Carta ao Ministro de Transportes: Propostas de Ação para a Política de Transportes no Novo Governo

Exmo Sr. Renan Filho, Ministro de Transportes

com cópia:

Exmo. Sr.  Márcio Macedo, Ministro da Secretaria Geral/PR

Exmo. Sr. Rui Costa, Ministro da Casa Civil/PR

Exma. Sra. Simone Tebet, Ministra do Planejamento

Exma. Sra. Marina Silva, Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima

Exma. Sra. Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas

Exmo. Sr. Aloizio Mercadante, Presidente do BNDES

 

Prezado Ministro,

O Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental (GT Infra) é uma rede de organizações da sociedade civil brasileira que vem atuando desde 2012 em prol da sustentabilidade socioambiental em políticas, programas e projetos de infraestrutura, especialmente nos setores de transporte e energia, com destaque para a região amazônica.  

Nesta carta, apresentamos, um conjunto de propostas de ação estratégica para o novo governo, referentes ao setor de transportes.  Ressaltamos que as propostas contidas neste documento complementam a Carta Aberta ao Novo Governo:  Infraestrutura para o Desenvolvimento com Sustentabilidade Socioambiental sendo apresentada simultaneamente ao novo governo do Presidente Lula.

  1.   Fortalecimento de Instrumentos de Planejamento Estratégico

Os processos de tomada de decisão sobre políticas, planos, programas e projetos de infraestrutura no Brasil têm sido marcados por enunciados genéricos, lacunas e inconsistências técnicas e falta de transparência.  O resultado é que a inclusão de projetos no Plano Plurianual (PPA) e no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), bem como a respectiva programação orçamentária se dão principalmente em função de pressões políticas e empresariais e sem a necessária transparência e debate público. 

É fundamental o fortalecimento e aperfeiçoamento do planejamento de infraestrutura de transportes, com a definição de um novo marco normativo/institucional do processo decisório.  Tal marco deve prever instrumentos inovadores de análise multicriterial de cenários de logística que possibilitem a identificação das melhores alternativas para a sociedade brasileira (incluindo comunidades locais) em termos econômicos, sociais e ambientais, antes da definição dos portfólios de projetos do PPA e do PPI.

De forma semelhante, é preciso garantir melhorias na análise prévia de riscos e impactos socioambientais, inclusive sob a ótica dos compromissos nacionais sobre as mudanças climáticas, entre os principais instrumentos de planejamento de projetos de infraestrutura de transportes: Estudos de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental – EVTEA e Estudos de Impacto Ambiental (EIAs). 

1.1  Revisar o atual Plano Nacional de Logística (PNL 2035),  de modo a incorporar análise de alternativas de projetos e de rotas de escoamento de cargas.  Ao contrário das  boas práticas internacionais de planejamento de infraestrutura, o PNL 2035 não apresenta os prós e contras de um leque de opções de investimentos, em especial no que se refere aos riscos econômicos, sociais e ambientais.  Deste modo, não se pode garantir que o portfólio de projetos resultantes do plano seja o mais apropriado para atender às necessidades logísticas do país. Vale destacar que tais lacunas e outras inconsistências já haviam sido apontadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em seu relatório de auditoria operacional do PNL 2035, realizado no ano de 2021. 

1.2  Revisar o Plano Nacional de Viação de 2018, que atualmente orienta os investimentos para construção de estradas na Amazônia, seguindo diretrizes estabelecidas no ainda período do governo militar, desconsiderando os conhecimentos e estudos mais recentes sobre a biodiversidade na Amazônia e a população de povos indígenas existente na região.

1.3  Viabilizar a realização de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) com metodologias participativas no setor de transportes, em situações como dos corredores logísticos de transporte de commodities, abordando riscos socioambientais e o potencial de impactos cumulativos e sinérgicos entre empreendimentos no mesmo território (p.ex. rodovias, hidrovias e portos, ferrovias) considerando as alternativas. Assim, cabe priorizar o Corredor Logístico Tapajós-Xingu (BR-163, Ferrogrão, portos e hidrovia no rio Tapajós) para realização de Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), incluindo a análise de alternativas de rotas de escoamento, objetivando desdobramentos de ações e políticas voltadas para o fortalecimento da governança territorial, inclusive resolução de passivos socioambientais, e promoção do desenvolvimento regional sustentável (veja itens 2 e 3)

