lo em 2022 com um pé no 2º turno – quando então se vangloriará do provável viés de “despiora” em relação à economia e à pandemia, após o fundo do poço alcançado neste ano.
Ainda que estes tempos nos tragam dificuldades de respirar, é preciso encontrar o oxigênio que nos foi cortado para inspirar mais do que união pela democracia – o que nos levaria a propor apenas a volta do que era.
As oposições que se dizem progressistas devem ser capazes de despir Bolsonaro desse avatar anti-establishment que opera milagres ao vender ares de inovação e mudanças a partir de ideias retrógradas e reacionárias, vindas de um congressista com quase 30 anos de baixo-clero, boa parte dele no PP de Paulo Maluf.
É hora de dobrar a aposta, como quando encontramos o bebum chato na festa. Não será tentando contê-lo que vamos espantá-lo. Teremos que extrapolar e ser mais louco que ele. Ser de fato progressistas.
Como antítese a Bolsonaro, tem-se aí a oportunidade para acelerar a construção do verdadeiramente inovador e revolucionário, ousando-se criar um novo establishment no lugar da terra arrasada.
Em vez de resistir ao chacoalhão das estruturas que criticávamos, temos a chance de reorganizá-las sob novos impulsos criadores. A crise pandêmica abriu ainda mais esta janela para adiantar o futuro e começar a pautá-lo desde já.
No campo trabalhista, por exemplo, ao invés de pararmos no tempo acomodados apenas na defesa da CLT de Vargas, os progressistas devem também chamar respostas para a inevitável substituição de vagas de trabalho por máquinas. Que tal trazer para a agenda o que já vem sendo debatido em países europeus, como a redução da jornada para 32 horas, com mais gente trabalhando, por menos tempo? Por sinal, uma medida cujos estudos apontam melhoras na mobilidade urbana, no clima, na conta de luz e na saúde, com a diminuição das faltas, sem comprometimento da produtividade.
O ajuste dos relógios ainda alavancaria a economia do lazer e da cultura, privilegiando o tempo para usufruir desses serviços ao invés de incentivar o consumismo material num planeta que não tem tido tempo – na correria que lhe impomos – para renovar seus recursos.
Os experimentos de redução da jornada de trabalho também se articulam com mecanismos de renda básica, associados a saídas inovadoras no campo previdenciário, com a expectativa de vida crescente. Que tal um Bolsa Família 2.0, mais robusto, numa mobilização nacional pela erradicação da extrema pobreza que garanta o mínimo para todos? A partir daí podemos criar uma competição mais justa no mundo do trabalho.
Que tal discutirmos o entendimento de empresas como entes de interesse público? A partir de exemplos como o Sistema B de “benefício”, ou o ESG, sigla em inglês para “ambiental, social, governança”? O debate nacional precisa incorporar esses pilares na análise dos investimentos, indo além das tradicionais métricas econômico-financeiras.
Ao invés de reprimir, que tal alavancar as iniciativas de economia compartilhada das favelas e comunidades rurais? Precisamos discutir as políticas públicas do futuro, que por vezes nascem nas margens e nas periferias, já denunciando o que não funciona no centro do sistema. Reunir essas inteligências também passa por fortalecer a participação social, os conselhos, os mecanismos de democracia direta, de proatividade cidadã na construção de políticas mais apropriadas às realidades dos que mais precisam delas.
No país líder em biodiversidade, em plena emergência climática global, a deixa está dada para contrapor um governo antiambientalista. Políticas de desmatamento zero, eficiência agrícola e polos industriais de biotecnologia e bioeconomia não só têm o potencial de movimentar trilhões de dólares para o país, como também pode nos posicionar na liderança da vanguarda mundial dos novos paradigmas de desenvolvimento.
Para sermos de fato progressistas, é preciso assumirmos a construção da agenda do futuro, que vai muito além dos exemplos acima e exige uma disposição imediata de ser mais louco que o bêbado, pautar ao invés de ser pautado e, assim, libertar-se da condição de refém de debates que param o país discutindo cloroquina ou voto impresso.
Se a melhor forma de prever o amanhã é construí-lo, essa é também a melhor estratégia para combater o exterminador do futuro: com mais doses de futuro.
*Caetano Scannavino é empreendedor social, coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, com atuação na Amazônia.
Foto: Ponta do Icuxi, rio Arapiuns, em Santarém (PA) /Caetano Scannavino
Esse artigo foi publicado, originalmente, no jornal Folha de S. Paulo.