1.4   Fortalecer o marco legal e institucional sobre o planejamento e o licenciamento ambiental de hidrovias, garantindo a realização de análises robustas sobre riscos socioambientais, inclusive impactos cumulativos com outros empreendimentos, e alternativas, com transparência e participação popular, respeitando o direito à consulta livre, prévia e informada junto aos povos indígenas e outras comunidades tradicionais. Tal processo deve servir de base para a tomada de decisões sobre o prosseguimento de empreendimentos, de forma articulada com planos de gestão de bacias hidrográficas e de desenvolvimento territorial. Propomos que seja instituído um grupo de trabalho liderado pelo MMA e ANTAQ para definir e implementar metodologías participativas de análise de riscos socioambientais no planejamento de hidrovias (inclusive, o papel de terminais portuários) bem como a proposição de regramento sobre processos de licenciamento ambiental com participação social, levando em conta necessidades de adequação e passivos de projetos existentes. Nesse sentido, merecem atenção especial as hidrovias em funcionamento e propostas nas bacias do Tapajós, Tocantins, Madeira. 

1.5   Revisitar o marco legal das ferrovias: A Nova Lei das Ferrovias (Lei nº 14.273/2021), em razão de veto do ex-Presidente, não contemplou a necessidade de apresentação dos Estudos de Viabilidade, Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), tampouco explicita como os eventuais projetos propostos deverão se articular com o Plano Nacional de Logística de modo a consolidar uma rede integrada e coerente.  Os EVTEA, por sua vez, são fundamentais para antecipar a análise dos aspectos socioambientais dos projetos e servir de subsídio à elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental (EIAs) e ao licenciamento ambiental. O atual Ministro dos Transportes, Renan Filho, já indicou que irá revisar o referido marco legal. É importante, portanto, que esse veto à necessidade de apresentação dos EVTEA seja incluído nessa revisitação, bem como sua articulação com o Plano Nacional de Logística.

  1.  Ações prioritárias de prevenção e mitigação de danos socioambientais entre projetos específicos

2.1  Rodovia Cuiabá-Santarém (BR-163): qualquer iniciativa voltada para a duplicação da BR-163 deve ser precedida pela retomada urgente de ações de fortalecimento da governança e ordenamento territorial na área de influência da rodovia (regularização fundiária e proteção dos territórios de de povos indígenas e outras populações tradicionais; consolidação e gestão de unidades de conservação, combate a crimes ambientais e proteção de defensores, com garantia de recursos financeiros e humanos para a sua implementação).  Tais ações foram previstas no âmbito do Plano BR-163 Sustentável, lançado em junho de 2006 como fruto de um processo participativo de elaboração entre o governo federal e organizações da sociedade civil.  No entanto, o referido plano foi abandonado a partir do lançamento do PAC em fevereiro de 2007, o que se reflete no acirramento do desmatamento, queimadas e conflitos socioambientais ao longo da BR-163, especialmente no Estado do Pará, desde então. Mesmo no âmbito do Projeto Básico Ambiental (PBA) da pavimentação da BR-163, existem uma série de pendências que precisam ser sanadas, inclusive quanto a territórios e direitos de povos indígenas.  Cabe ressaltar que as iniciativas em torno da rodovia BR-163 precisam ser inseridas em estratégias mais amplas de  fortalecimento da governança e ordenamento territorial na área de influência do Corredor Logístico Tapajós-Xingu (incluindo hidrovias e portos no Tapajós, e a possível construção da Ferrogrão/EF-170).

2.2  Ferrogrão (EF-170): Tendo em vista as sérias falhas no processo de planejamento do empreendimento, no tocante aos estudos de demanda e viabilidade econômica, à  análise de alternativas de escoamento de cargas, à avaliação de riscos socioambientais, assim como desrespeito aos direitos de povos indígenas e outras populações tradicionais, propomos que o projeto seja cancelado, ou suspenso com exigências sobre a superação das falhas apontadas.

2.3  Concessão da BR-158/155: Elaboração de Plano de Desenvolvimento Territorial participativo antes da concessão para estabelecimento de políticas e ações de planejamento territorial e reparação dos passivos socioambientais. Processo de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI) junto aos povos indígenas impactados pela operação. 

2.4 BR-242 e FICO: Continuidade do processo de Consulta Livre, Prévia e Informada unificada sobre pavimentação da BR-242/MT e construção da FICO junto aos povos do Território Indígena do Xingu.

2.5  Rodovia Porto Velho – Manaus (BR-319) e Hidrovia do Madeira: considerando que a BR-319 já é um vetor alarmante de desmatamento na Amazônia e o potencial de sua expansão explosiva num cenário de pavimentação da rodovia – com implicações para o “tipping point’ do equilíbrio climático no bioma – é preciso garantir condições efetivas de governança territorial – contemplando a Agenda de Desenvolvimento Territorial da BR-319 – antes da tomada de qualquer decisão sobre o empreendimento. As medidas emergenciais de governança territorial devem incluir a segurança territorial dos povos indígenas e outras populações tradicionais, combate à grilagem de terras públicas e outras atividades ilegais,  reconstrução de capacidades institucionais do Estado, e a resolução de passivos existentes com ramais ilegais, com a mobilização de recursos necessários. 

Deve ser considerada como alternativa à pavimentação da BR-319, a realização de  melhorias na hidrovia do Madeira, que opera há muito tempo e que carece de investimentos em sinalização, apoio logístico e segurança da navegação. Os investimentos na hidrovia devem adotar uma ótica de inclusão social, lembrando que as cidades mais relevantes na região são ribeirinhas. 

2.6  Rodovia BR-364 (Rio Branco – Cruzeiro do Sul) e entorno

a) Suspender o contrato do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes) com a empresa que deverá  projetar a extensão da rodovia BR-364, no Acre, até a fronteira com o Peru, cortando o Parque Nacional da Serra do Divisor, para ligar Cruzeiro do Sul a Pucallpa. Essa recomendação está incluída na Ação Civil Pública 1010226-68.2021.4.01.3000 (Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Cruzeiro do Sul-AC), que defende a não construção do empreendimento, tendo em vista: não consultar previamente os povos indígenas; ignorar presença de povo indígena em isolamento voluntário; descartar a elaboração do estudo de viabilidade técnica, econômica e ambiental – EVTEA; e por não haver acordo com o governo peruano. 

b)  Recomendar ao IBAMA que reveja as autorizações de construção de estradas e de supressão de vegetação, emitida pelo Instituto do Meio Ambiente do Acre (IMAC), no município de Mâncio Lima, que tem permitido uma estratégia de consumação dos danos e o desmatamento no trecho pretendido pelo projeto da Rodovia Cruzeiro do Sul – Pucallpa. 

c) Revisar plano de extensão da BR-307, prevista para ligar a região do Javari no Guajará/AM a Marechal Thaumaturgo/AC, bem como requerer ao DNIT/AM que reveja e implemente plano de controle do desmatamento no trecho existente em Guajará/AM.

d) Recomendar ao IBAMA que reveja o licenciamento emitido pelo Instituto de Meio Ambiente do Acre – IMAC, autorizando a construção de rodovia estadual, ligando Rodrigues Alves a Porto Walter,  no vale do Juruá,  por não considerar adequadamente, a proximidade do traçado com o Parque Nacional da Serra do Divisor e com a TI Jaminawa do Igarapé Preto, e também  por não  apresentar consulta prévia. Essa demanda reforça a tese da  Ação Civil Pública do MPF com e MPE/AC,  que inclui também a revisão dos processos de  licenciamento das construções das estradas  ligando Feijó/AC a Envira/AM, e ligando Manoel Urbano/AC a Santa Rosa/AC

2.7   Porto Sul / Ferrovia Oeste-Leste (FIOL):  Esse projeto tem sido objeto de uma série de questionamentos na Justiça e no Tribunal de Contas da União quanto ao subdimensionamento de riscos e impactos socioambientais em seu planejamento, e sobre a não realização de processo de Consulta Livre, Prévia e Informada junto aos povos indígenas e outras comunidades tradicionais (sobretudo quilombolas, pescadores artesanais, marisqueiras e comunidades ribeirinhas) da região. Um megaprojeto que interliga a exploração e transporte de minério, pela ferrovia, escoando no Porto Sul, a ser instalado em área de proteção ambiental. 

Na análise dos processos de concessão e subconcessão, foram encontrados alguns exemplos relevantes de inobservância do devido processo legal, que recai sobre os procedimentos administrativos. Por se tratar de empreendimento de muita complexidade, várias foram as alterações do projeto, além do fatiamento das concessões. O controle social deveria se exercer, por previsão legal, nas audiências públicas designadas para apresentação do projeto. Trata-se de um projeto em que as licenças ambientais foram fragmentadas em três partes, o que comprometeu a devida análise de impactos, inclusive sinérgicos. 

Assim, é fundamental que seja realizada a revisão do empreendimento, com consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e a outras comunidades tradicionais ameaçadas, incluindo a avaliação de impactos sinérgicos entre os empreendimentos e  sobre comunidades, seus territórios e meios de vida, inclusive nascentes, a Mata Atlântica, o turismo e a pesca na região.

Para finalizar, considerando o exposto, propomos a realização de reunião com os Senhores Ministros e membros de sua equipe técnica, com a brevidade possível, a respeito da implementação dessas propostas de ação estratégica no setor de transportes como parte integrante da agenda do novo governo federal.  

 

Brasília, D.F.,  22 de março  de 2023

Cordialmente,

GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental

 

Confira a original, em pdf, aqui: Carta ao Ministro de Transportes

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